O aprofundamento do neoliberalismo no mundo atinge as cidades e governo local.
O arranjo territorial de nossas cidades e os modelos de governança local estão, ambos, diretamente relacionados à intensificação de processos de neoliberalização em escala global[1]. A hegemonia do empresariamento urbano[2], ao mesmo tempo em que estrutura as condições de acumulação do capital, reproduz modelos de desenvolvimento econômico e modelos de urbanização cada vez mais excludentes. A financeirização, prática central entre as frentes de neoliberalização na política urbana, se caracteriza pela capacidade de transformar qualquer fluxo de rendimento em título para negociação e especulação[3].
Quando defrontado com o momento de profunda crise do início dos anos de 1970, o ideário da neoliberalização promoveu, de modo surpreendente, a derrubada de barreiras para a absorção dos excedentes de capital, inventando as novas formas de especulação, em especial aquelas ligadas à produção do espaço. Com isso, a produção do espaço nas cidades e a sua gestão pelo poder municipal passaram a ter destacada importância dentro do modelo neoliberal de política econômica. Desse modo, cidades, regiões e até países inteiros passaram a construir sua gestão a partir de uma ótica empresarial, buscando associar todos os setores de gestão e de serviços, até então relativamente públicas, à esfera privada – abrindo espaço para investimentos, atraindo o máximo de capitais e abrindo concessões e vantagens para grupos empresariais.
Algumas das muitas frentes de articulação entre as práticas de financeirização e a produção do espaço podem ser elencadas: i) Operações Urbanas; ii) revitalizações de áreas consideradas degradadas; iii) conversão de patrimônio público em ativos financeiros; iv) financiamentos através de fundos de pensão; v) incentivos fiscais para capitais investidores; vi) novas modalidades de parceria com o capital privado; vii) estruturação de empresas de administração indireta de capital aberto.
No Brasil, o interesse do capital financeiro nas cidades aumentou consideravelmente diante da abundância de crédito no setor habitacional e do modo como isso impulsionou o setor de construção civil; da pressão dos investidores internacionais para que as empreiteiras diversificassem seu mercado; e da máxima apropriação de renda através de projetos de larga escala, cada vez mais priorizados pela política urbana. Por exemplo, o interesse estratégico das maiores empreiteiras nacionais em ampliar sua atuação se traduz em novas frentes de investimentos imobiliários e aquisição de terras; participação na incorporação de grandes empreendimentos privados; parcerias na construção de equipamentos públicos; e interesse na concessão de serviços públicos relacionados a esses projetos, tais como, manutenção e gestão de estruturas viárias, modais de transporte, saneamento, coleta de lixo e equipamentos públicos.
[1] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: crítica da razão neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
[2] HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço e debates, São Paulo, n.39, p.48-64, 1996.
[3] Como argumento Daniel Sanfelici em sua tese de doutorado “A metrópole no ritmo das finanças” defendida em 2013 no programa de pós-graduação em Geografia da USP.
Nesse contexto, o Estado possui uma atuação determinante na transposição de tal prática para a política econômica, uma vez que é ele quem cria as condições propícias para sua infiltração na esfera pública, visando atrair maiores investimentos, sobretudo através da reconfiguração do aparato regulatório e seu pleno desenvolvimento na esfera privada. Para além do papel de (re) regulador, o Estado arca, ainda, com os principais custos, financiando a maior parte dos projetos. Como exemplo, podemos destacar a crescente importância dos fundos de pensão nas PPPs, nos grandes projetos de infraestrutura e empreendimentos imobiliários[4], e o modo como, além de funcionar como fluxo de capital para estes setores, a rentabilidade dos fundos pode ser ampliada quando combinada à canalização de investimentos públicos e consequente valorização do solo urbano onde é aplicado.
Em diferentes cidades, o poder público altera organogramas institucionais para criar instâncias capazes de abrigar a financeirização com menores entraves à ação do capital. Entre tantos, pode-se citar a experiência de São Paulo com a Cia Paulista de Securitização (CPSEC), ou a abertura do capital da SABESP. A prefeitura de Belo Horizonte, sob a gestão de Márcio Lacerda, criou em 2014 a empresa PBH Ativos, fundamentada na antecipação de fluxo financeiro através de parcelamento de créditos tributários. Também em Porto Alegre, medida semelhante foi tomada com a criação da Empresa de Gestão de Ativos do Município de Porto Alegre, a INVESTE POA.
[4] ROLNIK, Raquel. Guerra de lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
Um exemplo pode ser bem ilustrativo. Em 1994, a SABESP[5] deixou de ser 100% estatal, tornando-se uma empresa de economia mista e capital aberto. Em 1997, suas ações foram transferidas à Bovespa e, em 2002, passaram a ser negociadas na Bolsa de Valores de Nova York. O governo de São Paulo detém hoje 50,3% das ações enquanto o restante é negociado e especulado nos mercados financeiros internacionais. Assim, os acionistas privados acabam pressionando a forma como é gerido o serviço de distribuição de água e tratamento de esgoto de São Paulo tendo como única orientação a busca por uma maior rentabilidade, que o permite receber dividendos dos lucros e negociar a ação da empresa. O que se observou desde então foi a maximização dos lucros dos acionistas – em 2013, tiveram um lucro líquido de R$ 1,9 bilhões – ao passo que os investimentos que poderiam ter evitado a crise hídrica que assolou o estado de São Paulo em 2014, como a ampliação da rede de captação e saneamento, foram minimizados. O interesse dos acionistas – que muitas vezes sequer sabem que tipo de empresa estão decidindo os rumos com suas especulações e remuneração de capital – é apenas o lucro.
[5] http://ponte.cartacapital.com.br/sao-pedro-nao-tem-acoes-da-sabesp/
E é nessa mesma direção que a prestação de serviços municipais de Belo Horizonte e Porto Alegre está indo. A regulamentação de cada uma dessas empresas de economia mista na forma de sociedade anônima passa a ser responsável por orçar e contratar a prestação de vários serviços urbanos. A partir do decreto 15.534 de 2014, a PBH Ativos vai atuar junto à secretaria de Desenvolvimento, auxiliando a prefeitura em investimentos de infraestrutura, serviços públicos municipais, dentre outros. O decreto aumentou as prerrogativas da PBH Ativos S/A na administração municipal. Os custos financeiros das operações de debêntures[6] de pagamento de juros e a remuneração dos seus investidores são cobertos pela PBH Ativos. Mas, para isso, seu ‘negócio’ deve dar lucro[7]. Assim, o objetivo da política pública urbana é pervertido para a remuneração de investidores privados, mesmo sabendo, a partir de vasta literatura, que a intenção entre o lucro e o “bem-estar da população” (como deveria ser uma política pública) pode ser bem diversa.
[6] A debênture é um valor mobiliário emitido por sociedades por ações, representativo de dívida, que assegura a seus detentores o direito de crédito contra a companhia emissora. Consiste em um instrumento de captação de recursos no mercado de capitais, que as empresas utilizam para financiar seus projetos. É uma forma também de melhor gerenciar suas dívidas.
[7] http://www.sinfisco.com.br/artigo-pbh-ativos-s-a-a-quem-serve-o-governo-do-municipio-de-belo-horizonte/
Segundo o texto que institui a empresa, a PBH Ativos S/A[8] deverá atuar em todas as PPPs que o município solicitar por meio do seu Conselho Gestor das Parcerias Públicos Privadas. São previstos PPPs para vários serviços públicos prestados, como para o Mercado Distrital do Cruzeiro, o Centro de Convenções de Belo Horizonte, o terminal rodoviário municipal, serviços de iluminação pública, vilas produtivas e supermercado, de estacionamentos e gestão dos rotativos, do futuro centro administrativo municipal, de cemitérios, do Novo Sistema de Mobilidade Urbana Compartilhada, e de parques como o Parque Mangabeiras, o Jardim Zoológico, o Jardim Botânico, o Parque Ecológico e o Parque Barragem Santa Lúcia. Além dos previstos, o comunicado existente no site da empresa afirma que ela já vinha atuando nas PPPs do município, oferecendo garantias a empreendimentos como o Projeto Inova (construção de escolas municipais, em parceria público-privada com Odebrecht) e o Projeto do Novo Hospital Metropolitano.
[8] http://www.pbhativos.com.br/leis-decretos
Em Porto Alegre, a empresa está autorizada a usar todos os terrenos e imóveis de que a cidade é proprietária, como o Araújo Viana, o Mercado Público, o Gasômetro, além do capital de todas as empresas públicas da cidade como garantia para a emissão de títulos de dívida que são feitos sob a forma de debenture – que tem uma capacidade de liquidação muito mais atrativa aos investidores privados do que os títulos de dívida pública. Até mesmo os créditos e impostos que a cidade tenha por receber poderão ser “penhorados” como garantia para esses títulos. O projeto ainda autoriza que o fundo formado por esses recursos seja investido pelo conselho dos acionistas na empresa – e não pela própria prefeitura.
Quando essa lógica chega ao governo do município e se consolida, várias questões se desdobram: i) redução da experiência da democracia na construção da cidade, já que políticas públicas serão decididas e gestadas por um grupo de acionistas e diretores que a população não elegeu e desconhece; ii) política pública sendo pensada e realizada para gerar lucro e remunerar investidores; iii) transferência de patrimônio público para os cofres da empresa que possui dinâmica baseada na rentabilidade de suas práticas econômicas; iv) redução de receita do município por meio das estratégias de formação de capital da empresa; v) riscos do negócio assumidos pelo poder público e ganhos pela iniciativa privada.
Por fim, vale destacar que a gestão empresarial da cidade é uma estratégia de remunerar capitais privados às custas do orçamento público, transformando a cidade em um grande negócio, a ser gerido como uma empresa privada. Portanto, a tendência é que se observa, cada vez mais, é dessas práticas e racionalidades neoliberais tomando conta dos investimentos e gestões públicas em um intenso processo de privatização, em que o capital privado sai sempre ganhando às custas do poder público. Assim, o capital tem encontrado variadas formas de garantir sua reprodução: através de vários malabarismos jurídicos, legislativos e financeiros.