Grafites podem contribuir para processos de gentrificação? – Pt. 1

Com este artigo o Indebate inicia uma série de textos sobre as relações entre gentrificação, arte e classe criativa, destacando-se especialmente o grafite.

No segundo texto, serão apresentados com mais vagar exemplos de outras cidades no mundo: Soho em Nova Iorque nos anos 50 com a Factory do Andy Wahrol,  Marais em Paris, Jordan em Amsterdã, Malasaña em Madrid e Baixo Centro em São Paulo. Em seguida, será apresentado um texto do contexto urbanístico da região central de Belo Horizonte, apresentando projetos em curso e os interesses financeiros em jogo, com o objetivo de discutir se, no caso da capital mineira, o grafite contribui para o processo de gentrificação da região central da cidade.

 

Grafite e gentrificação em Berlin

Em diversos lugares do mundo, como Miami, Los Angeles, Nova York, São Paulo, Buenos Aires, o grafite passou a ser atração turística capaz de despertar o interesse de diversos empreendedores ávidos por explorar os potenciais comerciais desta arte urbana. Em alguns desses casos, o grafite serviu para a valorização de territórios antes abandonados, gerando, em seguida, a substituição de antigos moradores e comerciantes por novos frequentadores com mais dinheiro e interesses por produtos e experiências diferenciados.

Caso marcante é o da cidade Berlim, que, nos últimos anos, tornou-se a meca do grafite na Europa, recebendo milhares de turistas desejosos de apreciarem os enormes murais de grafites espalhados pela cidade. Não só isso. Berlin vem lutando contra a especulação imobiliária e a gentrificação de seus espaços, com normativas municipais pioneiras.

Em 2015, Berlin tornou-se a primeira cidade alemã a controlar o preço dos aluguéis, para que a supervalorização imobiliária dos últimos anos não empurre a população de baixa renda para cada vez mais longe das regiões da cidade com mais infra-estrutura. [1]

Ainda nesse sentido, assim como outras cidades globais, Berlin criou legislação contra aplicativos como o Airbnb, que tem a capacidade de aumentar exponencialmente o preço dos aluguéis em áreas turísticas da cidade[2]. Os aluguéis por curta temporada feitos normalmente por turistas encarecem o preço médio dos aluguéis, pois, para o proprietário, torna-se mais vantajoso o inquilino passageiro que esses aplicativos atraem do que o inquilino que aluga um imóvel para nele residir, por um tempo maior. Desse modo, turistas vão substituindo os moradores locais, que devem procurar locais de moradias em regiões mais afastadas e normalmente menos estruturas da cidade[3].

Dentro desse contexto de especulação imobiliária e gentrificação, em 2014, alguns grafiteiros optaram por pintar de preto dois dos mais famosos murais da cidade. Para justificar o ato, eles publicaram uma carta em grandes jornais europeus com o nome “Gentrificação e “zombificação” em Berlim estão em pleno andamento. Preferimos destruir a nossa arte de rua do que deixá-lo contribuir para esse processo” , oportunidade em que escreveram o seguinte:

Estas peças corajosamente chamaram a atenção mundial, tornando-se o que Siegfried Kracauer, em 1930, descreveu como Raumbilder: imagens espaciais inconscientemente produzidas que são os “sonhos da sociedade”. Sem querer, nós tínhamos criado uma representação visual ideal da Berlin imaginária dos anos 2000 e suas promessas: uma cidade cheia de terrenos baldios oferecendo muito espaço para moradias acessíveis e experimentação criativa entre as ruínas de sua história recente.

Estas características tornaram-se as principais atrações e o famoso mantra do prefeito falecido recentemente, Klaus Wowereit: “pobre, mas sexy” Berlin. Os murais tomaram seu lugar involuntário nesta realidade como um local de peregrinação de tours guiados de arte de rua, como uma oportunidade de foto para inúmeros cartões, capas de livros e capas de discos. A cidade começou a usar a estética de resistência para suas campanhas de marketing.

Mas, nesse momento, o bairro já se encontrava no meio do processo de gentrificação, com fortes protestos contra o aumento dos aluguéis. E é claro que a arte, especialmente a pública, por ser muito visível- basta pensar em Banksy – contribui para este processo.

Enquanto, por um lado, Berlim se orgulha de sua cena de arte, por outro, seu desenvolvimento urbano falhou e a política cultural desperdiçou muito do raro potencial espacial da cidade, e, assim, colocou em risco também a existência de sua principal atração: os artistas. Eles mesmos eram os seus maiores inimigos, contribuindo para o seu próprio deslocamento.

Recentemente, a gentrificação em Berlim não se contenta em destruir espaços criativos. Como a cidade precisa que sua marca artística continue a ser atraente, ela tende a reanimar artificialmente a criatividade que deslocou, produzindo, assim, uma “cidade de mortos-vivos”. Esta “zombificação” está ameaçando transformar Berlim em uma cidade-museu, a “cena de arte” preservada como um parque de diversões para aqueles que podem pagar os aluguéis crescentes.

Ainda assim, por que um artista concorda em destruir o seu próprio trabalho, em vez de endossar tentativas oficiais de preservá-lo como uma obra de arte pública? Desespero? Claro que não. Tampouco por tristeza. Desde o primeiro momento de sua existência, os murais de Blu estavam condenados a desaparecer. É da natureza da arte de rua ocupar o espaço celebrando sua incerteza, ciente de sua temporalidade e existência fugaz.

No entanto, para mim, o branco – bem, neste caso, preto – da limpeza também significa um renascimento: como uma chamada de alerta para a cidade e seus moradores, um lembrete da necessidade de preservar espaços acessíveis e cheios de possibilidades, em vez de produzir arte semelhante a múmias-zumbis.  Ele destaca a função social de intervenções artísticas onde outros não conseguem avançar.

Os murais berlinenses passaram a servir aos interesses do mercado imobiliário e turístico na gentrificação de territórios da cidade, em detrimento dos interesses da população local, inclusive de alguns artistas. Ao perceberem no que os seus trabalhos de arte haviam se transformado, os próprios autores optaram por apagá-los, com o objetivo de, ao menos, chamar a atenção da cidade para a situação.

O texto evidencia também que não foram os grafites que iniciaram o processo de gentrificação nesses territórios. Tal processo já estava em curso no momento em que os murais surgiram. Os autores perceberam, contudo, com o passar do tempo, que os grafites compunham a estratégia de valorização daqueles territórios, em consonância aos interesses dos investidores, em situação semelhante a causada pelos aplicativos como o Airbnb.

Interessante é que, no caso de Berlin, a especulação imobiliária afetou inclusive os artistas locais. Em 2012, um centro cultural alternativo que existia há mais de 22 anos no centro de Berlin foi despejado em razão da especulação imobiliária.

Felipe Bernardo Soares

Felipe Bernardo Soares

Mestre em Direito pela UFMG, pesquisador do Indisciplinar e do Cidade e Alteridade, membro da Real da Rua e conselheiro do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
felipebfs@hotmail.com

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