cracolândia [sp]/el bronx [bogotá]: um script em três atos e com spoiler

cracolândia [sp]/el bronx [bogotá]: um script em três atos e com spoiler

cracolândia (sp)/el bronx (bogotá): um script em três atos e com spoiler

O capital especulativo imobiliário se estende pelos territórios da cidade por meio de estratégias higienistas camufladas em ações morais que transformam os corpos considerados perigosos em objeto de pacificação militarizada.

Imagem de Gabriel Herrera.
Demolição de casas em El Bronx.

[tomada 1]

Em uma operação de guerra, no último 21 de maio, cerca de 900 policiais – militares e civis – fortemente armados iniciaram sua investida na região da cidade de São Paulo conhecida como Cracolândia sob o discurso de desmantelar a feira livre de drogas que acontecia no local. Logo em seguida, um vídeo (propaganda?) da ação começou a circular pela internet transmitindo, quase em tempo real, o avanço da tropa nas proximidades da rua Helvétia. Tiros, fumaça das bombas lançadas, helicópteros em sobrevoo, latidos de cães e palavras de ordem de policiais fortemente armados, uniformizados e com câmeras nas mãos eram exibidos enquanto eles percorriam a rua para garantir seu esvaziamento e protegê-la de uma possível retomada.

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[tomada 2]

Em uma operação de guerra, no dia 26 de maio de 2016, as forças especiais da polícia e o exército colombiano iniciaram sua investida na região de Bogotá conhecida com EL Bronx sob o discurso de desmantelar a feira livre de drogas que acontecia no local. Logo em seguida, um vídeo-propaganda da ação começou a circular pela internet transmitindo, quase em tempo real, o avanço da tropa no local. Tiros, fumaça, helicópteros em sobrevoo e palavras de ordem de policiais fortemente armados, uniformizados e com câmeras nas mãos eram exibidos enquanto eles percorriam as ruas para garantir seu esvaziamento e protegê-las de uma possível retomada.

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[script]

Separadas por um período de tempo de um ano, as ações de São Paulo e Bogotá, duas grandes cidades latino-americanas, têm em comum muito mais do que o modus operandis exibido nas cenas documentadas das operações, que poderiam, facilmente, ser confundidas com um trecho de um longa de ação hollywoodiano. O script que rege o conjunto dos takes perfaz um roteiro com objetivos não tão obviamente claros, mas que costuram e dão sentido à ação.

Uma simples busca na internet revela que, basicamente, um roteiro é composto por atos. Mais especificamente, por três atos. No “1o ato”, são apresentados a história, seus personagens, o protagonista e o conflito principal. No “2o ato”, o protagonista se depara com obstáculos. Finalmente, no “3o ato”, a história se resolve, geralmente, por reviravoltas e pelo confronto com o objetivo inicialmente traçado.

[ ato]

Ao focar no primeiro ato, o conflito central aparece através da empreitada dos poderes públicos – protagonizados, em São Paulo, pelo governador Geraldo Alckmin e pelo prefeito João Dória e, em Bogotá pelo presidente Juan Manoel Santos e pelo prefeito Enrique Peñalosa  – em mobilizar os agentes de segurança para combater o tráfico de drogas e restaurar a presença do Estado em um território “tomado” pelo tráfico, trazendo-o de volta, respectivamente, para a sociedade paulistana e bogotana. Entretanto, nas entrelinhas desse ato, está uma população considerada à margem dessas sociedades e que precisa ser, portanto,  “reinserida” em seus processos e comportamentos considerados normais. Em São Paulo – e no contexto brasileiro como um todo –, esse conjunto heterogêneo de corpos é nomeado, pelos protagonistas, de “população em situação de rua”, muito embora, majoritariamente, autodenominem-se como moradores e moradoras de rua. Sobre essa população, em grande parte consumidora de drogas – dentre elas o crack, em São Paulo, e o similar basuco, em Bogotá –, as  prefeituras pretendem fazer incidir programas batizados de “Redenção” e de “Prevención y Atención Integral del Fenomeno de Habitabilidade en Calle”. Ambos buscam alcançar o objetivo da reinserção social. No caso de São Paulo, mesmo que através de medidas radicais e extremas, como a “internação compulsória”.

Imagem por Tiago Macambira – Tristes Trópicos
desmonte da cracolândia, dia 21/5/2017.

[ ato]

Ao compreender que a nomeação de uma população está inserida em processos de formação de sujeitos, ou seja, em processos de subjetivação que buscam separar modos de vida e comportamentos entre aqueles considerados, nos escopo social, como normais e anormais, aparecem obstáculos à narrativa central do roteiro sob a forma de questionamentos provenientes de outras discursividades. Desse modo, para além das questões que envolvem os usuários de drogas ou o tráfico, surgem indagações sobre outras intenções objetivas relacionadas às ações impetradas no território e que desviam o raciocínio imediato do combate ao tráfico para outros interesses vinculados à própria questão territorial. Tanto em São Paulo quanto em Bogotá, as áreas que foram alvo da intervenção armada e posterior mobilização de contingente de segurança para evitar sua reapropriação estão localizadas em porções centrais e estratégicas da cidade, bem servidas de infraestrutura e, consequentemente, de grande interesse para ações de “requalificação urbana”[1]. Ou seja, áreas de grande interesse para o setor imobiliário a partir da lógica neoliberalizante de transformação da terra urbana em commodity e sua exploração financeira e especulativa viabilizadas pela institucionalização de parcerias público-privadas (PPPs). Na mesma lógica, empresas privadas são contratadas pelos poderes públicos locais – em regime de terceirização – para implementar programas assistencialistas, de controle e correção dos corpos “anormais”.

[1] Para saber mais sobre planos de requalificação da região:
[OBSERVA SP]
Intervenção na Cracolândia: Luz para quem
[CIDADE PARA QUE(M)?]
o que há por trás da ação higienista na “cracolândia”?

[ ato]

Enunciados no 2º ato, novos personagens trazem confrontações ao objetivo inicialmente delineado pela ação armada. Problematiza-se que o espaço não foi tomado pelo tráfico, mas foi deixado, para se tornar um território onde o tráfico se soma ao cotidiano de populações historicamente, em sua maioria, já  vulnerabilizadas e invisibilizadas pela assimetria na implementação de políticas públicas. Nesse sentido, descortina-se que a retomada do território – seja da Cracolância, seja de El Bronx – busca menos arcar com as dívidas históricas vinculadas à exploração e à sujeição dos corpos que dele se apropriam, estabelecendo-se como mais uma oportunidade para que a elite controladora da produção dos espaços da cidade possa dar continuidade aos processos homogeneizantes de transformação empreendedorista do tecido urbano. A terra urbana degradada e seu entorno podem ser comprados a baixo preço e, após investimentos a médio e longo prazo, trarão grandes retornos financeiros.  Nesse escopo, os corpos considerados anormais passam a ser compreendidos, numa reviravolta do enredo, não mais como um problema para a cidade e seus espaços, mas como uma parte da lógica de destruição criativa do espaço político-econômico que se espraia nos tecidos urbanos das cidades. Tornam-se corpos úteis e tão antigos quanto a história dos próprios centros urbanos, dispostos por cidades que, ao se reproduzirem, reflexivamente, também produzem tais corpos. E, ao voltar, para o programa da prefeitura de Dória, o “Redenção”, verifica-se que ele não se refere às pessoas que outrora espacializavam seus modos de vida, mais ou menos temporariamente, nos espaços públicos da cidade. A redenção é, indubitavelmente, a repetição constante do final feliz de um sujeito de outra ordem: o capital.

[spoiler]

Algum tempo depois da demolição da Cracolândia e do Bronx, outras localidades, nestas mesmas cidades, [re]constroem a dinâmica dos ambientes outrora demolidos, já que os “anormais” insistem em não se vincular às políticas normalizadoras disponibilizadas pelos poderes públicos. A nova Cracolândia e o novo Bronx, sem políticas públicas intersetoriais que deem conta da complexidade que envolve a questão do tráfico e de corpos que insurgem no espaço a partir de outros desenhos e lógicas de família, propriedade e trabalho, aguardam o tempo necessário para que novas forças especiais armadas sejam chamadas para resolver o que se considera como um problema das drogas, arraigado em forte apelo moral e midiático.

Imagem por Tiago Macambira – Tristes Trópicos
desmonte da cracolândia, dia 21/5/2017.

Karine Carneiro

Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFOP, doutora em Ciências Sociais pela PUC-MG, mestre em sociologia com ênfanse em Meio Ambiente pela UFMG e pesquisadora do grupo Indisciplinar.
carneirokari@gmail.com

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A reforma do ensino médio e a perpetuação do golpe

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Como a reforma do ensino médio e o projeto de cobranças de mensalidade em Institutos Federais antecipam os movimentos de financeirização da educação

O ensino médio brasileiro é considerado um funil para o sucesso da universalização da educação no país. 39,6% dos jovens entre 15 e 17 anos não estão na escola e 28,2% compõem a taxa de distorção idade-série, calculada pensando que a criança entra no 1º ano do ensino fundamental com 5-6 anos (realidade de quase 98% de nossas crianças) e deveria chegar ao ensino médio entre 14 a 16 anos[1]. Diversos indicadores confirmam que o fracasso do ensino médio se deve à incapacidade do curriculum em lidar com a realidade dos jovens brasileiros, seus interesses e objetivos escolares. O mapa abaixo, retirado do documento do Censo Escolar 2016, demonstra como a distorção idade-série acompanha a realidade socioeconômica do Brasil, confirmando quais jovens são expulsos de nossas escolas.

[1] Dados do Censo Escolar 2016 que podem ser acessados em http://portal.inep.gov.br/censo-escolar

Apesar destes dados alarmantes, a reforma do Ensino Médio, determinada pelo presidente não eleito, foi rejeitada de forma unânime por professores e pedagogos. Para entendermos as razões que fazem o corpo docente brasileiro se posicionar sistematicamente contra o atual governo, é preciso pensarmos nos impactos que a ruptura com a democracia trouxe para o país. Além da falta de clareza sobre o orçamento disponível para a reforma, o governo encerrou a Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio, presidida pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que desde 2013 reunia diversos professores e pesquisadores para pensar os termos da necessária reforma.

A MP do ensino médio é um mecanismo de exceção, anulando, assim, a necessidade de discussão no poder legislativo.

Mapa 1: Taxa de distorção idade-série do ensino médio por municipio / 2016

No site da Câmara dos Deputados, lemos que “A Medida Provisória (MP) é um instrumento com força de lei, adotado pelo presidente da República, em casos de relevância e urgência”[2]. É um mecanismo de exceção usado quando não se pode esperar o debate público para que a ação seja iniciada, cuja competência de apresentação é dada exclusivamente ao poder executivo, anulando, assim, a necessidade de discussão do poder legislativo. Certamente, a organização curricular das escolas brasileiras, proposta pela primeira vez no país, não configura um caso de urgência, e a escolha por pô-la em prática através de medida provisória só confirma o autoritarismo desse governo.

Durante a presidência de Dilma, a Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio tinha uma escala de reuniões e já debatia um Projeto de Lei[3], além de trabalhar na criação de uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC)[4]. Com o golpe parlamentar-jurídico-midiático que a afastou, levou Temer para a presidência e Mendonça Filho para o Ministério da Educação, as atividades da BNCC foram paralisadas e todos os debates sobre os rumos do ensino médio foram decididos arbitrariamente e em meio a medidas que reforçam o desinteresse do governo por uma educação pública de qualidade, como a PEC 241/55. Atualmente, no site da BNCC, constam apenas as atas das últimas reuniões, de agosto de 2016, o que deixa os pesquisadores apreensivos sobre quem está responsável por organizar o curriculum que deveria entrar em vigor no próximo ano. Importante dizer que a BNCC do ensino infantil e fundamental foi aprovada pelo MEC essa semana, e a do ensino médio teve sua data prorrogada por tempo indeterminado.

Junto a isso, o governo golpista segue anulando outros importantes instrumentos para a promoção da escola e a aproximação dos jovens do cotidiano escolar, como a Olimpíada de Matemática e o concurso de redação “Construindo a igualdade de gêneros”, que não têm verba confirmada para este ano. Além disso, uma das primeiras medidas de Temer foi convidar a tucana Maria Ines Fini, que trabalhou com FHC e Serra, para ocupar a presidência do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Um ano depois de sua posse, o banco de dados do ENEM, forma pela qual as questões eram produzidas e avaliadas, foi desconstruído, e a promessa é de drásticas mudanças no exame deste ano. Maria Helena Guimarães de Castro, que tem sido parceira de Fini desde o governo FHC e atualmente ocupa o cargo de secretária executiva do MEC, afirmou em uma reunião realizada no dia 16/02, que as universidades brasileiras precisarão cobrar mensalidade para se adequar ao “mundo real”[5], decisão que provavelmente atingiria também os Institutos Federais, onde estão matriculados 12% dos estudantes de ensino médio e cuja média no ENEM é superior à das escolas particulares[6]. Embora veículos da imprensa tradicional tenham dito que suas falas, publicadas pelo Jornal do Professor, foram deturpadas, Castro se recusou a se pronunciar publicamente sobre o tema.

Ao mesmo tempo em que a educação pública vai sendo desmontada, a iniciativa privada vê nas escolas brasileiras uma ótima oportunidade de investimento

Ao mesmo tempo em que a educação pública vai sendo desmontada, a iniciativa privada vê nas escolas brasileiras uma ótima oportunidade de investimento. Em um artigo publicado em 19 de março no jornal La Vanguardia, de Barcelona[7], Andy Robinson demonstra como o interesse da Fundação Lemann na educação (o grupo, que acaba de inaugurar a Escola Eleva no Rio de Janeiro, mantém a Fundação Estudar, destinada a conceder bolsas para estudantes brasileiros) corre paralelamente a outros investimentos de seu fundador, Paulo Lemann, dono de marcas como a Budweiser e Burger King e considerado atualmente o homem mais rico do Brasil, com um patrimônio de mais de 25.000 milhões de euros. Lemann, que já é acionista de vários institutos de educação superior no país, acaba de direcionar 80 milhões de reais para a educação básica, cujas ações são inauguradas pela Escola Eleva. Como Robinson mostra, ao lado de Lemann, outros grandes grupos, como o Bahema e o SEB, compraram ações de escolas da brasileiras. Vários acionistas dos três grupos são colaboradores do MBL (Movimento Brasil Livre).

A deposição de uma presidenta democraticamente eleita através um processo de impeachment sem crime de responsabilidade e o cotidiano de decisões arbitrárias e contrárias ao desejo popular e ao plano de governo escolhido pela população configuram o fim de um período democrático no Brasil. Certamente não é coincidência que as escolas sejam alvo desse ataque, já que, além de uma oportunidade de investimento quando a política de separação das classes sociais se torna determinante, o espaço representa a abertura da convivência social e do debate político.

Fernanda Dusse

Fernanda Dusse

Professora do CEFET-MG, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFMG, com enfoque em literaturas contemporâneas e a relação entre estética, ética e política.
fernandadusse@gmail.com

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O neoliberalismo determinando a dinâmica escolar

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Governo que congela investimentos em educação por 20 anos pode propor uma reforma que exija o dobro de investimentos no Ensino Médio?

Somado à exclusão de disciplinas, a Medida Provisória 746/16, que propõe a reforma do ensino médio, abre caminho para a mudança no Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e o financiamento da educação. Enquanto a primeira questão, a proposta de flexibilização do curriculum[1], está sendo minimamente discutida na sociedade, as perguntas sobre o financiamento da educação seguem como um ponto oculto na medida. Para tratar dele, é preciso questionar como a MP propõe o aumento gradativo da carga horária, de 800 para 1400 horas, mesmo tendo sido escrita pelo mesmo grupo que propôs a PEC 241/55, que congela os investimentos em educação por 20 anos.

É fácil perceber o crescimento nos gastos que a mudança de carga horária traria, afinal, somado ao investimento demandado por manutenção e operação (um corpo docente maior, a preparação de mais refeições e as demandas de funcionamento da escola), seria necessário um enorme gasto com infraestrutura, já que o número de escolas estaduais de ensino médio dobraria, pois a maioria delas funciona com um número amplo de alunos nos três turnos. Os repasses de verba da união para os estados são geridos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), atualmente presidido por Silvio Pinheiro, o advogado afiliado de ACM Neto, que ficou famoso em 2015 por liberar o alvará para a construção do edifício de Geddel Vieira Lima em Salvador. Ele será o responsável por gerir os 67 milhões de reais destinados ao fundo em 2017.

Apesar de o orçamento previsto para o ano indicar um repasse de recursos maior para a implementação do programa, a MP afirma que “Os recursos financeiros correspondentes ao apoio financeiro de que trata o parágrafo único do art. 5º correrão à conta de dotação consignada nos orçamentos do FNDE e do Ministério da Educação, observados os limites de movimentação, de empenho e de pagamento da programação orçamentária e financeira anual”. Ou seja: a nova escola terá que se ajustar ao congelamento de investimentos estipulado pela PEC 241/55. Mesmo a Política de Fomento estipulada pela MP expira em um prazo de quatro anos, como fica claro no artigo 12:

“A Política de Fomento de que trata o caput prevê o repasse de recursos do Ministério da Educação para os Estados e para o Distrito Federal pelo prazo máximo de quatro anos por escola, contado da data do início de sua implementação”.

Isso significa que os gastos constantes que o aumento da carga horária trarão não serão mais supridos após quatro anos, período em que a medida deve ter sido estendida para todo o país.

Um governo que se recusa ao diálogo e tem a seu lado veículos da imprensa coniventes com suas ações não precisa explicar como medidas tão contraditórias podem estar sendo tomadas ao mesmo tempo.

Na página do Novo Ensino Médio, destinada a responder perguntas frequentes, não há nenhuma menção ao financiamento da proposta. Especialistas em políticas públicas para a educação acreditam, contudo, que a MP marca uma mudança na distribuição do Fundeb e o início de um processo de privatização da escola pública.

Em entrevista para a Carta Capital, Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que a MP sugere uma concentração de recursos no ensino médio em detrimento do ensino fundamental. Isso significa que a união deve repassar mais verbas para o estado porque reduzirá os repasses dos municípios, responsáveis por um número muito maior de alunos. Se isso acontecer, veremos o fim do projeto de universalização de creches, previsto pela Lei 13005/2014. Mas, mesmo assim, é improvável que os gastos do Fundep dêem conta do impactante aumento no orçamento que a reforma do ensino médio exigiria.

Por isso, diversos pesquisadores chamam atenção para a possibilidade de formação de parcerias público-privadas entre escolas e empresas. O artigo 15 da MP afirma:

“Para efeito de cumprimento de exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer, mediante regulamentação própria, conhecimentos, saberes, habilidades e competências, mediante diferentes formas de comprovação, como:

I – demonstração prática;
II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
III – atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino;
IV – cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; e
VI – educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.”

É fácil perceber como as condições estipuladas pela MP abrem caminho para que instituições privadas de educação passem a vender para os estados formações técnicas ou mesmo cursos livres e que podem ser realizados à distância. Além disso, empresas poderão contratar os estudantes sob o argumento de realizarem a formação técnica. Para fortalecer essa possibilidade, o governo retirou dos professores responsáveis pela formação técnica a obrigatoriedade de formação acadêmica especializada, autorizando a contratação por “notório saber”.

O sucateamento das escolas públicas expandirá ainda mais a distância entre a escola pública e a privada, determinando de forma ainda mais injusta o destino de nossos jovens.

Isso confirma como a MP se aproxima da agenda neoliberal em voga no Brasil. O sucateamento das escolas públicas, com a baixa oferta de disciplinas e a pequena importância dada ao corpo docente, expandirá ainda mais a distância entre a escola pública e a privada, determinando de forma ainda mais injusta o destino de nossos jovens. A alternativa para a população pobre será frequentar escolas abandonadas combinadas a modelos educativos planejados e geridos por empresas sem nenhum interesse na área e incapazes de acompanhar um debate pedagógico sério. Para os estudantes, será oferecido um modelo educacional que se volta para o mercado de trabalho, pensando em adequá-lo às demandas do mesmo e, de forma alguma, propor possibilidades de emancipação.

Fernanda Dusse

Professora do CEFET-MG, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFMG, com enfoque em literaturas contemporâneas e a relação entre estética, ética e política.
fernandadusse@gmail.com

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Reformar a educação para sucatear o ensino? Análise da MP 746/16

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A MP do Ensino Médio traz uma falsa promessa de liberdade para os alunos ao admitir escolas que ofereçam poucos conteúdos e complementem a formação com PPPs.

Imagem de capa por
Fábio Rodrigues Pozebom – Agencia Brasil

No último dia 16/02, o presidente não eleito sancionou a Medida Provisória 746/16, que trata da reforma do ensino médio, projeto de sua autoria. Apesar de o tema estar sendo debatido, a falta de informação sobre as leis que regem o cotidiano escolar leva a considerações equivocadas que seguem sendo veiculadas pela imprensa tradicional e impedem as reflexões necessárias sobre a falta de legitimidade da medida. Para que um debate sério seja conduzido, é preciso que estejamos cientes do Projeto de Lei elaborado por uma Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio, presidida pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que se reunia desde 2012. Pensando nisso, publicaremos aqui uma série de três textos[1] que debatem a questão, focando, respectivamente, na análise das propostas apresentadas na MP, nos problemas de financeirização e na crítica ao instrumento legal empregado.

Afinal, para debater as mudanças da Medida Provisória, precisamos, primeiramente, entender como está estruturado o curriculum do ensino médio atual, a partir da Lei de Diretrizes e Bases para a educação (LDB). A Lei, de 1996, opta por trabalhar com bases curriculares abrangentes, apostando na autonomia das escolas como fundamental para uma educação democrática. Isso significa que a LDB não determina quais disciplinas deverão ser ofertadas pela escola e trata apenas de alguns conteúdos obrigatórios. Assim, ela afirma que “os conteúdos oferecidos pela escola devem abranger, obrigatoriamente, os estudos de língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil” (Art.26 LDB).

Ao distinguir conteúdo e disciplina, a LDB pressupõe que não é necessário que a escola tenha uma matéria chamada matemática, por exemplo, mas que a linguagem matemática seja ensinada na grade escolar. A esse texto bastante abrangente, foram somadas duas leis: Lei 11.161, de 2005, que determinou a obrigatoriedade de ensino de uma língua estrangeira na escola, sendo o espanhol de oferta obrigatória e matrícula facultativa pelo aluno, e a Lei 11.684, de 2008, que versa sobre a obrigatoriedade de matrícula de todos os alunos em sociologia e filosofia.

Mas sabemos que mesmo com um curriculum tão flexível, as escolas seguem um padrão bastante parecido, ofertando um modelo quase exclusivo de educação organizado por cerca de 13 matérias obrigatórias para todos os alunos. A razão para isso é histórica e justificada pelo hábito: seguimos um modelo escolar antigo, pelo qual diversas gerações têm sido formadas, ignorando pesquisas mais recentes na área de pedagogia. Temos leis determinando a obrigatoriedade de espanhol, filosofia e sociologia na escola justamente porque esses conteúdos não estão tradicionalmente inseridos no curriculum e por isso não costumavam ser ofertados. O debate sobre a reforma no ensino médio – encerrado pela decisão arbitrária de uma medida provisória – acompanhava o desejo de tornar a escola mais dinâmica, democrática e justa e pensar em um modelo selecionado por pesquisadores da área e não mantido por razões tradicionais.

Porém, à proposta de lei que estava sendo debatida por educadores, organizou-se uma medida provisória feita por pessoas não afeitas ao tema da educação e que parecem se importar pouco com a qualidade das escolas. Com isso, a reforma do ensino médio, elaborada por um presidente golpista e um ministro da educação que se diz administrador, define que 60% do curriculum será ocupado por conteúdos obrigatórios (português, matemática, inglês, artes, educação física, sociologia e filosofia) e 40% ficará a critério dos alunos, sem sabermos bem quais opções serão dadas a ele.

O texto da MP é excessivamente sucinto, mas indica que os estudantes deverão escolher entre um de cinco percursos: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. A lei não determina, contudo, quantas dessas áreas deverão ser oferecidas pela escola e provavelmente o sucateamento acontecerá pela legitimidade de uma escola oferecer apenas uma ou duas delas – um exemplo: o percurso de linguagens está totalmente coberto pelas obrigatórias, já que ele é composto de língua portuguesa, inglês, artes e educação física. Nesse caso, a escola poderia não oferecer mais nenhuma disciplina? E que tipo de liberdade é garantida ao estudante se a escola onde ele está matriculado só garante uma opção de formação?

Falsa ideia de liberdade:
as escolas poderão oferecer uma única formação, impossibilitando que o estudante defina sua trajetória
.

Além disso, pela MP, ao mesmo tempo em que cai o número de disciplinas obrigatórias, aumenta-se a carga horária, que passará, gradativamente, de 800 para 1400 horas. Não parece contraditório isso ser feito pelo mesmo governo que congela os investimentos em educação pelos próximos 20 anos com a PEC 241/55?

A ênfase do governo nos benefícios de se oferecer a educação técnica junto ao ensino médio (o que seria, a princípio, apenas um de cinco percursos possíveis para os estudantes) aponta para a noção de que o ensino médio deve funcionar como um preparatório para o mercado de trabalho, substituindo o caráter crítico da educação por uma formação tecnicista que objetiva a integração do jovem na sociedade. Na justificativa que o governo enviou para o Congresso, diversos pontos chamam atenção para o diálogo da escola com o setor produtivo. Na desprezível entrevista de Temer para o Roda Viva (que, sabemos, tinha a única intenção de promover suas medidas), ele disse sobre a MP: “Estamos voltando a um passado extremamente útil”, referindo-se à divisão entre o ensino clássico e o científico, modelo de quando era estudante.

Não há dúvidas de que tal reforma vem como uma resposta aos anos de investimento na educação pública federal e na transformação das universidades do Brasil.

Temer vê como um ponto positivo de sua reforma a separação entre dois grupos de estudantes no Brasil: os que terão acesso a uma educação privada de qualidade e os que ficarão à mercê de escolas sucateadas, organizadas a partir de parcerias com empresas com o objetivo de formar uma massa proletária já inserida no mercado. Não há dúvidas de que tal reforma vem como uma resposta aos anos de investimento na educação pública federal e na transformação das universidades do Brasil. Dando aos estudantes do ensino médio apenas a opção de se formar para o trabalho e excluindo-os assim da universidade, o governo assegura a tranquilidade da elite brasileira, que tanto se desesperava com as mínimas possibilidades de mobilidade social que víamos acontecer no país.

Fernanda Dusse

Professora do CEFET-MG, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFMG, com enfoque em literaturas contemporâneas e a relação entre estética, ética e política.
fernandadusse@gmail.com

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