O que está em jogo na Zona Cultural Praça da Estação?

O que está em jogo na Zona Cultural Praça da Estação?

O que está em jogo na Zona Cultural Praça da Estação?

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O aprofundamento do neoliberalismo no mundo atinge as cidades e governo local

Localizada no hipercentro de Belo Horizonte, a Praça da Estação é historicamente um território de disputa entre diferentes projetos de cidade. Nos primeiros anos de construção da capital mineira, recebeu as famílias e as máquinas que construíram a cidade planejada por Aarão Reis, enquanto algumas dessas famílias construíam a primeira favela da cidade, no Alto da Estação, na Rua Sapucaí, próximo à Estação de Minas. 

Nas décadas de 1970 e 1980, a Praça da Estação e todos os prédios históricos ao seu redor quase deram lugar a um enorme sistema viário, que deixou de ser construído depois da movimentação de arquitetos e urbanistas pelo tombamento de diversos edifícios localizados nesse território.

Na década de 1990, esse território passou a ser alvo de diversos projetos urbanísticos que pretendiam retomar o seu valor cultural, ao mesmo tempo em que a esplanada da Praça da Estação recebia o BH Canta e Dança, com a presença de milhares de jovens voltados para a cultura hip-hop e o Viaduto Santa Teresa já recebia alguns encontros de pixadores. (Viaduto Santa Tereza“, de João Perdigão)

Nos anos 2000, a Praça da Estação se tornou território de diversos movimentos culturais da cidade: Duelo de Mcs, Praia da Estação, Samba da Meia Noite… Foi também parte fundamental da Operação Urbana Consorciada Vale do Arrudas, que flexibiliza os parâmetros urbanísticos da região em favor de interesses escusos do mercado imobiliário.

Quando, em 2013, em meio às diversas movimentações sociais que marcaram o país, a Prefeitura de Belo Horizonte apresentou à sociedade o “Corredor Cultural da Praça da Estação, talvez não esperasse pela reação que veio das pessoas que já ocupavam aquele local.

Conforme relatos e reflexões de Paula Bruzzi Berquó, que acompanhou de perto todo esse processo, em sua dissertação de mestrado  “A OCUPAÇÃO E A PRODUÇÃO DE ESPAÇOS BIOPOTENTES EM BELO HORIZONTE: entre rastros e emergências”

A diversidade de manifestações culturais que, desde o surgimento do Duelo, em agosto e 2007 – e sobretudo a partir de 2010, pelo efeito irradiador da Praia – passaram a correr no baixio do viaduto, tornaram-no um dos mais importantes polos de discussão política da cidade. Os debates que ali se engendravam, apesar de fortemente ligados à questão territorial, ultrapassavam, muitas vezes, temáticas apenas locais. O coletivo Real da Rua, por exemplo, tornou-se, a partir da discussão de questões relacionadas ao viaduto, importante

propagador de debates em torno à livre ocupação dos espaços públicos da cidade de maneira geral. Ora, o local adquiria, com isso, importância estratégica crescente frente aos órgãos municipais de planejamento urbano: além de possuir localização privilegiada (na região hipercentral), havia se tornado um importante foco de resistência a políticas de  cerceamento à livre apropriação dos espaços públicos da cidade.

De fato, tratava-se de um espaço em franca disputa. Prova disso é que, além da proposta referente ao Corredor Cultural, este se incluía também na Operação Urbana

Consorciada do Vale do Arrudas, intervenção urbanística de cunho estrutural que se esboçava, simultaneamente, na Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano. Fruto de uma parceria entre o poder público municipal e empresas privadas, o projeto estabelecia a flexibilização dos parâmetros urbanísticos que regulamentavam a área. Contudo, ainda que o intuito (tal como declarado no Estatuto da Cidade) fosse o de alcançar “melhorias sociais e a valorização ambiental” nas áreas em que tais  mudanças fossem realizadas, os reais ganhos que tal medida aparentava estar em vias de aportar, nesse sentido, para a área da Praça da Estação, eram bastante  controversos. Pareciam prevalecer, ao invés disso, interesses privados ocultos, voltados especificamente para a valorização dos terrenos situados no local. De fato,

como pontua Fernanda Chagas (2013), “a todo tempo fica a sensação de que há mais reuniões e acordos acontecendo ‘a portas fechadas’ do que a Prefeitura ou as  empresas envolvidas gostariam de divulgar” (CHAGAS, 2013, p.104).

Assim, apesar da alegação, pela Fundação Municipal de Cultura, da ausência de qualquer relação entre o Programa Corredor Cultural da Praça da Estação e a referida

Operação Urbana Consorciada, era possível antever por meio destes, o crescente  interesse do Estado e, sobretudo do mercado, pela região. Ora, a proposta do “Corredor Cultural”, apesar de não configurar, como a Operação Urbana, uma parceria público-privada formal, parecia mostrar-se, assim como esta, extremamente estratégica do ponto de vista do mercado imobiliário. O processo de “revitalização” nele envolvido contribuiria, muito provavelmente, para uma almejada valorização dos terrenos localizados nas proximidades da Praça da Estação (e de toda a região central), o que geraria grandes possibilidades de lucro aos agentes privados envolvidos. Se consumado, tal movimento acabaria, contudo, por tornar economicamente insustentável a permanência tanto dos pequenos estabelecimentos comerciais quanto dos próprios moradores (pessoas em situação de rua e setores marginalizados da população) que já ocupavam, naquele momento, o local. Não por acaso, o projeto se fazia sem qualquer participação destes agentes.

Para barrar o projeto proposto pela Prefeitura, os movimentos organizados em torno daquele território começaram a afirmar que “O Corredor Cultural já existe!”, culminando na elaboração de um mapa de mesmo nome na plataforma GoogleMaps com o “propósito de dar a ver os diversos movimentos, em grande parte informais, que compunham o já pulsante cenário cultural local”, conforme constatou Paula Bruzzi Berquó . Organizou-se também “A Ocupação” no baixio do Viaduto Santa Teresa, para dar visibilidade aos atores e movimentos da região e para demonstrar a insatisfação em relação ao projeto do Corredor Cultural apresentado pela Prefeitura.

O Indisciplinar participou desse processo desde o início, em 2013, quando o projeto foi apresentado pela Prefeitura de Belo Horizonte, conforme descreve Paula Bruzzi Berquó:

É em meio a esse processo, e a partir do reconhecimento de suas falhas, que os alunos da disciplina UNI 009 Oficina Multidisciplinar realizada no primeiro semestre de 2013 na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais se engajaram no estudo da área do baixio do Viaduto Santa Tereza. A disciplina recebeu o nome de “Cartografias Críticas” e teve como escopo, durante o primeiro semestre de 2013, a investigação de possíveis efeitos da implantação do “Programa Corredor Cultural da Praça da Estação” nas dinâmicas cotidianas do local. Para isso, foi realizada uma ampla pesquisa a respeito dos atores e linhas de força que compunham a área no momento em que o projeto se esboçava – processo este que envolveu conversas com moradores de rua, comerciantes ambulantes, grupos artísticos e muitos dos movimentos culturais atuantes no espaço. Desse trabalho, resultaram cadernos, diagramas, textos, e um mapa online colaborativo, construído por meio da inclusão, por parte de qualquer pessoa interessada, dos eventos culturais, fixos ou efêmeros, ocorridos na área.

Junto com essas ações realizadas nas ruas, nas duas reuniões públicas organizadas pela Fundação Municipal de Cultura para apresentação do projeto houve intensa presença das pessoas afetadas, onde ficou evidente a insatisfação com o projeto, especialmente em razão da falta de participação social para sua elaboração e do risco iminente de gentrificação da área.  
Logo na primeira reunião (ata disponível no relatório da comissão de acompanhamento, download aqui), um dos presentes afirmou que “o corredor cultural já existe, já é real” e a função do poder público seria “torná-lo mais possível, incorporando todos esses agentes que compõem a vida do espaço, o que inclui agentes culturais, população de rua e o proletariado da cidade”, como foi noticiado na época. (AYER, Flávia. PBH quer criar corredor cultural na Praça da Estação. Jornal Estado de Minas, 14 mar. 2013. Gerais. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/03/14/interna_gerais,356890/pbh-quer-criarcorredor-cultural-na-praca-da-estacao.shtml>)  O projeto apresentado, no entanto, desconsiderava as ocupações existentes na área.

Tal projeto se encontra dentro do contexto do urbanismo neoliberal, no qual, segundo proposição de Natacha Rena e Paula e Berquó , “projetos ditos “culturais” são cada vez mais valorizados no mercado urbano. Nesses projetos, guiados por medidas pacificadoras de transformação urbana em cenário “higiênico” e consensual, o fomento ao turismo global se conforma enquanto prioridade, em detrimento do atendimento às reais necessidades das comunidades locais.”

 

No caso de Belo Horizonte, esse processo é bastante claro. Durante as décadas de 1990 e 2000, depois da “descoberta” do valor cultural da região na década de 1980, foram várias as obras e os projetos que buscavam a recuperação da região central da cidade com reformas voltadas para o uso cultural dos equipamentos públicos e privados existentes.

Já havia, porém, cultura e vida naquele território. A partir de 2007, com o Duelo de Mcs, marco inicial da chamada “Quarta fase: início (?) da ocupação cultural de resistência”, de acordo com a proposição de Paula Bruzzi Berquó, o conflito entre os desejos gentrificadores do Estado-capital e a resistência advinda principalmente de movimentos culturais presentes na região começa a ficar mais evidente.

Com a movimentação em torno do território da Praça da Estação, formou-se, em Abril de 2013,uma Comissão de Acompanhamento com pessoas associadas aos movimentos culturais daquela região. Em junho de 2014, essa Comissão apresentou um relatório, que destacava os conflitos sociais existentes na região da Zona Cultural e enfatizava as demandas da sociedade civil para a região . Essas medidas tinham uma evidente finalidade “anti-gentrificadora”, pois pretendiam impedir a desconsideração do contexto e da história locais por projetos produzidos por agentes que desconhecem ou ignoram tais fatores.

Com o fim precoce do projeto do “Corredor Cultural”, surgiu a Zona Cultural da Praça da Estação e o seu Conselho Consultivo, criado em 2014, por meio do Decreto 15.587/14, que foi alterado para mudar a composição do Conselho e seu território:

* link para anexo do decreto
** link do editado pelo decreto
*** link para segundo anexo

Como resultado de muitas reivindicações de movimentos sociais atuantes na área contra o projeto do “Corredor Cultural da Praça da Estação” (projeto disponível para consulta aqui), o Conselho adotou como seu princípio ético a frase “Melhorar sem expulsar”. Proposto pela então conselheira Natacha Rena, esse princípio encampa os ideais que guiaram alguns movimentos sociais que participaram das lutas para instituição do Conselho em 2014,   ano em que parte dessa movimentação se manteve durante o Viaduto Ocupado, contra as obras realizadas no Viaduto Santa Teresa, também sem participação popular e transparência [1]. Dentre outras atribuições, o Conselho tinha como objetivo construir um Plano Diretor participativo para a área, dentro do prazo de um ano.

Desde setembro de 2015, as reuniões do Conselho passaram a tratar do território da Zona Cultural. Foram apresentados, por membros da Prefeitura e do Indisciplinar, estudos sobre os vazios gerados por imóveis subutilizados (dados sobre vazios disponíveis aqui), sobre os equipamentos históricos e culturais existentes, sobre os parâmetros urbanísticos do novo Plano Diretor em tramitação na Câmara Municipal. Além disso, houve discussões sobre questões infraestruturais da área, como a falta de banheiro público e o fechamento de vias para a realização de eventos, que são constantemente levantadas pelos frequentadores da área como pontos que devem ser resolvidos o quanto antes, mas até o momento, por exemplo, o banheiro público existente no Viaduto Santa Teresa não foi inaugurado, contrariando os vários requerimentos realizados por movimentos sociais desde 2013.

[1] Reforma que dura até o ano de 2017, tornando-se, assim, segundo o pesquisador João Perdigão, a obra mais longa da história do Viaduto, durando mais até do que a sua própria construção. A inauguração ocorreu, uma vez mais, por força de alguns dos movimentos sociais que atuaram anteriormente no território, que inauguram, sem aval da Prefeitura, a área da pista de skate. (http://ouviaduto.tumblr.com/)

Em 2016, o Indisciplinar, por meio dos conselheiros Felipe Soares e Marília Pimenta, apresentou proposta de metodologia que se fundamentava em cartografar atores, ações culturais, legislações pertinentes e projetos existentes relativos ao território da Zona Cultural. As conselheiras Laura Rennó e Izabel Dias, servidoras da Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano, também apresentaram proposta de metodologia para o Conselho, na qual propuseram dar voz à diversidade social presente no território a partir de metodologias vinculadas ao uso cotidiano dos espaços. O Conselho iniciou seus trabalhos em 2016, focando em metodologias e táticas que resgatassem o histórico do território e incentivassem a participação popular na construção das diretrizes, com intuito claro de evitar a gentrificação da área com o projeto da Zona Cultural, o que culminou com a elaboração das diretrizes para a Zona Cultural.

A partir da premissa “melhorar, sem expulsar”, o Conselho, com suas diretrizes, apostou na territorialização dos movimentos anti-gentrificadores já existentes na área da Zona Cultural. Criar habitações de interesse social e melhorar as condições de vida da população de rua e dos vendedores ambulantes são medidas que têm o propósito de garantir a permanência dessas populações naquele território. Incentivar as atividades que já ocorrem na Zona Cultural e valorizar as que são mais democráticas (gratuitas e sem gradis, por exemplo) são diretrizes que ressaltam a história e o contexto do território, fatores que costumam ser desprezados por projetos arquitetônicos com objetivos gentrificadores. Ressaltar os imóveis vazios ou subutilizados e a necessidade de cumprimento da função social da propriedade tem como objetivo impedir que os interesses de proprietários particulares se sobreponham aos interesses dos demais atores presentes no território.

O futuro do território da Praça da Estação depende dos próximos movimentos dos diversos agentes interessados. O mercado imobiliário e financeiro pretende obter lucro com os imóveis vazios e subutilizados da região, que deve se valorizar nos próximos anos, com a inauguração do Tribunal Regional do Trabalho no antigo prédio da Escola de Engenharia. Os movimentos sociais atuantes na região, por sua vez, mantém-se organizados, em busca de concretizar antigas demandas ainda não alcançadas.

Texto por:

Bernardo Neves

Felipe Bernardo Furtado Soares

Marília Pimenta