A gestão empresarial da política municipal de Belo Horizonte: o caso da PBH Ativos

A gestão empresarial da política municipal de Belo Horizonte: o caso da PBH Ativos

A gestão empresarial da política municipal de Belo Horizonte: o caso da PBH Ativos

Como o modelo empresarial de gestão urbana leva a transferência de riquezas do setor público para o privado e afeta a experiência democrática nas cidades.

Imagem projeto Nova BH / 2013
Prefeitura de Belo Horizonte
Datada de 25 de novembro de 2010, a lei nº 10.003 “autoriza a criação de sociedade sob o controle acionário do município de Belo Horizonte (…), sob forma de sociedade anônima, a qual funcionará por tempo indeterminado” e, em 09 de junho do ano seguinte, institui pelo decreto 14.444 o estatuto social da PBH Ativo. A empresa, conforme descrito em sua página de internet, tem por missão auxiliar a Prefeitura Municipal na articulação e operacionalização de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico e social do município, por meio i) da gestão de obra de infraestrutura; ii) da instituição de parcerias públicos-privadas; iii) da captação de recursos financeiros; iv) da administração patrimonial; v) da gestão de ativos e de imóveis.

O descrito no decreto 14.444 demonstra quais os limites que a empresa PBH Ativos vai atuar e o que se constata é a violenta entrada na prática pública do município. Ao titular, administrar e explorar economicamente os ativos da prefeitura, primeiro ‘objeto social’, a empresa irá gerar riqueza a partir de recursos públicos, investindo ou deixando de investir orientada apenas pelas necessidades impostas pela lógica do lucro. Quando se descreve seu “auxílio” para gerenciar ou realizar obras licitadas ou de infraestrutura e de serviços urbanos, a própria lei complementa que a empresa deverá “sempre que possível obter ganho econômico”. Fica ainda claro o movimento contemporâneo de articulação do capital financeiro com a prática da política municipal quando se delimita o auxílio à captação de recursos financeiros no mercado[1], gerando assim o sistema de dívida, sendo que o setor público assume todos os riscos – em moldes fadados ao fracasso, como o caso da Grécia.

Assim, deixa-se evidente a intenção da política urbana mimética ao modelo do mercado: seu objetivo é garantir lucro para remunerar os investidores.

Esta empresa, que objetiva dar lucro acima de tudo, é criada sob a forma de uma Sociedade Anônima, incluindo a participação não apenas de empresas da prefeitura, como a BH-TRANS e a PRODABEL como sócio-minoritárias, mas também de pessoas físicas, como demonstra a tabela a seguir da Lei 10.003:

TABELA 01: DISTRIBUIÇÃO ACIONÁRIA DESCRITA NA LEI 10.003

Isso significa que parte dos lucros das empresas é compartilhado com pessoas físicas. Ainda deve ser destacado que a distribuição acionária apenas aparece como documento público na lei de criação da empresa, sendo que, desde então, não foram encontrados documentos que demonstrassem sua atualização[2]. Depois que foi baixado o decreto de número 14.444, de 9 de junho de 2011, que, no seu artigo quinto, aumenta para o limite de 20% do capital social a presença de pessoas físicas e jurídicas do direito privado na empresa, é improvável que a lista não tenha tido mudanças. Ou seja, não é de conhecimento do público de Belo Horizonte aqueles responsáveis por aplicar e coordenar grande parte das novas políticas urbanas para a capital mineira, muito menos sabemos dos seus vínculos com empresas ou seus interesses por detrás desta estrutura financeira construída.

Não é de conhecimento do público de Belo Horizonte aqueles responsáveis por aplicar e coordenar grande parte das novas políticas urbanas para a capital mineira

Dessa forma, o capital social da empresa, criado sobretudo a partir do orçamento público, vai remunerar acionistas desconhecidos como pessoas físicas e jurídicas privadas e que podem usar a PBH Ativos S/A para enriquecimento próprio, às custas do poder público. Além disso, nada garante que decretos futuros não possam aumentar ainda mais a participação de entes privados na empresa pública, radicalizando o empresariamento da esfera pública de Belo Horizonte.

[2] Deve ser ressaltado que o grupo de pesquisa da UFMG Indisciplinar e o movimento Auditoria Cidadã da Dívida acompanham esse processo e não encontraram também qualquer informação referente a esses dados mais atualizados, em especial depois do decreto 14.444.

Isso é ainda mais evidente quando considerado o aumento do capital da empresa. Como escrito na lei de criação, o capital da empresa era de R$ 254.974.385,83. Mas, ao longo de cinco anos, aconteceu um crescimento de mais de 300%, como consta no relatório financeiro de 2015, que coloca como capital da empresa o valor de R$ 1.180.207.000,00. Esse valor chegou a essa dimensão a partir de investimentos diretos da prefeitura, como aportes em direito, concessão de créditos a receber e transferências de terrenos públicos, como observado na tabela a seguir[3].

TABELA 02: INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL PELA PREFEITURA

A prefeitura transferiu créditos do Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte (DRENURBS) para a PBH Ativos S/A. Esses créditos provêm de negociações com a COPASA pela cessão de exploração de água e esgoto no município. Parte desses recursos deveriam ser usados em ações de saneamento. Outro aporte à companhia veio por meio de créditos tributários (como o IPTU, ITBI e ISS) em atraso e que foram parcelados. Assim, as parcelas referentes aos créditos cedidos, que são pagos pelos contribuintes, em vez de irem para o caixa da prefeitura, vão para o caixa da PBH Ativos.

[3] O grupo do Núcleo de Minas Gerais da Auditoria Cidadã da Dívida atuou diretamente na judicialização da criação da PBH Ativos denunciando que as receitas repassadas para a PBH Ativos S/A ocorrem sem nenhuma transparência dos valores e formatos utilizados. Para mais, ver: http://www.auditoriacidada.org.br/blog/meta_slider/pbh-ativos-s-a-a-quem-serve-o-governo-do-municipio-de-belo-horizonte/

Esses aportes de recursos diretamente dos cofres públicos oneram o orçamento do município exatamente na mesma medida em que fortalecem a movimentação de capital da empresa. Quanto maior o volume de recursos injetados na empresa, maior será o rombo do orçamento do município. Negando o processo, os responsáveis pela empresa indicam, como aconteceu na audiência pública no dia 15 de julho de 2016 na Câmara dos Vereadores, em ocasião de apresentação dos relatórios financeiros, que a transferência de recursos públicos para uma S/A é “uma pequena mudança”[4] já que a empresa também seria “pública”.

[4] Expressão utilizada pelo diretor executivo da PBH Ativos, Francisco Rodrigues do Santos, durante a audiência pública quando questionado sobre a transferência de recursos públicos para a empresa.

Uma das expressões mais flagrantes deste processo de dilapidação do patrimônio público é a aplicação de um mecanismo de transferência de terrenos públicos para a PBH Ativos, o que merece um desenvolvimento maior. Com a lei 10.699 de 2014, a prefeitura municipal autorizou a transferência de 53 terrenos públicos, a maioria deles recebidos via lei de parcelamento[5], para a PBH Ativos. A transferência desses terrenos, de acordo com a lei aplicada, fica condicionada a uma contrapartida financeira da PBH Ativos estipulada como ‘valor mínimo’ que deveria ser repassada aos cofres públicos. Todavia, esse valor está muito abaixo do valor praticado pelo mercado, sendo esse o principal mecanismo que permite à PBH Ativos abocanhar a riqueza pública para fins privados.

No mapa a seguir, apresenta-se a localização destes terrenos, com informação sobre o valor do metro quadrado no mercado do bairro em que se localiza e a diferença percentual entre o valor mínimo da transferência e o valor praticado no mercado imobiliário. Observa-se que o valor que a PBH Ativos se compromete a repassar para a prefeitura representa, em média, 18,03% do valor de mercado. Ou seja, mais de 80% do valor destes terrenos fica nas mãos da empresa privada.

[5] A lei de parcelamento prevê que todo parcelamento de glebas deve destinar 15% da área para o poder público a fim de realizar o desenvolvimento de equipamentos urbanos e comunitários.

Estes imóveis foram utilizados de duas maneiras: 1) vinte terrenos usados para integralizar o capital da empresa através de leilão[6] que poderiam chegar à faixa de 170 milhões de reais[7]; 2) os trinta e três terrenos restantes usados como garantia para as parcerias público-privadas que a PBH Ativos está articulando.

Como se não bastasse, foi emitida, também por força de decreto, de número 15.534 de 2014, a definição de que a PBH Ativos vai atuar junto à secretaria de Desenvolvimento, auxiliando a prefeitura em investimentos de infraestrutura, serviços públicos municipais, dentre outros. O decreto aumentou as prerrogativas da PBH Ativos S/A na administração municipal. Os custos financeiros das operações de debêntures de pagamento de juros e a remuneração dos seus investidores são cobertos pela PBH Ativos. Mas, para isso, seu ‘negócio’ deve dar lucro. Assim, o objetivo da política pública urbana é pervertido para a remuneração de investidores privados, mesmo sabendo, a partir de vasta literatura, que a intenção entre o lucro e o “bem-estar da população” (como deveria ser uma política pública) pode ser bem diversa.

O objetivo da política pública urbana é pervertido para a remuneração de investidores privados, mesmo sabendo que a intenção entre o lucro e o “bem-estar da população” (como deveria ser uma política pública) pode ser bem diversa.

Segundo o texto que institui a empresa, a PBH Ativos S/A deverá atuar em todas as PPPs que o município solicitar por meio do seu Conselho Gestor das Parcerias Públicos-Privadas. São previstos PPPs para o Mercado Distrital do Cruzeiro, para o Centro de Convenções de Belo Horizonte, para o Terminal Rodoviário Municipal, para iluminação pública, vilas produtivas e supermercado, estacionamentos e gestão dos rotativos, para o futuro Centro Administrativo Municipal, para cemitérios, para o Novo Sistema de Mobilidade Urbana Compartilhada, e para parques como o Parque Mangabeiras, o Jardim Zoológico, o Jardim Botânico, o Parque Ecológico e o Parque Barragem Santa Lúcia. Além desses, o comunicado existente no site da empresa afirma que ela já vinha atuando nas PPPs do município, oferecendo garantias a empreendimentos como o Projeto Inova (construção de escolas municipais, em parceria público-privada com Odebrecht) e o Projeto do Novo Hospital Metropolitano.

Com isso, a questão da política urbana municipal de Belo Horizonte fica condicionada aos lucros dessa empresa. Nesta forma de desenvolvimento, que ocorre a partir da integração entre capital financeiro e as políticas públicas, acaba-se, por fim, voltando-se para uma orientação que segue a lógica do lucro e prioriza os mecanismos de valorização do capital e não necessariamente o atendimento dos serviços e políticas públicas

O aumento de poder econômico da PBH Ativos não altera a condição de que, para exercer esta prática, o principal capital mobilizado pela empresa seja o capital político, baseado em informações privilegiadas e livre trânsito nos setores decisórios sobre investimentos diversos em infraestrutura.

O aumento de poder econômico da PBH Ativos não altera a condição de que, para exercer esta prática, o principal capital mobilizado pela empresa seja o capital político, baseado em informações privilegiadas e livre trânsito nos setores decisórios sobre investimentos diversos em infraestrutura. Esse capital político inclui ainda o controle sobre processos de parceria e, mais recentemente, sobre a administração de conjunto expressivo de terrenos da PBH. Sobre o poder da PBH Ativos, cabe resgatar que sua criação está relacionada a uma inflexão na gestão urbana: a transferência dos setores de planejamento urbano, que deixaram o setor de obras, planejamento e infraestrutura (antiga SMURBE) e passaram a fazer parte do setor de desenvolvimento econômico (atual Secretaria de Desenvolvimento) e, finalmente, tiveram seus produtos de maior interesse transportados para a empresa de viés financeiro. Esta transferência do setor de planejamento para o setor financeiro, quase sempre acompanhada de transferência da pessoa responsável pelo setor, detentor de informações privilegiadas e expertise na produção do espaço, não se trata de ocorrência isolada e ocorre em outras capitais, o que, mais uma vez, coloca as decisões relacionadas ao planejamento sob o critério da rentabilidade dos capitais investidos.

[6] O leilão foi barrado por decisão judicial perpetrada por movimentos sociais de Belo Horizonte, como Brigadas Populares, MLB e o Núcleo de Minas Gerais da Auditoria Cidadã da Dívida.

 

[7] Baseado na pesquisa do grupo de pesquisa Indisciplinar sobre a diferença entre os valores mínimos e os de mercado dos terrenos transferidos para a PBH Ativos.

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles.
thiago.canettieri@gmail.com

Daniel Medeiros

Arquiteto Urbanista, professor adjunto do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura e Design da UFMG.
danielmedeirosdefreitas@gmail.com

Lucca Mezzacappa

graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e pesquisador nos projetos de extensão Urbanismo Biopolítico e BH S/A do Grupo de Pesquisa Indisciplinar.
luccamezz@gmail.com

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Por que as favelas de São Paulo queimam?

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Uma leitura territorial das últimas operações urbanas em São Paulo é uma dica para entendermos os incendios nas favelas?

Favela Naval, na Vila São José, em Diadema
foto Ricardo Trida/Agência Estado

São Paulo, como já disseram, é uma das capitais do capital. Sua reprodução é voltada para atender a certos imperativos que se opõem diametralmente às necessidades das classes populares, escancarando a contradição inerente à reprodução ampliada do capital no contexto da produção capitalista do espaço. Na periferia do capitalismo, vale lembrar, esse processo está calcado numa intrínseca violência contra as classes baixas, formando o que o geógrafo David Harvey[1] chamou de Acumulação por Despossessão. Essa é uma das facetas violentas do capital.

[1] David Harvey é um geógrafo britânico que vem se dedicando ao estudo sistemático da obra de Marx e sua atualização para o mundo contemporâneo, tendo publicado várias obras de referência sobre o assunto como: Os limites do capital; Condição Pós-Moderna; Neoliberalismo: história e implicações; O enigma do capital.

Junto com a criação do ambiente construído e de toda infraestrutura necessária para tal, que parecem ser a forma que o capital sobreacumulado[2] de várias esferas encontra para se reproduzir de maneira lucrativa, existe um fenômeno primordial descrito como destruição criativa. Esse processo significa a abertura de espaços no meio da cidade para que possam receber novas rodadas de investimento do capital. Ou seja, implica em destruir o que já está constituído para que o capital possa atuar naquele espaço e, dessa forma, garantir sua valorização.

Na verdade, essa é uma lógica que já era identificada por Engels, parceiro de Marx, em 1845 ao narrar A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Em suas palavras:

“O crescimento das grandes cidades modernas dá a terra em certas áreas, em particular as de localização central, um valor que aumenta de maneira artificial e colossal. Os edifícios já construídos nessas áreas lhes diminuem o valor, em vez de aumentá-lo, porque já não pertencem às novas circunstâncias. Eles são derrubados e substituídos por outros. Isso acontece, sobretudo, com as casas dos trabalhadores que têm uma localização central e cujo aluguel, mesmo com o máximo de superlotação, não poderá jamais, ou apenas muito lentamente, aumentar acima de um certo limite. Elas são derrubadas e no seu lugar são construídas lojas, armazéns e edifícios públicos.”

Tal processo insiste em se perpetuar. Mesmo dois séculos e meio mais tarde, a urbanização contemporânea segue os mesmos imperativos daqueles encontrados por Engels. O processo de destruição criativa se tornou essencial para a sobrevivência do sistema capitalista.

O processo de destruição criativa se tornou essencial para a sobrevivência do sistema capitalista.

No caso da produção do espaço metropolitano de São Paulo, a situação não é diferente da lógica hegemônica da urbanização capitalista assentada no mecanismo de acumulação por despossessão. Observa-se, nesse processo, uma constante presença da violência física contra as populações de baixa renda no sentido de abrir áreas para que ocorra o investimento e assim a acumulação de capital. Violência essa que é exercida tanto pelas vias legais, como pelos despejos, quanto também por vias, muitas vezes, que chegam pela ilegalidade. E essa, talvez, seja a chave de interpretação necessária para entender os incêndios nas favelas de São Paulo, que insistem em se manter recorrentes.

Apenas nos três primeiros meses de 2017, foram notificados 44 incêndios em favelas de São Paulo. No ano passado, foram 325 ocorrências. Fenômeno esse que, por coincidência ou não, parece ser correspondido pela gestão de Kassab em São Paulo, período (entre 2009 e 2013) no qual aconteceu uma série de incêndios nas favelas de São Paulo. Esse parece ser uma constante da vida nas periferias paulistas, onde acaba sendo recorrente lidar com incêndios devastadores que queimam os barracos de madeiras espalhados pela cidade.

Mas por qual razão as favelas queimam em São Paulo?

Se eliminarmos a hipótese de que as favelas paulistas são um composto químico de combustão espontânea, nos restam duas hipóteses: 1) devido à precariedade e à falta de assistência do Estado nas ligações de energias – condição básica para a vida hoje – as ligações feitas pelos próprios moradores estão sujeitas a falhas que poderiam iniciar incêndios. Ou 2) são estes incêndios criminosos, como demonstra o documentário “Limpam com Fogo” e uma série de análises espaciais, feita pelo Observatório das Remoções, ao longo de 2008 e 2013, que resultou no mapa abaixo.

 

Localização de incêndios em favelas de 2008 a 2012 e área das Operações Urbanas

[2] Aqui vale lembrar a contribuição marxista para uma teoria das crises no capitalismo. Segundo essa tradição, as crises seriam de sobreacumulação, ou seja, os regimes de acumulação chegam a níveis em que reinvestimento é impossível. Portanto, acaba existindo um excedente de capital que não encontra oportunidade de investimento e desencadeia uma crise, já que o capital é, seguindo o próprio Marx, um “valor que se valoriza” e mantendo-o parado, ele não cumpre sua função.

O mapa revela uma correspondência espacial clara entre os incêndios e as áreas de operações urbanas – mecanismo sabidamente usado para valorização dos capitais imobiliários e financeiros que atuam na cidade[3].

Com esses novos incêndios de 2016 e de 2017, ainda persiste o sentimento de desconfiança em relação às localizações das ocorrências de incêndio, que podem estar relacionadas a possíveis interesses imobiliários, evidenciando uma geografia do fenômeno nada aleatória, mas, pelo contrário, altamente seletiva.

Várias perguntas ainda restam não respondidas: quantas famílias são deslocadas em função do fogo? Quantos moradores são atingidos? Qual o destino das famílias atingidas por esses incêndios? O que vieram a ser dos terrenos das favelas que sofreram com incêndio desde 2008?

Essas perguntas parecem ser o indicativo para entender a causa, a função e as consequências que os incêndios em São Paulo possuem. A hipótese, mais uma vez, é que esses incêndios atuais indicam o interesse de limpar, com fogo, áreas que podem abrir oportunidades de investimento aos capitais.

Esses incêndios atuais indicam o interesse de limpar, com fogo, áreas que podem abrir oportunidades de investimento aos capitais.

Neste artigo, tentei articular essas evidências ao argumento de que a expansão do ambiente construído – como mecanismo de sobrevivência do capital – e a metropolização são resultado de uma série de violências, direta e indireta, contra a classe mais pobre da população: http://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/11810/9603

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles, com enfoque em crítica da economia política, teoria crítica e urbanismo neoliberal.
thiago.canettieri@gmail.com

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Por uma reforma urbana popular de resistência positiva contra a cidade-empresa neoliberal.

Imagem ocupações CEFET-MG

O ano 2017 se inicia com muitas incertezas e insegurança no tocante às políticas públicas no Brasil. O argumento da crise – indissociável do discurso que sustenta a governabilidade neoliberal na atualidade – busca legitimar medidas drásticas de contenção de investimentos públicos por parte do governo federal, a mais grave delas consubstanciada na aprovação da PEC 55, com graves implicações no orçamento público para as gerações presentes e futuras.

Nem mesmo as potentes ocupações estudantis de centenas de escolas, institutos federais e universidades por todo o país foram suficientes para barrar a aprovação da PEC 55. Independente da derrota especificamente quanto à aprovação da proposta de emenda constitucional, as ocupações estudantis serviram para a experimentação de novas formas de resistência positiva, auto-organizadas, e deram um fôlego novo ao movimento estudantil. Deixaram como maior legado o dispositivo de mobilização que julgo ser o mais adequado ao nosso conturbado momento histórico: #ocupatudo.

A palavra de ordem “ocupa tudo” não significou, aqui, tomar assento nas estruturas pseudodemocráticas para fins de tentar influir nos rumos da política institucional.

Diferentemente de outrora, no marco dos programas democráticos populares, a palavra de ordem “ocupa tudo” não significou, aqui, tomar assento nas estruturas pseudodemocráticas para fins de tentar influir – se é que hoje ainda há alguma abertura para isso – nos rumos da política institucional. Os canais de participação que já eram frágeis antes, agora, após o impeachment, ao menos no âmbito federal, tornaram-se completamente inócuos e desacreditados, a exemplo do Conselho Nacional das Cidades, o que também reflete uma crise de representação na qual a esfera instituída não é capaz de dar vazão aos desejos expressos nas lutas e resistências encampadas frente ao Estado-capital. Crise de representação, que já era evidente durante as jornadas de junho de 2013, quando o poder instituído, em todos os níveis, ficou atônita diante da multidão que protestava nas ruas sem saber com quem nem como negociar as pautas reivindicadas nos cartazes e nos corpos dos manifestantes.

As jornadas de junho performaram por contágio político reivindicações caras à cidade e deixaram explícito que as pautas trazidas às ruas estavam em sua maioria implicadas com a vida nas metrópoles. Mas as reivindicações dos(as) manifestantes não cabiam nos mecanismos tradicionais de negociação política e coube ao poder instituído apenas recuar, especialmente quanto ao aumento das tarifas do transporte público. As jornadas de junho e seus desdobramentos trouxeram outras narrativas, outras estéticas e outros modos de resistir que destoavam dos movimentos sociais e sindicais tradicionais, bem como dos movimentos pela reforma urbana, boa parte dos quais presos à institucionalidade e à política pública de provimento habitacional (programa Minha Casa, Minha Vida), tal como descrito por Pedro Arantes no texto “Da (Anti) Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades” (2013).

Ante a complexidade do atual cenário político, envolto numa crise cujo fim ainda parece distante, é preciso reconhecer que nós, enquanto agentes do campo de luta pela reforma urbana, fomos derrotados, muito antes da consumação do impeachment: é preciso que se reconheça isso. As bandeiras da reforma urbana sucumbiram perante o neodesenvolvimentismo atrelado à cartilha do urbanismo neoliberal que privilegia a casa-mercadoria e as parcerias público-privadas a despeito da gestão democrática das cidades.

As bandeiras da reforma urbana sucumbiram perante o neodesenvolvimentismo atrelado à cartilha do urbanismo neoliberal que privilegia a casa-mercadoria e as parcerias público-privadas a despeito da gestão democrática das cidades.

Nossas cidades estão cada vez mais reféns dos carros e não se vislumbra no horizonte próximo nenhuma inflexão em favor de outro paradigma de mobilidade urbana. A grande pauta que gerou a fagulha de junho em 2013 segue latente; ano após ano testemunhamos os aumentos abusivos das tarifas do transporte público. Belo Horizonte ostenta a maior tarifa do país: R$ 4,05 é o valor da tarifa nos ônibus municipais. Por outro lado, o paradigma da mobilidade privada individual motorizada se aprofunda e se comporta como um dos mecanismos de subjetivação individualista mais eficazes em detrimento do espírito de coletividade e da solidariedade: nos congestionamentos que se alastram em todas as metrópoles brasileiras são todos contra todos na batalha fratricida por espaço e locomoção.

O programa democrático popular encampado pelo PT e defendido pelos movimentos e entidades nacionais da Reforma Urbana não apenas não realizou o que prometeu, mas deu no seu contrário, numa antirreforma, como afirma Pedro Arantes no mencionado texto, ou seja, em um aprofundamento da privatização/mercantilização das cidades e do paradigma rodoviarista, da disseminação das parcerias público-privadas na produção do espaço com diversos projetos de expansão e requalificação urbana baseados em dados quantitativos e não qualitativos.

O programa Minha Casa, Minha Vida esteve muito longe de ser uma política habitacional capaz de garantir o direito à moradia adequada aos mais pobres e de avançar na efetivação do direito à cidade. É possível sustentar que o maior programa da história do Brasil de construção de moradias subsidiadas com recursos públicos, operado por instituições financeiras (CAIXA/Banco do Brasil), sequer possa ser designado como política pública habitacional de interesse social, situando-se melhor no terreno das medidas macroeconômicas anticíclicas e de impulso ao setor da construção civil, cada vez mais envolto no sistema financeiro de títulos e créditos.

Nada indica que o governo ilegítimo de Michel Temer mudará o rumo dessa antirreforma urbana, antes pelo contrário, a tendência é um aprofundamento da produção do espaço subordinada aos interesses de mercado. Resta saber qual será a postura dos movimentos nacionais e entidades do campo da reforma urbana frente o novo governo. Os movimentos sociais que conformam o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) sempre estiveram sob influência do programa democrático popular petista e, com a eleição de Lula em 2002, priorizaram travar a luta no campo institucional. Qual será a postura desses movimentos frente ao novo cenário inaugurado com o golpe? Há perspectiva de que a pauta da reforma urbana seja oxigenada e fortalecida sob outras diretrizes, para além do direito à moradia reduzido ao direito de propriedade?

Desde a redemocratização, especialmente com a promulgação da Constituição da República de 1988, os movimentos e entidades do Fórum Nacional de Reforma Urbana lograram inúmeras conquistas com incidência significativa na legislação urbanística. Do ponto de vista estritamente normativo e institucional, o Brasil se situa numa posição da vanguarda quanto à previsão de instrumentos de política urbana que visam assegurar a função social da cidade. Temos, assim, leis e instrumentos urbanísticos avançados, mas que não se traduzem no plano da efetividade, sobretudo na vida dos pobres urbanos cuja segregação é cotidianamente reproduzida e ampliada pela ação do Estado-capital. Em resumo, as tentativas de resolver problemas sociais com legislação e planos foram muitas na história do urbanismo brasileiro. Falta, porém, atrelar esse aparato legal à realidade social brasileira e aliá-lo a um sistema democrático de gestão e controle. Sobretudo, é necessário uma agenda política que vise operacionalizar o que, de fato, promoveria uma reforma urbana estrutural: o controle fundiário e imobiliário, em vias de garantir sua função social.

é necessário uma agenda política que vise operacionalizar o que, de fato, promoveria uma reforma urbana estrutural: o controle fundiário e imobiliário, em vias de garantir sua função social.

A fragilidade do marco legal urbanístico conquistado pela luta dos movimentos da Reforma Urbana ficou evidente com a recente promulgação da Medida Provisória nº. 759/2016, que revogou os capítulos III e IV da Lei nº. 11.977/09, também considerada a lei geral da regularização fundiária. Numa canetada, os importantes capítulos dessa lei, que tratam da regularização fundiária, deixaram de ter vigência por meio de uma medida provisória cujos critérios de urgência e oportunidade são altamente questionáveis. Trata-se do retrocesso de inúmeros avanços conquistados.

Entretanto, apesar do pessimismo relativo ao contexto macropolítico nacional, materializado em medidas antidemocráticas e ameaça aos direitos sociais, embates simbólicos e potentes, bem como conquistas e vitórias contundentes das lutas urbanas no Brasil têm se dado de especial modo em defesa dos bens comuns no enfrentamento direto aos grandes projetos metropolitanos que seguem a lógica da cidade-empresa e atentam contra o direito à cidade. Em Belo Horizonte, temos os exemplos das lutas contra as operações urbanas Nova BH e da Izidora que ainda não saíram do papel anos após terem sido anunciadas pela prefeitura. E Belo Horizonte, apesar das suas singularidades, não é exceção. Outros exemplos de potentes resistências positivas pós-junho contra o urbanismo neoliberal são Estelita, no Recife, Parque Augusta, em São Paulo e Cais Mauá, em Porto Alegre.

Em muitas metrópoles no país se verificam resistências potentes e amplas redes de mobilização que, em alguma medida, têm logrado postergar ou mesmo obstruir projetos e intervenções estruturais, parcerias público-privadas e atos administrativos antidemocráticos que ameaçam os bens comuns. Lutas e resistências positivas que se difundem sob novas narrativas, princípios e formas organizativas, sobretudo a partir das jornadas de junho de 2013, podem ser apreendidas e analisadas sob o prisma do comum.

O comum é compreendido tanto como campo privilegiado de enfrentamento ao Estado-capital, ou seja, através das lutas em defesa dos bens comuns no contexto da cidade-empresa subjugada ao planejamento estratégico, quanto como expressão das novas formas organizativas das resistências na atualidade, cada vez mais conectadas em redes colaborativas, caracterizadas pelo desejo coletivo de democracia real, autonomia, horizontalidade, produção de afetos, novas subjetividades, relações e modos de existência não capitalistas. Vale notar que os movimentos de resistência cada vez mais se apropriam de plataformas e novos dispositivos tecnopolíticos para produzir e disseminar informações, um saber crítico compartilhado, fruto da inteligência de enxame colocada a serviço da transformação social.

Por um lado, o comum está ameaçado pela disseminação das PPPs no contexto da cidade-empresa, por outro, se abre como possibilidade para a propagação de resistências positivas (que já trazem consigo “a cidade que queremos”) e produção de novas subjetividades no seio da metrópole. Acredito que as resistências positivas contra grandes projetos que denotam a lógica da cidade-empresa conformam, na atualidade, importantes trincheiras na ação política dos novos movimentos urbanos.

A análise do fenômeno urbano marcado pelo paradigma do planejamento estratégico e da cidade-empresa, arquétipo do urbanismo neoliberal, está bem avançada. Dessa crítica ao planejamento estratégico não decorre nenhum saudosismo ao planejamento estatal rígido e funcionalista, mas sim a constatação de que as mutações operadas no planejamento urbano nos marcos do neoliberalismo expressam, em última instância, a impossibilidade do Estado, em simbiose com o capital, em responder à problemática urbana orientada pela efetividade da função social da cidade e pela garantia da gestão democrática. Nesse cenário, não nos cabe flertar com o Estado planejador de outrora, nosso papel não é outro senão apostar nas resistências positivas que estão logrando frear grandes projetos do urbanismo neoliberal.

não nos cabe flertar com o Estado planejador de outrora, nosso papel não é outro senão apostar nas resistências positivas que estão logrando frear grandes projetos do urbanismo neoliberal.

Portanto, tanto melhor voltar os olhos e apostar nas múltiplas resistências travadas no seio das metrópoles. É possível extrair grandes aprendizados delas, dos territórios insurgentes onde novas práticas de sociabilidade são experimentadas, a exemplo das ocupações, de todas as espécies, e da cultura viva que emerge das periferias autoconstruídas. Em suma, nunca foi tão necessária a palavra de ordem “nada a temer!”, ou seja, #ocupatudo.

Joviano Mayer

Advogado popular do Coletivo Margarida Alves, militante das Brigadas Populares, mestre e doutorando em arquitetura e urbanismo pela UFMG, pesquisador do grupo Indisciplinar UFMG
mayerjoviano@gmail.com

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