E agora, Izidora?

E agora, Izidora?

E agora, Izidora?

Um dos maiores conflitos socioterritoriais da América Latina, que envolve milhares de famílias de baixa renda em Belo Horizonte, ainda está sem solução definitiva.

Um dos principais slogans de campanha do então candidato à Prefeitura de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, recém empossado prefeito, chamava atenção para o drama das milhares de famílias de baixa renda habitantes da região da Izidora, localizada no vetor norte do município. Essa área, lugar de vasta importância ambiental, protagoniza um dos conflitos socioterritoriais mais emblemáticos da América Latina[1]. Ali, estórias de luta de milhares de famílias que garantem sua dignidade autoconstruindo espaço urbano, moradias, ruas, hortas comunitárias, creches, se unem a um território tradicional – o Quilombo dos Mangueiras –, que há anos aguarda a finalização do seu processo de demarcação. Há essa realidade são aproximados outros enredos, como os interesses bilionários vinculados a grandes projetos urbanos que cercam a região e a controversa parceria público-privada, Operação Urbana do Isidoro, projetada para urbanizar a área e levar a cabo um gigantesco empreendimento imobiliário popular, “Granja Werneck”, por meio do Programa Minha Casa Minha Vida. (saiba mais)

[1] As violações de direitos contra as ocupações da Izidora foram julgadas no Tribunal Internacional de Despejos em Quito (Equador), onde ocorreu a Habitat III da ONU. O caso foi selecionado como um dos 7 mais graves do mundo. (https://goo.gl/vgG2Lx)
Fig 1. Assembleia na ocupação Vitória. Fonte: Fanpage Resiste Izidora.

 

Fig. 2: Capa de Facebook utilizada pelo atual prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil, durante a campanha eleitoral. Fonte: Fanpage Alexandre Kalil.

A Izidora tem que funcionar e essa era a mensagem com que o candidato Kalil se mesclava às lutas populares pelo direito à cidade que tanta cor, barulho, organização e esperança trazem a Belo Horizonte. Prefeito, aqui a luta urbana já funciona, o que precisamos fazer funcionar é o compromisso dos Poderes Públicos com a efetivação de direitos no território. Essa amarga frustração foi a marca da antiga gestão municipal: como engenhosamente lembrou Kalil, o antigo governo “não fez nada contra a empresa Cowan, que derrubou um viaduto e matou pessoas, mas entrou com ações contra as famílias que moram na Izidora”. [2] Há ordem de despejo válida para as três ocupações do local: Rosa Leão, Esperança e Vitória, e um dos autores da demanda é a própria prefeitura.

Numa espécie de realismo jurídico fantasmagórico e cruel, mais uma vez os poderes instituídos funcionam na sua inércia patriarcal, classista e racial e ameaçam as milhares de famílias pobres e trabalhadoras da Izidora pela voracidade do desejo de apropriação privada da terra, por meio da renovação da ordem de despejo.

No dia 28 de setembro de 2016, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a cúpula dos desembargadores mineiros, decidiu, em sede do Mandado de Segurança (MS – 0612458-75.2014.8.13.0000), pela legitimidade da ordem de desocupação forçada das ocupações, autorizando seu imediato cumprimento pela Polícia Militar de Minas Gerais. Ao mesmo tempo, uma marcha de mais de 30 km, com pessoas das ocupações e apoiadores, percorria o caminho da Izidora até ao Tribunal para lembrar, em muitos passos, que se trata de um conflito coletivo com milhares de vida em jogo.

 

Fig. 3: Julgamento no Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Fonte: Fanpage Resiste Izidora.

 

Fig. 4: Marcha das ocupações da Izidora até o centro de Belo Horizonte no dia do julgamento pelo Órgão Especial. Fonte: Fanpage Resiste Izidora

O MS, negado pela decisão judicial, tinha sido impetrado pelo coletivo Margarida Alves de Advocacia Popular em face do ato do governador de Minas Gerais e do Comandante Geral da Polícia Militar que autorizava o despejo, tendo em vista o despreparo da Polícia Militar de MG para levar a cabo operação de reintegração, respeitando as normativas nacionais e internacionais sobre remoção forçada[3].

Isso aconteceu porque, na última decisão proferida pelo órgão de cúpula do TJ/MG, os desembargadores entenderam, quase que por unanimidade, que as frágeis indicações apresentadas pelo estado de que cumpririam todas as normativas eram suficientes para autorizar o imediato despejo das famílias. Vale lembrar que essa medida foi tomada à revelia do posicionamento francamente contrário do parecer da Procuradoria do Ministério Público nos autos do processo.

Nas letras da implacável (in)Justiça mineira, é mais justo autorizar a desocupação forçada de 8 mil famílias, garantindo a proteção ao direito de propriedade, que proteger a segurança, integridade e a vida de pessoas pobres e precarizadas de um possível despejo violento e sem as devidas garantias prévias à medida. A experiência concreta de pessoas e de modos de vida que se enraízam na terra e dela retiram suas possibilidades de existência deveria ser a fonte da decisão sobre como se vive e como se morre em territórios marcados pela opressão e abandono do estado –  e não a vontade abstrata, sem corpo, sem cheiro e sem calos, exarada num ato jurisdicional conservador. A luta cotidiana das três ocupações da Izidora –  Rosa Leão, Esperança e Vitória – já estão fazendo justiça ao garantir moradia e condições de vida a milhares de pessoas antes “sem teto”.

[3] A medida foi tomada após violenta repressão de marcha pacífica das ocupações da Izidora em julho de 2015. Para tanto, foi solicitada a suspensão da realização da operação policial porque o desalojamento pretendia se realizar de forma completamente ilegal: (i) não havia planos para o realojamento das famílias; (ii) não havia medidas para a proteção das crianças, adolescentes, idosos e portadores de necessidades especiais no território; (iii) não estava garantida observância à lei estadual n. 13.604/00 (lei que cria comissão especial para acompanhar os processos de desocupação de áreas invadidas para assentamento rural ou urbano no estado); (iv) não se cumpria o disposto na “Diretriz para a produção de serviços de segurança pública n. 3.01.02/2011″, exarada pela própria PMMG; (v) não se observavam tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, havendo, inclusive, nítida violação aos princípios básicos para a realização de remoções, anunciados em Relatório Especial da ONU

Você que faz versos, que ama, protesta… Você marcha para onde, Izidora?

Enquanto a rede de advogados populares reinventa taticamente instrumentos para seguir no imbróglio judicial e suspender o despejo, as famílias da Izidora e sua rede de apoiadores seguem na incansável resistência dentro e fora das ocupações, com assembleias semanais, reuniões com apoiadores, organização dos moradores, criação de cooperativa de trabalhadoras, manutenção dos espaços comunitários – como se não bastasse a criatividade necessária para seguir vivendo em territórios e posições de opressão.

A Izidora não é caso de polícia, mas de política urbana séria e comprometida, que reconheça e abra espaço para as cerca de 8 mil famílias que há anos vêm se autocusteando, às vezes com o preço de vidas e sujeitas às variadas violências dos territórios precarizados, construindo um novo bairro na cidade. Nas palavras do prefeito, durante sua campanha, “a polícia só vai entrar se for pra urbanizar a área para as famílias”[4] e a faraônica promessa de uns dos maiores projetos do Minha Casa Minha Vida do Brasil[5] restará como uma distopia de mal gosto e sem orçamento: “um apartamento de 36 metros quadrados não atende esse pessoal. Eles não precisam de uma construtora, precisam de um pedaço de terra”.[6]

Combinadas às promessas do novo prefeito, a reconfiguração da governança municipal também abriu caminho para retomada dos espaços de negociação extrajudicial do conflito. Ainda no mês de janeiro do presente ano, a Mesa de Diálogo e Negociação apresentou a “Proposta do Governo de Minas e da Prefeitura de Belo Horizonte para as Ocupações Esperança, Vitória e Rosa Leão (Região do Izidora) localizadas entre a Zona Norte de Belo Horizonte e o município de Santa Luzia”, o que parece ser o documento de coalizão das esferas administrativas que não querem “sujar suas mãos de sangue”, como disse Kalil.

Por esses dados, não haverá mais “empreendimento Granja Werneck”, nem tampouco a absurda Operação Urbana prevista para Izidora [saiba mais sobre as irregularidades da Operação Urbana (i)  https://goo.gl/UO4vZN , (ii) https://goo.gl/GbuEAf].

Mas será? O que consta dos termos da proposta não se trata de benesses ou concessões dos Poderes Públicos após anos de resistência popular. O conteúdo do acordo tem como referência diversos documentos elaborados pela rede de resistência da Izidora, envolvendo longa parceria entre comunidade, movimentos sociais, entidades da sociedade civil e universidade. Em grosso modo, a proposta contempla (i) a realização de cadastro prévio das 3 ocupações; (ii) a regularização fundiária/urbanização integral das ocupações Rosa Leão e Esperança e parcial da ocupação Vitória, por meio do projeto Vila Viva e (iii) a implantação do programa Minha Casa Minha Vida-Faixa 1 em parte da ocupação Vitória – o que demandaria a desocupação parcial do território.

Embora o documento aponte para pagamento de auxílio pecuniário para as pessoas que forem realocadas e remoção pacífica da área atingida pelo Minha Casa Minha Vida, inúmeras dúvidas permanecem. As áreas referentes à Rosa Leão, Esperança e Vitória, sujeitas à urbanização pelo Vila Viva serão desapropriadas e concedidas aos moradores? Qual área exata da ocupação Vitória será afetada pelo Minha Casa Minha Vida? Haverá homologação judicial do acordo e extinção dos processos judiciais? Essas e diversas outras questões foram apresentadas pela rede Resiste Izidora em documento-resposta à proposta de negociação do Poder Público.

As pessoas e famílias das ocupações da Izidora, principalmente as mulheres – maioria responsável pelos trabalhos de cuidado e organização da comunidade – seguem vivendo sob a ameaça de despejo iminente, que paira sobre suas preocupações feito um fardo adicional a carregar, para além da ausência de serviços públicos e o cotidiano árduo da trabalhadora precarizada. Até o momento, não houve nenhum movimento dos Poderes Públicos agendando assembleias com as comunidades para esclarecimento da proposta, produção de material didático para mobilização em torno do acordo, desistência de ação judicial, projeto de lei revogando a Operação Urbana do Isidoro e/ou de decreto de desapropriação das áreas.

BH também é Izidora, vamos por pra funcionar, Kalil?

 

Se você dormisse, se você cansasse, se você morresse…
Mas você não morre, você é dura, Izidora!

Saiba Mais:

Texto por:

Julia Ávila Franzoni

Daniela Faria