O crime da Samarco (Vale-BHP Billiton), a fragmentação geográfica e as fronteiras socioespaciais.
Escamoteado pelo golpe de Estado que segue em curso no país, o crime da Samarco e suas controladoras Vale e BHP Billiton, na bacia do Rio Doce, ficou sedimentado no fundo da gaveta das preocupações nacionais e das pautas jornalísticas. E não é só pela instabilidade política: a questão ficou obscurecida por uma seletividade relativa à importância dada aos atingidos e por diversas estratégias empresariais de encobrimento dos rastros do crime.
A amplitude do desastre pode ser compreendida pela dimensão espacial e temporal com que se alastra a lama tóxica, seguida de seus incontáveis danos sociais, ambientais, econômicos e afetivos. A extensão espacial dos impactos percorre a bacia do Rio Doce, desde a barragem de Fundão, em Mariana-MG, até a foz na vila Regência Augusta, em Linhares-ES, e se estende no oceano. Em nota técnica[1], o ICMBio e Projeto Tamar demonstram que a alta concentração da pluma de rejeitos no oceano está localizada entre São Mateus, no norte do ES, e o litoral da Serra, município da Grande Vitória. Ainda mais alarmante, o estudo do Instituto de Biofísica da UFRJ[2] comprova que até mesmo o lençol freático em alguns pontos nas imediações da bacia está contaminado. Tão intangível quanto é a extensão temporal. Afinal, o rompimento da barragem em si é apenas o início de um processo longínquo de difusão e aprofundamento de uma diversidade de impactos.
Se entendemos, como propõe Ana Fani Carlos, que espaço é “condição, meio e produto da realização da sociedade humana em toda a sua multiplicidade”, igualmente vasto é o rol de pessoas atingidas e a multiplicidade de afetações, que não se limitam ao itinerário da lama, nem mesmo a esta geração.
O rompimento da barragem da Samarco (Vale-BHP) se desdobra em múltiplos distanciamentos nas relações entre as pessoas, os modos de vida e o espaço.
Uma leitura atenta às relações socioespaciais nos direciona para o entendimento de que o rompimento da barragem da Samarco (Vale-BHP) se desdobra em múltiplos distanciamentos nas relações entre as pessoas, os modos de vida e o espaço. Tais fronteiras são frequentemente acirradas pelas práticas e políticas institucionais centradas na fragmentação da resistência e na expansão do domínio dos interesses empresariais sobre o território.
A cisão imediata é a desterritorialização, ou seja, o rearranjo das relações de poder sobre o território, assim como o enfraquecimento dos enlaces locais e referências simbólicas. Em sua forma mais clara, compreende o deslocamento de moradores de comunidades soterradas pela lama, localidades que acumulam características de uma economia agrária, para casas alugadas na área central de Mariana-MG. Por detrás dessa saída, recostam-se os interesses empresariais na dissolução das relações socioespaciais, exacerbados na dispersa distribuição espacial [mapa 1] das casas alugadas em Mariana, o que fragiliza a sustentação dos laços que uniam os moradores em comunidades.
[1] Nota técnica nº 03/2017 Vitoria- ES/TAMAR/DIBIO/ICMBio – Identificação da área atingida pela pluma de rejeitos da Samarco e das principais comunidades pesqueiras existentes na mesma.
[2] http://www.greenpeace.org.br/hubfs/Campanhas/Agua_Para_Quem/documentos/greenpeace_estudo_agua_riodoce%20.pdf
A recostura dessas fragmentações impostas se dá muitas vezes através de festejos religiosos no território atingido, o que pressupõe não só reencontrar os antigos vizinhos, como também o processo de revisitar o território devastado. Essa tentativa de retomada de controle sobre o território traz à tona a importância do espaço para a manutenção da comunidade.
Na contramão, as investidas empresariais tentam cercear esses enlaces seguindo alguns passos: primeiro, impondo o controle da circulação através de cercamentos da área soterrada e de restrições de visitas ao território; segundo, consentindo o saque às casas invadidas pela lama e a desconstrução de referenciais; e, por fim, o xeque-mate, o apagamento dos rastros do crime e da memória local. Esse apagamento se dá de maneira gradual, com a demolição de casas e a elaboração de uma “maquiagem verde”, chegando ao absurdo de se pintar de verde gramas secas no centro de Barra Longa-MG, e de modo evidente com a inundação de parte do povoado do Bento Rodrigues, devido à conclusão das obras do Dique s4, sob o pretexto de conter o vazamento de rejeitos.
[mapa 1] Localização das casas alugadas na cidade de Mariana. fonte: Fonte: Jornal “A Sirene – Para não esquecer”, Edição número zero, 2015.
[fig 1] Queimação de judas, representado pela empresa samarco, na celebração da Semana Santa em Bento Rodrigues – foto: Daniela Félix, Jornal Sirene
De certo, a construção do Dique S4 mostra a dupla estratégia de controle territorial da empresa: a dominação da propriedade privada e a apropriação da sua dimensão subjetiva. De um lado, recorre-se ao domínio sobre a propriedade, de outro, há a tentativa de impedir a reaproximação afetiva com o território. Para isso, as empresas lançam mão de artifícios jurídicos do Estado, sob o ímpeto neoliberalizante escancarado no Decreto de Numeração Especial 500[3], assinado pelo governador de Minas Gerais, que concede às empresas o direito de uso, por 36 meses, das terras a serem alagadas. Na prática, significou uma proposta de indenização aos donos das terras pelo uso temporário que a empresa requisita, podendo o prazo ser estendido sem mais indenizações. Ressalta-se que a área do Dique S4 já era alvo do interesse das empresas desde 2009, confrontado na época pela resistência dos moradores e embasada pelo valor histórico do povoado e pelos altos impactos ambientais que geraria.
Uma vez tomado pela lama tóxica, o rio, elemento central das práticas cotidianas de diversas comunidades ao longo de toda a bacia do Rio Doce, muitas vezes se transforma em fronteira geográfica.
Outro sinal de desterritorialização é a impossibilidade de se adentrar o rio. Uma vez tomado pela lama tóxica, o rio, elemento central das práticas cotidianas de diversas comunidades ao longo de toda a bacia do Rio Doce, muitas vezes se transforma em fronteira geográfica. O ato de atravessar de uma margem a outra, como era realizado cotidianamente entre Cachoeira Escura, distrito de Belo Oriente-MG e São Lourenço, no município do Bugre-MG, passou a realizar-se por um deslocamento de mais de uma hora por terra. Do mesmo modo, a contaminação impede travessias cotidianas intrínsecas às atividades econômicas, práticas espirituais, lazer e a rotina de modo geral.
[3] DECRETO COM NUMERAÇÃO ESPECIAL 500, DE 20/09/2016 http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=DNE&num=500&ano=2016
O aprofundamento dessas cisões, e, por conseguinte, do desastre-crime que segue em curso, se dá através das investidas das empresas – e da Fundação Renova[4] – de domínio sobre o território por meio de estratégias para criar uma divisão entre os atingidos, sejam elas a fim de cristalizar as divergências socioespaciais, como também de segmentar e criminalizar as resistências. É nessa lógica que se fortalecem as separações entre os direitos de reassentamento dos moradores de Paracatu de Baixo e Paracatu de Cima, em Mariana-MG, localidades que, antes do desastre-crime, compartilhavam os mesmos equipamentos públicos e espaços de lazer, palcos das relações de vizinhança.
[4] A Fundação Renova é a entidade designada para cuidar dos processos de reparação e compensação dos impactos do desastre. Testa de ferro da Samarco-Vale-Bhp Billiton, a Fundação é mantida pelas empresas culpadas pelo desastre conforme estabelecido no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta, fruto do acordo extrajudicial entre União, Governo dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e Empresas assinado em março/2016. Visto isso, mantenho a denominação “empresas” mesmo que em referência às ações da Fundação Renova.
As empresas conduzem as negociações até a exaustão, a fim de exacerbar os dissensos
Seguindo a mesma lógica, estrategicamente, as empresas conduzem as negociações até a exaustão, a fim de exacerbar os dissensos, como muito bem exemplificado no processo de definição do terreno do reassentamento em Gesteira, Barra Longa-MG. O impasse foi produzido pelas empresas ao inviabilizarem a compra do terreno adequado às necessidades de todos os moradores, ofertando apenas saídas incompatíveis. O desgaste do processo acabou gerando cisões internas entre aqueles que, angustiados por soluções definitivas, cogitam receber indenização em dinheiro, e aqueles que não abrem mão do reassentamento[5]. Por conveniência das empresas, não foi cogitada a possibilidade de recorrer ao poder estatal para desapropriação, que nem seria necessária, visto que há pouco tempo o proprietário do terreno anunciou a disponibilidade de venda.
A mais emblemática dessas práticas é a concessão do auxílio financeiro emergencial para os atingidos que perderam a renda diante do desastre. Os atingidos recebem um cartão cuja distribuição é controlada pelas empresas, pautada em critérios não esclarecidos e via de regra concedidos aos homens das famílias, desconsiderando as mulheres que tinham renda própria. Além da adoção de critérios inconsistentes e machistas, o cartão virou meio de fragmentação entre grupos de atingidos – ribeirinhos, pescadores e comerciantes – e intrafamiliares, que agora se dividem entre os Com Cartão e os Sem Cartão. Ademais, a ameaça de retirada do cartão é feita constantemente aos atingidos, que se aliam a movimentos de resistência. Numa perspectiva mais alarmante, o cartão se tornou estratégia de acesso das empresas a diversas localidades onde não exerciam influência.
Se antes as empresas exerciam poder sobre as cidades da bacia onde se localizam as bases operacionais do seu ciclo produtivo minerário (mina e porto-indústria), hoje seu domínio se expandiu para a bacia inteira, já que boa parte dos atingidos que perderam suas rendas se encontram dependentes do cartão ofertado pela empresa. Da mesma forma, o deslocamento dos atingidos das áreas invadidas pela lama para região central de Mariana implica submetê-los a uma área com estreitos vínculos com essas empresas, sujeitando-os a estigmatização. Tal prática possibilita a expansão do domínio da Samarco (Vale-BHP) sobre todo o território atingido e também o autocontrole da população, a partir da disseminação do discurso de culpabilização dos atingidos pelo desemprego, isto é, o êxito da biopolítica.
[fig.2] Terras alagadas em Bento Rodrigues – Foto: Rodolfo Meirel
[5] É nesse contexto de vulnerabilidade social que integrantes do Grupo de Pesquisa e Estudos Socioambientais (GEPSA-UFOP), viram como necessidade esclarecer questões sobre a assessoria técnica reunidas em cartilha. Cartilha criada pelo GEPSA, em parceria com o Coletivo Margarida Alves e o Movimento dos Atingidos por Barragens. Disponível em: https://issuu.com/gepsaufop/docs/final_cartilha_assessoria_para_o_is
[fig 3] Procissão segue pelas ruínas de Bento Rodrigues para celebrar o dia de Nossa Senhora das Mercês – Fotos: Alexandre Guzanshe
Em resposta às práticas empresariais de segmentação das comunidades, os atingidos têm se mobilizado para estruturar as negociações coletivas, por meio de comissões representativas escolhidas pelas comunidades atingidas e pela reivindicação de assessoria técnica. Desde o ano passado, membros das comissões acompanham as negociações em Mariana (MG) com apoio da Cáritas Brasileira, assessoria escolhida. Nesse modelo, evita-se o esvaziamento das negociações e impede-se a canalização das empresas para as conversas individuais, nas quais o domínio corporativo tenderia a pesar sobre os encaminhamentos. Seguindo os êxitos precedentes, em maio, Barra Longa-MG conquistou a contratação da assessoria técnica e, desde fevereiro deste ano, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) vem mobilizando a formação de comissões de atingidos estaduais e municipais no Espírito Santo, numa ação conjunta[6] com Ministério Público Estadual e as Defensorias Públicas da União e do Espírito Santo.
Parece cabível fazer dois apontamentos preliminares: primeiro que tais práticas desterritorializantes, no entendimento de Harvey[7], pressupõem a compressão de tempo-espaço, ou seja, a quebra de fronteiras locacionais para a contínua acumulação do capital. Paradoxalmente, a desterritorialização também se alimenta da criação de novas cisões que dissolvem as relações socioespaciais e de controle preexistentes. Por fim, um caminho possível para recostura desse território dilacerado é o entendimento de território atingido pelas práticas do Estado-Capital, sobretudo das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton. Contudo, essa tarefa não é tão simples, tendo em vista que a extensão espaço-temporal das afetações ainda é intangível, dificultando uma delimitação do que é o território atingido.
[6] A formação de comissões de atingidos está atrelada também ao andamento das negociações do Termo Aditivo ao Termo de Ajustamento Preliminar, que visa o diagnóstico socioeconômico para embasar a negociação do Termo Ajustamento de Conduta Final (TACF), a ser assinado em julho.
[7] HARVEY, D. 1992. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola.
Paula Guimarães
mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Indisciplinar, com parceria do Movimento dos atingidos por Barragens, e integrante do grupo Mobiliza Rio Doce, vinculado ao Programa Participa UFMG Rio Doce-Mariana.
paulaguimaraes1701@gmail.com
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