Crise, Golpe e Acumulação


10 tópicos da conjuntura do capitalismo desde a América Latina

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Bill Viola, The Raft, 2004

Neste 1° de Abril de 2017, relembrando os 53 anos do Golpe Militar que afastou Jango, a conjuntura diante de nós carrega algumas semelhanças. Os movimentos em torno da garantia de acumulação do capital, vez e outra, culminam em crises e golpes. Se em 1964 a situação econômica do país na distribuição de renda e nas reformas populares amedrontou as oligarquias nacionais e consolidou a entrada de capitais internacionais, hoje, capitalistas de todo o mundo, mais unidos do que imaginamos, empreendem um golpe de estado contra a presidenta eleita para aprovar reformas ‘impopulares’. A única certeza é que a política é a linha de frente da acumulação. E hoje, tal qual foi com o Golpe Militar, sentiremos na pele e nos ossos esse choque.

Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado.

Kafka

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O sistema de produção de valor em vigor desde o século XIX opera sobre a lógica da cidade como mais-valor[1] ou do processo de urbanização como destino seguro para os excedentes de produção industrial[2]. Em um mundo finito, chegaria o tempo em que tal tática se esgotaria. O avançado estágio de urbanização mundial[3], somado à queda das taxas de natalidade, são os fatores constituintes da gradativa queda das taxas de urbanização (embora forçosamente empurrada a limites que beiram o surrealismo, como produção de cidades totalmente vazias na China[4] e a construção de ilhas artificiais com casas de veraneios para super-ricos), proporcionalmente acompanhadas da queda das taxas de crescimento econômico. Se não há urbanização, não há grande indústria, consequentemente não há empregos, pelo menos não como os que conhecemos.

 

[1] Categoria fundacional na obra de Marx em sua teoria do valor. O termo denota a diferença entre o valor final de uma mercadoria e o salário que o trabalhador receberia para produzi-la. E não seria errado afirmar que as cidades, no capitalismo, são elas próprias mercadorias.

[2] Até pouco tempo atrás impulsionado no Brasil pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (2007) e pelo Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV (2009).

[3] 2007 foi o ano em que a população mundial passou a ser majoritariamente urbana. No Brasil a maioria urbana é uma realidade desde os anos 1960, e conta hoje com 85% da população vivendo em cidades.

 

[4] Ver Distrito de Chenggong: archdaily.com/425651/how-to-bring-china-s-ghost-towns-back-to-life

2

Isso significa uma profunda crise do capital. Suas contradições internas, marcadas pela lei da concorrência, levaram a uma forma de organizar a produção que solapa a própria base de sua existência: a criação de mais-valor. Com isso, é preciso criar estratagemas, nada além de espelhos e fumaças, cheias de sutileza metafísica e manhas teológicas, para que o capital continue a circular – mesmo que de maneira fetichista[5]. A aparente valorização automatizada do capital financeiro não passa de uma ficção e, portanto, faz parte do movimento de crise.


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Já há algum tempo a acumulação atingiu proporções contraprodutivas, gerando o que se conhece como ‘crise de sobreacumulação’. Se durante a era industrial-proletária os capitais driblaram os efeitos contraprodutivos com o estado de bem estar social, oferecendo ao proletariado adequações às reivindicações de melhores condições da reprodução da força de trabalho, com o declínio industrial os capitais substituíram a seguridade social por linhas de crédito, estágio intermediário entre a era industrial-proletária e a era da austeridade-precariada. O capitalismo sem crescimento nada mais é que o devir de um novo tempo.

 

[5] Para Marx, o verdadeiro valor (quantidade de trabalho materializado no objeto construído) só pode ser obtido durante o processo de produção, logo, o excedente da produção (mercadoria) ao ser comercializado, assume sua forma fetichista (ausência da relação com processo produtivo) de valor irreal. Freud formula o fetichismo como a dualidade de um sujeito diante de seu objeto de fetiche (comumente vinculações entre pulsões sexuais e objetos triviais como toucas de banho e sapatos), em parte, o sujeito encontra no objeto fetichizado um mais-de-gozar, e em parte reconhece que ali não há gozo, produzindo uma simultaneidade entre gozo e frustração. Interessa-nos, na intercessão das duas formulações, o seguinte: há no fetiche uma dimensão fantasmagórica e irreal, mas que encontra no comportamento uma via de prazer que impulsiona sua reprodução.

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Diagnósticos equivocados ou de má-fé acompanham as falsas esperanças dadas pelo emprego forçado da cartilha neoliberal. Banco Mundial, FMI e outras instituições financeiras se esforçam em colar o ideário do sistema da dívida às periferias do capitalismo. E, claro, as linhas de crédito que oferecem são acompanhadas de uma série de condições que obrigam esses países a ficarem de joelhos diante da acumulação de papéis, ações e dinheiro sem valor[6] nos países do centro.

 

[6] Ideia desenvolvida por Robert Kurz em sua obra teórica. É a manifestação da contemporânea desvinculação entre o dinheiro e a substância abstrata do trabalho, o valor. A multiplicação do dinheiro ocorre de maneira automatizada e independente, muito mais rápida que a cristalização de trabalho sob a forma social de valor.

5

A solução que a racionalidade abstrata do capital encontra é, como sempre, o aumento sistemático da exploração como garantia de remuneração dos capitais. A acumulação há de ser salva, à custa do prolongamento da jornada de trabalho da mão de obra remanescente, de um crescente aumento de sua intensidade e da drástica redução da proteção ao trabalho. A reestruturação trabalhista[7], que protege os capitais em detrimento dos trabalhadores, redireciona o horizonte do trabalho a uma estética e política escravagista, principalmente em países periféricos que, devido a sua condição de dependência e subalternidade, se encontram, na divisão do trabalho, como responsáveis pela transferência de valor para os capitais sediados nos países centrais.

[7] No dia 31/03/2017 foi sancionada a PL 4302/1998 que flexibiliza a terceirização.

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Isso indica que a condição da classe trabalhadora na periferia global é muito mais precária. O sistema de superexploração coloca homens, mulheres e, não raro, idosos[8] e crianças[9] num regime exaustivo de subemprego precário para garantir a manutenção da produção de mais-valor. É essa a interpretação que temos que ter quando levamos em conta as paisagens precárias e expansivas das favelas, os gigantescos e especulados deslocamentos até o trabalho, a violência estrutural e outras mazelas sociais que assolam historicamente esses países. Com a crise do capital, a tendência não pode ser outra que não o aumento estratosférico da expressão dessa condição, bem como da acumulação.

 

[8] Em disputa de regularização pela legislação golpista junto à PEC 287/16 – Reforma da Previdência.

 

[9] Mais de cinco milhões de crianças entre 5 e 13 anos trabalhavam, em 2016, de maneira ilegal no Brasil. A grande maioria submetida a trabalhos precários e de alto risco, como catadores de material reciclado em lixões.
 

7

O golpe anuncia a retomada da agenda da privatização com intensidade não vista desde os Fernandos (Collor de Melo e Henrique Cardoso), lançando, especificamente com a entrega do pré-sal, uma pá de cal sobre o que restava da soberania nacional. Parte das novas privatizações vêm acompanhadas de certas sofisticações[10], destaque para o modelo de seguridade das concessões em Parceria Público-Privada, em que os lucros ficam com as empresas e os prejuízos com o Estado, conferindo ao envelhecido sistema capitalista a virilidade que exige de si no mercado financeiro. Talvez, o maior prejuízo vinculado às privatizações sejam as alterações nos eixos de rigor no interior das relações de produção. Casos como o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana-MG (2015), a crise hídrica no Estado de São Paulo (2014), os apagões em escala nacional (2001), estão diretamente ligados à avidez financeira acampada na operação de serviços vitais ao povo brasileiro. Não é diferente a situação da Argentina, com a eleição de Maurício Macri, que tomou como uma de suas primeiras medidas um acordo com os fundos abutres, mantidos por investidores internacionais que esperam ganhar cerca de 1600% com o investimento realizado[11].

 

[10] O que inclui operações que hibridam mídia, STF e Polícia Federal, no ataque direto ao agronegócio, às construtoras e oligarquias nacionais.

[11] Esses investidores operam da seguinte maneira: 1) comprando títulos de dívida desvalorizados no mercado secundário, a um preço muito mais baixo que o do seu valor real; 2) recusa-se a participar em acordos de reestruturação com o Estado endividado; 3) e, por fim, passa exigir pela via judicial, incluindo embargos e outras penalidades, o pagamento total da dívida, o que pode implicar na soma do valor nominal mais juros e eventuais multas.

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À vida cotidiana e popular, o golpe anuncia o achatamento das possibilidades de trabalho. Esse estreito horizonte revela apenas a patológica combinação de empreendedorismo, terceirização e austeridade, claramente nociva à saúde da classe trabalhadora, acompanhado da intensificação de acidentes, doenças do trabalho e depressão, que, simultâneos ao declínio do Sistema Único de Saúde[12], configuram o cenário de um desastre. A acumulação por espoliação[13], ou seja, o saque da renda das populações mais vulneráveis, seguirá com a alta dos juros, dos aluguéis e das passagens que subirão (como já o fazem) mais que do a inflação, enquanto os salários reais irão encolher ano após ano. O desemprego, cada vez mais, se tornará o fôlego para que, diante de um sistema de assistência social rarefeito, a população precarizada possa se mobilizar e cuidar de si mesma, e quem sabe, de quando em vez, ser financiada pelos mesmos bancos (travestidos de fundações caridosas) responsáveis pelo legado da precarização.


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O golpe, enquanto inflexão econômica e social no Brasil, cumpre algumas funções: 1) econômica, diante da crise nos regimes de acumulação e a passagem para sua forma fictícia, a saída é a intensificação das explorações sistemática como forma de continuar extraindo e acumulando mais-valor; 2) legislativa, de reformular o Estado como anteparo entreguista e colonial para a estância confortável dos capitais internacionais na nova ordem de acumulação de valor, não mais por produção, mas por espoliação; 3) geopolítica, agravando o processo de recolonização da América Latina, o golpe leva à falência ou à privatização dos setores produtivos nacionais, cumprindo seu papel de posicionar no globo os países falidos e aqueles que ainda serão os remanescentes do setor produtivo, enquanto China e Rússia (potências bélicas), mantêm as atividades industriais, o Brasil, junto a todo o Sul Global, protagonizarão a falência do setor produtivo; 4) moral, ao solver as estruturas nacionais pela via de uma política reacionária, sexista, racista e violenta, o golpe veste o Estado como frágil e passivo, condiciona a população ao lugar da vergonha e da culpa, produzindo uma nova condição de mal estar na sociedade.

Imagem por Rafael Lage/Divulgação – Carta Capital
[12] Aprovada e em andamento, a PEC 55, que prevê 20 anos de recessão dos investimentos em saúde e educação.

[13] Ideia formulada por David Harvey na obra O Novo Imperialismo. Ed. Loyola, 2004


Bem-vindo ao deserto do real. Estamos navegando no veleiro destroçado de Kafka

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Bem-vindo ao deserto do real. Estamos navegando no veleiro destroçado de Kafka. O capitalismo como conhecemos, em estado terminal, já apresenta suas convulsões e abre as portas de um novo tempo do mundo. Se há uma única vantagem nessa conjuntura é que ela coloca às claras o Real, duro e cru. Isso nos localiza mais próximos do colapso total da nossa modernidade tardia. Um naufrágio certamente nos oferece aberturas e novas linhas de fuga, mas que não vêm acompanhados de qualquer garantia de melhora. Se vivermos este fim da história ele não será um final feliz. Afinal, nada não é tão ruim que não possa piorar e, no caso do capitalismo, essa parece ser a formulação mais verdadeira.

 

Imagem por Rafael Lage/Divulgação – Carta Capital

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles.
thiago.canettieri@gmail.com

Bernardo Neves

Mestrando em arquitetura e urbanismo no NPGAU-UFMG, com enfoque em movimentos sociais e planejamento urbano insurgente, pesquisador do Indisciplinar-UFMG.
bnp.arquiteto@gmail.com

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