Medida Provisória 759: gestão capitalista das Cidades, Estado de Exceção e o sistema do Golpe de 2016

Como a MP 759 de regulamentação fundiária é inconstitucional e visa manter a relação de dominação da Casa Grande sobre as maiorias através do endividamento da população.

No apagar das luzes de 2016, ano em que o Brasil sofreu um Golpe de Estado, Michel Temer, ilegitimamente empossado presidente, aprovou a Medida Provisória 759. A norma de 22 de dezembro de 2016, provoca um desmonte do sistema de regularização fundiária urbana e rural, regula mecanismos de alienação de imóveis da União favorecendo grandes proprietários, dispõe sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, favorecendo grileiros e possibilitando o avanço do capital sobre o meio ambiente, dentre outras providências danosas ao povo brasileiro.

A MP se insere no rol de medidas antidemocráticas que visam aprofundar no país o modelo neoliberal de apropriação dos nossos corpos e territórios. Junto com outras medidas como as reformas da previdência e trabalhista, a limitação dos gastos públicos e a entrega de campos do pré-sal brasileiro, a MP emerge da crise política brasileira e se sustenta nos pilares sagrados da propriedade privada, do sistema financeiro e da desconstitucionalização do pacto político de 1988, colocando fim ao arranjo político da Nova República.

A MP se sustenta nos pilares sagrados da propriedade privada, do sistema financeiro e da desconstitucionalização do pacto político de 1988, colocando fim ao arranjo político da Nova República.

Tal norma surge de um ato inconstitucional, uma vez que contraria o artigo 62 da Constituição Federal de 1988, que prevê que o Presidente da República pode, somente em caso de relevância e urgência, adotar Medidas Provisórias com força de lei. No caso da MP 759, há uma inconstitucionalidade expressa, já que não há relevância e urgência alguma na regulação da matéria a não ser a busca pela facilitação da gestão capitalista do campo e das cidades.

Além disso, a MP foi construída de forma unilateral pelo Governo Federal, que não consultou os principais agentes políticos envolvidos nos processos de regularização fundiária, tais como os movimentos sociais, outros entes da Federação (Estados e Municípios), órgãos institucionais de Política Urbana e Agrária dentre outros atores.

O Governo Golpista, ao fazer isso, aprofundou o Estado de Exceção no âmbito da Questão Urbana, ferindo de morte o princípio da gestão democrática das cidades, transfigurado no princípio da gestão capitalista das cidades.

Todo um processo de décadas de construção minimamente democrática da legislação jurídico-urbanística brasileira e de debate público foi desconsiderado, uma linha temporal que teve um marco importante no processo Constituinte de 1988 e que logrou aprovar o primeiro capítulo de Política Urbana da história constitucional brasileira (Arts. 182 e 183 da CF-88), passando depois pela promulgação do Estatuto das Cidades (Lei 10.257-2001), dentre outras legislações importantes.

A MP revoga uma série de dispositivos legais, tais como parte da Lei 11.977/2009, do Minha Casa, Minha Vida, no que se refere às normas de regularização fundiária de assentamentos urbanos. Além disso, acaba com princípios expressos do Estatuto das Cidades (Lei 10.257-2001),  que regem a Política e o desenvolvimento urbano e paralisa procedimentos de regularização fundiária que já estavam em curso pela lei do Minha Casa, Minha Vida.[2]

Na MP 759, aparece a figura da Regularização Fundiária Urbana – Reurb que prevê, dentre os seus objetivos, a ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, a promoção da integração social e a geração de emprego e renda, a garantia do direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas e o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade de forma a garantir o bem estar de seus habitantes. No entanto, na exposição de motivos da MP 759, aparece o real objetivo de tal espécie normativa: “É que o reconhecimento, pelo Poder Público, dos direitos reais titularizados por aqueles que informalmente ocupam imóveis urbanos, permite que estes imóveis sirvam de base para investimento do capital produtivo brasileiro, à medida que poderão ser oferecidos em garantia de operações financeiras, reduzindo custos de crédito, por exemplo.”[3]

O Senador golpista Romero Jucá, relator da MP 759, deixa claro em entrevista à TV Senado em 25/04/2017 que o objetivo da norma é “(…) No sentido de isso poder representar também um fortalecimento à microeconomia, porque na hora em que você tem uma terra regularizada, essa terra pode ser dada em garantia para que haja produção”[4]. Ou seja, a titularidade da propriedade facilitaria o crédito, mas gera o endividamento das famílias empobrecidas e o enriquecimento dos banqueiros pela movimentação do mercado financeiro, além de facilitar  a expulsão e gentrificação das pessoas de suas casas pela força da especulação imobiliária.

A titularidade da propriedade facilitaria o crédito, mas gera o endividamento das famílias empobrecidas e o enriquecimento dos banqueiros pela movimentação do mercado financeiro

Tal linha política nada mais é que a malfadada tentativa de aplicação no Brasil das ideias de Hernando de Soto, economista peruano, para quem o acesso à ordem fundiária formal com consequente acesso ao crédito pode fomentar o desenvolvimento econômico, combater a pobreza e aquecer a economia. Frisa-se que tal proposição empreende uma gestão financeira da regularização fundiária por via da atribuição de títulos de propriedade individual aos ocupantes que a partir daí se integrariam ao mercado financeiro formal.

A financeirização das terras é um fenômeno que vem se tornando cada vez mais frequente nas cidades brasileiras. Um exemplo que evidencia esse fenômeno são metrópoles como Belo Horizonte, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, onde terrenos municipais, fundos públicos e os Impostos sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) foram transferidos para a gestão de empresas criadas pelas Prefeituras, que movimentam o mercado imobiliário a partir das dívidas e do patrimônio municipal. O mesmo ocorre hoje no nível estadual em Minas Gerais, onde o governador Fernando Pimentel apresentou um Projeto de Lei (PL) 4.135/17 para transferir imóveis públicos estaduais para um fundo e a venda de cotas desse fundo para investidores, possibilitando a captação de recursos e financiamento de investimento e capital de giro.

Desde a Lei de Terras de 1850, é sacramentada a propriedade privada no Brasil favorecendo grileiros e latifundiários e restringido o acesso à terra em um período pós-abolição da escravidão. Em igual sentido, a MP 759 não observa, de fato, as reais necessidades de quem tem o seu direito à moradia sonegado, mas preocupa-se com a engrenagem de reprodução financeira da terra. Assim sendo, sacraliza ainda mais a propriedade privada da terra, reforçando uma injustiça histórica e a readequa às necessidades especulativas do mercado financeiro.

A MP 759 não observa as reais necessidades de quem tem o seu direito à moradia, mas preocupa-se com a engrenagem de reprodução financeira da terra.

E de nada adianta distribuir títulos de propriedade de um lado e, de outro, aprovar a “PEC do fim do mundo”, hoje Emenda Constitucional 95-2016. Qual justiça social se busca ao distribuir títulos de propriedade e, ao mesmo tempo, congelar os investimentos públicos reduzindo recursos para áreas como educação e saúde[5]?

Nesse ponto, é preciso abordar o sistema do golpe de 2016 que busca essencialmente aprofundar a superexploração dos trabalhadores e mitigar a soberania nacional: transformar cidadãos em proprietários e proprietários em consumidores, abrir flanco para a apropriação e financeirização da terra. Esse é o verdadeiro plano dos golpistas. Ele se desdobra em ataques diretos aos direitos trabalhistas e previdenciários e se expressa, também, territorialmente ao sonegar investimentos públicos em serviços essenciais que poderiam reduzir a segregação socioespacial nas periferias brasileiras.

A questão de fundo das disputas territoriais hoje no Brasil é que a concentração fundiária está atrelada à concentração do poder político. A propriedade funciona nesse cenário como relação social de dominação da Casa Grande sobre as maiorias que não irão efetivar seus direitos sociais com essa política de regularização fundiária fundada na gestão capitalista das cidades.

A propriedade funciona como relação social de dominação da Casa Grande sobre as maiorias que não irão efetivar seus direitos sociais.

Titular propriedades sem a garantia de concretização dos direitos fundamentais, notadamente os direitos a educação, saúde, lazer, trabalho, alimentação, transporte público, e com o intuito apenas de fomentar o mercado de créditos é fazer uma anti-Reforma Urbana. Fazer uma regularização fundiária sem enfrentar a apropriação capitalista das cidades e sem recuperar as mais valias fundiárias geradas por investimentos públicos no espaço urbano é manter o sistema de aliança entre capital-Estado na reprodução das cidades.

Diante desse cenário, é preciso afirmar que a luta de classes se expressa espacialmente e ganha relevo nas lutas periféricas enraizadas no cotidiano do povo trabalhador. A resistência dos territórios periféricos aos golpes aliada à luta pelo direito à cidade, nesse cenário, é estratégica.

[5] Leia mais sobre a “PEC do fim do mundo” e a financeirização das cidades no InDebate:

O neoliberalismo determinando a dinâmica escolar
http://indebate.indisciplinar.com/2017/03/28/o-neoliberalismo-determinando-a-dinamica-escolar/

A financeirização das políticas públicas e da gestão nas cidades
http://indebate.indisciplinar.com/2017/02/16/a-financeirizacao-das-politicas-publicas-e-da-gestao-nas-cidades/

Luiz Fernando Vasconcelos

Mestre e doutorando em Direito pela UFMG, advogado popular e militante das Brigadas Populares em Minas Gerais.

Isabella Gonçalves Miranda

Doutoranda em Ciência Política pela UFMG, assessora em co-vereança do mandato das “Muitas: pela Cidade que Queremos” e militante das Brigadas Populares em Minas Gerais.

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