Operações que simplificam: o caso das torres de Santa Tereza

O projeto das torres de Santa Tereza é um reflexo do planejamento urbano que vem sendo realizado em Belo Horizonte e outras cidades: a produção de espaços que seguem a lógica do privado, da vigilância e da mercantilização.

No Plano Diretor Municipal de Belo Horizonte do ano de 1996, ainda vigente, foi criada a Área de Diretrizes Especiais de Santa Tereza – ADE de Santa Tereza – com o intuito de preservar a paisagem e os usos do bairro e evitar a especulação de suas terras urbanas por meio, por exemplo, de limitações na altimetria das edificações para controlar a verticalização. Entretanto, os limites do bairro não coincidem inteiramente com a mancha da ADE. Nesse sentido, fora da área protegida existe uma área minuciosamente recortada que tem se tornado, nos últimos anos, território de disputa.

Para a comunidade local, o ano de 2013 foi um marco no conjunto desses processos em função de uma proposta de empreendimento da PHV Engenharia e do escritório de arquitetura de Bernardo Farkasvölgyi. As empresas parceiras pretendiam construir a maior torre da América Latina aproveitando-se de um terreno às margens da via férrea e do Ribeirão Arrudas – um dos limites do bairro – e estendendo suas intervenções sobre a Vila Dias e a antiga Fábrica de Pregos São Lucas – exemplar da arquitetura industrial do início do século XX ainda remanescente no tecido da cidade e que é objeto de avaliação para tombamento a partir de um  abaixo assinado organizado pelo Movimento Salve Santa Tereza que foi entregue, também no ano de 2013, ao Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural. Naquele momento, por uma série de fatores, dentre eles a pressão de moradores do bairro que fazem parte e que apoiam o movimento, a iniciativa da torre foi engavetada. Mas no ano de 2016, os mesmos atores reapareceram trazendo uma nova proposta para a área: três torres envidraçadas de escritórios, com 80m de altura e mais de 1.500 vagas de estacionamento, ocupando uma área de 26.354m2. Empreendimento cujo nome busca arrefecer as  características de sua própria vertente empresarial e privatista: “Praça da Cidade”.

A “Praça da Cidade” nada mais é do que uma esplanada em altura com uma passarela de ligação entre shoppings, embaixo da praça uma enorme fachada cega com 4 pavimentos abriga as mais de 1.500 vagas de estacionamento prometidas.

A praça cujo projeto dá nome ao empreendimento nada mais é do que uma esplanada em altura com uma passarela de ligação entre shoppings – de um lado o Boulevard, de outro a área comercial do edifício. Embaixo da praça uma enorme fachada cega com 4 pavimentos abriga as mais de 1.500 vagas prometidas pelo empreendimento.

Esse conflito é apenas um reflexo do planejamento urbano que vem sendo realizado na cidade de Belo Horizonte, resultado de  redes de poderes/saberes das quais  especuladores e empresas da construção civil fazem parte e que evidenciam as ações do mercado imobiliário com vistas a fomentar e incrementar o uso da terra urbana como commodity. Em Belo Horizonte, a atuação conjunta desses setores agiu de forma a demarcar, nos últimos anos, 30% do território da cidade para a realização de Operações Urbanas Consorciadas (OUCs)  – instrumento já previsto no Plano Diretor Municipal de 1996. Essas operações vêm sendo realizadas no país desde a década de 80 – embora tenham sido incorporadas, apenas em 2001, no Estatuto das Cidades com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental – muitas vezes, às custas de remoção da população pobre de áreas de interesse do mercado imobiliário, gerando processos de gentrificação.

 

[Img 1] Foto inserção das três torres da PHV a partir da Av. dos Andradas – Fonte: Santa Tereza Tem, disponível em https://goo.gl/s6G2zh

Seguindo a lógica da OUC, mas de caráter mais pontual, a prefeitura de Belo Horizonte incluiu na revisão do Plano Diretor, no ano de 2010, as Operações Urbanas Simplificadas (OUSs). Segundo o texto da lei, as OUCs devem sempre ser motivadas pelo interesse público para a realização de intervenções de requalificação e tratamento de áreas públicas, a partir de parcerias com o setor privado contando com a flexibilização das leis urbanísticas. É essa ferramenta que cria as condições para a apresentação e tentativa de aprovação nas instâncias cabíveis das três torres que se pretendem “Praça da cidade”.

De modo mais objetivo, esse instrumento permite a utilização de coeficientes de aproveitamento (CAs) maiores do que o permitido pela legislação para a construção de empreendimentos particulares tais como edifícios residenciais e comericias de médio e alto padrão a partir da garantia de contrapartidas que buscariam mitigar ou compensar os impactos gerados por tais empreendimentos. O que se tem visto, entretanto, é que essas mesmas contrapartidas acabam por criar condições ainda melhores e mais eficientes para a instalação dos empreendimentos, ou seja, os grupos envolvidos ganham duplamente: constroem mais e “compensam” de modo a beneficiar seu próprio negócio, sem participação popular e a despeito das necessidades das comunidades que serão impactadas.

O que se percebe nesse caso é que Santa Tereza, bairro tradicional de Belo Horizonte, mesmo contando com as restrições protetivas trazidas pela ADE e, mais recentemente, com a proteção de novas diretrizes propostas pela Fundação Municipal de Cultura através do “Dossiê para Proteção do Conjunto Urbano do Bairro de Santa Tereza” não está de fora da onda neoliberalizante que se alastra sobre os espaços das cidades. No caso mais específico das torres, a OUS foi a forma utilizada para flexibilizar a legislação vigente com o intuito de alavancar novos usos que vem sendo tentados, já há alguns anos, para o vetor Leste da cidade e que teve o Boulevard Shopping – que teria com os novos usuários das torres uma expansão de seu público consumidor – como modelo para o crescimento futuro da região.

As praças da cidade são muitas, o que se esconde por trás do lançamento de um empreendimento batizado de “Praça da Cidade” é uma ressignificação da produção de espaços que seguem a lógica do privado, da vigilância e da mercantilização.

As praças da cidade são muitas, o que se esconde por trás do lançamento de um empreendimento batizado de “Praça da Cidade” é – para além de uma redução da multiplicidade do que uma praça implica por meio de uma proposta hermética –  uma ressignificação da produção de espaços que seguem a lógica do privado, da vigilância e da mercantilização como um ato beneficente, benevolente e voluntário de grandes empresas como criadoras e geradoras de espaços comunitários para a cidade. Entretanto, são essas empresas que tem sido responsáveis pela descaracterização do caráter público de nossos equipamentos e espaços urbanos. As praças da cidade já existem e não são criadas por operações que simplificam pelo capital as relações possíveis de se tornarem espaço.

Karine Carneiro

Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFOP, doutora em Ciências Sociais pela PUC-MG, mestre em sociologia com ênfanse em Meio Ambiente pela UFMG e pesquisadora do grupo Indisciplinar.
carneirokari@gmail.com

Brenda de Castro

graduanda em arquitetura e urbanismo, pesquisadora da frente Urbanismo Biopolitico no grupo de pesquisa Indisciplinar.
brendacastro.goncalves@gmail.com

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