A reforma do ensino médio e a perpetuação do golpe

Como a reforma do ensino médio e o projeto de cobranças de mensalidade em Institutos Federais antecipam os movimentos de financeirização da educação

O ensino médio brasileiro é considerado um funil para o sucesso da universalização da educação no país. 39,6% dos jovens entre 15 e 17 anos não estão na escola e 28,2% compõem a taxa de distorção idade-série, calculada pensando que a criança entra no 1º ano do ensino fundamental com 5-6 anos (realidade de quase 98% de nossas crianças) e deveria chegar ao ensino médio entre 14 a 16 anos[1]. Diversos indicadores confirmam que o fracasso do ensino médio se deve à incapacidade do curriculum em lidar com a realidade dos jovens brasileiros, seus interesses e objetivos escolares. O mapa abaixo, retirado do documento do Censo Escolar 2016, demonstra como a distorção idade-série acompanha a realidade socioeconômica do Brasil, confirmando quais jovens são expulsos de nossas escolas.

[1] Dados do Censo Escolar 2016 que podem ser acessados em http://portal.inep.gov.br/censo-escolar

Apesar destes dados alarmantes, a reforma do Ensino Médio, determinada pelo presidente não eleito, foi rejeitada de forma unânime por professores e pedagogos. Para entendermos as razões que fazem o corpo docente brasileiro se posicionar sistematicamente contra o atual governo, é preciso pensarmos nos impactos que a ruptura com a democracia trouxe para o país. Além da falta de clareza sobre o orçamento disponível para a reforma, o governo encerrou a Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio, presidida pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que desde 2013 reunia diversos professores e pesquisadores para pensar os termos da necessária reforma.

A MP do ensino médio é um mecanismo de exceção, anulando, assim, a necessidade de discussão no poder legislativo.

Mapa 1: Taxa de distorção idade-série do ensino médio por municipio / 2016

No site da Câmara dos Deputados, lemos que “A Medida Provisória (MP) é um instrumento com força de lei, adotado pelo presidente da República, em casos de relevância e urgência”[2]. É um mecanismo de exceção usado quando não se pode esperar o debate público para que a ação seja iniciada, cuja competência de apresentação é dada exclusivamente ao poder executivo, anulando, assim, a necessidade de discussão do poder legislativo. Certamente, a organização curricular das escolas brasileiras, proposta pela primeira vez no país, não configura um caso de urgência, e a escolha por pô-la em prática através de medida provisória só confirma o autoritarismo desse governo.

Durante a presidência de Dilma, a Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio tinha uma escala de reuniões e já debatia um Projeto de Lei[3], além de trabalhar na criação de uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC)[4]. Com o golpe parlamentar-jurídico-midiático que a afastou, levou Temer para a presidência e Mendonça Filho para o Ministério da Educação, as atividades da BNCC foram paralisadas e todos os debates sobre os rumos do ensino médio foram decididos arbitrariamente e em meio a medidas que reforçam o desinteresse do governo por uma educação pública de qualidade, como a PEC 241/55. Atualmente, no site da BNCC, constam apenas as atas das últimas reuniões, de agosto de 2016, o que deixa os pesquisadores apreensivos sobre quem está responsável por organizar o curriculum que deveria entrar em vigor no próximo ano. Importante dizer que a BNCC do ensino infantil e fundamental foi aprovada pelo MEC essa semana, e a do ensino médio teve sua data prorrogada por tempo indeterminado.

Junto a isso, o governo golpista segue anulando outros importantes instrumentos para a promoção da escola e a aproximação dos jovens do cotidiano escolar, como a Olimpíada de Matemática e o concurso de redação “Construindo a igualdade de gêneros”, que não têm verba confirmada para este ano. Além disso, uma das primeiras medidas de Temer foi convidar a tucana Maria Ines Fini, que trabalhou com FHC e Serra, para ocupar a presidência do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Um ano depois de sua posse, o banco de dados do ENEM, forma pela qual as questões eram produzidas e avaliadas, foi desconstruído, e a promessa é de drásticas mudanças no exame deste ano. Maria Helena Guimarães de Castro, que tem sido parceira de Fini desde o governo FHC e atualmente ocupa o cargo de secretária executiva do MEC, afirmou em uma reunião realizada no dia 16/02, que as universidades brasileiras precisarão cobrar mensalidade para se adequar ao “mundo real”[5], decisão que provavelmente atingiria também os Institutos Federais, onde estão matriculados 12% dos estudantes de ensino médio e cuja média no ENEM é superior à das escolas particulares[6]. Embora veículos da imprensa tradicional tenham dito que suas falas, publicadas pelo Jornal do Professor, foram deturpadas, Castro se recusou a se pronunciar publicamente sobre o tema.

Ao mesmo tempo em que a educação pública vai sendo desmontada, a iniciativa privada vê nas escolas brasileiras uma ótima oportunidade de investimento

Ao mesmo tempo em que a educação pública vai sendo desmontada, a iniciativa privada vê nas escolas brasileiras uma ótima oportunidade de investimento. Em um artigo publicado em 19 de março no jornal La Vanguardia, de Barcelona[7], Andy Robinson demonstra como o interesse da Fundação Lemann na educação (o grupo, que acaba de inaugurar a Escola Eleva no Rio de Janeiro, mantém a Fundação Estudar, destinada a conceder bolsas para estudantes brasileiros) corre paralelamente a outros investimentos de seu fundador, Paulo Lemann, dono de marcas como a Budweiser e Burger King e considerado atualmente o homem mais rico do Brasil, com um patrimônio de mais de 25.000 milhões de euros. Lemann, que já é acionista de vários institutos de educação superior no país, acaba de direcionar 80 milhões de reais para a educação básica, cujas ações são inauguradas pela Escola Eleva. Como Robinson mostra, ao lado de Lemann, outros grandes grupos, como o Bahema e o SEB, compraram ações de escolas da brasileiras. Vários acionistas dos três grupos são colaboradores do MBL (Movimento Brasil Livre).

A deposição de uma presidenta democraticamente eleita através um processo de impeachment sem crime de responsabilidade e o cotidiano de decisões arbitrárias e contrárias ao desejo popular e ao plano de governo escolhido pela população configuram o fim de um período democrático no Brasil. Certamente não é coincidência que as escolas sejam alvo desse ataque, já que, além de uma oportunidade de investimento quando a política de separação das classes sociais se torna determinante, o espaço representa a abertura da convivência social e do debate político.

Fernanda Dusse

Fernanda Dusse

Professora do CEFET-MG, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFMG, com enfoque em literaturas contemporâneas e a relação entre estética, ética e política.
fernandadusse@gmail.com

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