O caso do banheiro público do baixio do Viaduto Santa Tereza serve como alegoria do processo de gentrificação pelo qual o centro de Belo Horizonte vem passando nos últimos anos.
Fotografia por Pablo Bernardo, Duelo de MCs Nacional 2016
Sabe-se que o centro de Belo Horizonte é território de conflitos entre vários interesses econômicos, sociais, culturais e históricos. A região da Praça da Estação é o epicentro da Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos – Via Leste-Oeste[1] e de diversos projetos de revitalização da cidade, bem como de diversos movimentos sociais e culturais de resistência política de enorme importância no debate público sobre a cidade nos últimos anos[2]. Ali, está latente a oposição entre o urbanismo neoliberal que compreende o território urbano a partir da lógica da rentabilidade e o urbanismo biopotente dos movimentos sociais urbanos, que atua por lógicas autônomas, vivências próprias e territorialidades contra-hegemônicas.
A discussão em torno da necessidade de instalação de banheiros públicos resume os processos socioespaciais pelos quais a região vem passando. As seguidas reivindicações dos movimentos que atuam nesse espaço, o descaso constante do poder público e, por fim, a solução milagrosa recentemente proposta exemplificam com perfeição as etapas do processo de gentrificação[3] descritas por Neil Smith, como veremos adiante.
[1] para entender o que é uma OUC: http://migre.me/wACDq; sobre a OUC-ACLO: http://migre.me/wACF8
[2] para saber mais sobre os interesses em jogo na região: http://migre.me/wuN7b
[3] para saber mais sobre gentrificação: http://migre.me/wuN7Q;
Breve histórico
Desde 2007, o baixio do Viaduto Santa Tereza é ocupado por uma série de atividades culturais, que envolve batalhas de MC’s, skate e dança de rua, organizadas pelo coletivo Família de Rua[4]. A ocupação cultural do espaço, iniciada por esse grupo, se somou a outras formas de manifestação, fazendo surgir, ao longo do tempo, uma série de demandas políticas, que incluíam reivindicações relativas às condições infra-estruturais do espaço: iluminação, banheiro público, ponto de energia, lixeiras, liberação do alvará.
Após reiterados pedidos, em 2009, a Prefeitura colocou banheiros químicos e lixeiras móveis durante a realização do Duelo de MC’s pela primeira vez. Para além do fornecimento pontual da infra-estrutura, pleiteava-se a instalação de banheiros públicos permanentes no local, o que permitiria que seus usuários e frequentadores pudessem utilizá-los cotidianamente, e não apenas durante os eventos. A ausência de instalações sanitárias adequadas na região tornava a área atrás do palco um banheiro a céu aberto, impróprio a outros usos possíveis.
[4] para saber mais detalhes desse histórico: http://migre.me/wuNls
Num protesto-ação feito para denunciar o descaso da Prefeitura com a qualidade sanitária do local, organizou-se a LavaAção, descrita pela pesquisadora Paula Bruzzi Berquó:
Em 27 de abril de 2012, tem-se, no baixio do Viaduto Santa Tereza, a LavAção, ato articulado entre a Família de Rua, o coletivo Fora do Eixo, o núcleo de Arte e Ativismo do grupo de teatro Espanca, os envolvidos com o espaço cultural Nelson Bordello, os integrantes do BAixo BAhia Futebol Social e a população de rua local. A ação, pensada como ato de interação entre os diversos agentes que compunham o espaço, consistiu na realização de uma espécie de mutirão para a limpeza da área, com foco nas calçadas situadas sob o Viaduto Santa Tereza e na escadaria que liga o seu baixio ao nível da pista de rolamento de veículos (Figura 57). Apesar de sua pequena escala, tratou-se de um ato fortemente simbólico: a partir de uma interferência conjunta naquele território, possibilidades, ainda que incipientes, pareciam emergir no sentido de apontar caminhos para uma sua construção de fato mais democrática e inclusiva. (fl. 157)
[Img1] Foto: Ludmilla Zago, utilizada no Seminário: A razão neoliberal ataca o território realizado durante o Verão Arte Contemporânea-2017 (VAC-2017)
Em 2013, com o anúncio do Corredor Cultural da Praça da Estação e do projeto de reforma do viaduto, a Prefeitura prometeu a reforma dos banheiros existentes e a sua posterior liberação para uso da cidade. Durante as reuniões públicas para apresentação dos dois projetos, membros da sociedade civil questionaram, por várias vezes, a indisponibilidade dos banheiros públicos, sendo que a resolução desse conflito foi um dos pontos considerados prioritários pela Comissão de Acompanhamento do projeto.
As obras do Viaduto se iniciaram apenas no segundo semestre de 2014, após a Copa do Mundo, e duraram até 2017, totalizando um tempo superior ao da própria construção desse patrimônio belo-horizontino, que durou cerca de 2 anos.
Durante uma reunião do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação no final de 2015, foi perguntado ao representante da Regional Centro-Sul, órgão responsável pela administração do Viaduto, sobre a possibilidade de liberação dos serviços sanitários ainda naquele ano ou, pelo menos, antes do carnaval do ano seguinte. A Regional Centro-Sul informou que não seria possível a disponibilização em 2015, devido à falta de orçamento.
Em 2016, a primeira parte das obras, na área em que se localizam os banheiros públicos, foi entregue à população, porém, sem a abertura dos sanitários. As razões alegadas pela Prefeitura eram a falta de orçamento, a dificuldade de manutenção e conservação e a impossibilidade de repassar a administração dos sanitários a um agente privado, diante da pouca rentabilidade do negócio.
É curioso que a Prefeitura possa gastar R$ 2 milhões de reais por ano limpando pichações e não tenha orçamento nem capacidade para manter e conservar um singelo banheiro público.
É curioso que uma Prefeitura responsável por administrar um município com quase 3 milhões de habitantes e que despende, por exemplo, alardeados R$ 2 milhões de reais por ano limpando pichações em viadutos não tenha orçamento e nem capacidade administrativa para manter e conservar um singelo banheiro público.
O descaso da Prefeitura com os banheiros públicos do Viaduto Santa Tereza parece ser proposital. Primeiro, abandona-se a região para que, posteriormente, como se fosse a única solução possível, sejam implementados projetos de revitalização, em parceria com agentes privados. É essa a descrição feita por Neil Smith:
Cada vez menores quantidades de capital são canalizadas para a manutenção e restauração dos edifícios localizados na área central. Isso resulta naquilo que denominamos um diferencial (rent gap) entre a atual renda da terra capitalizada pelo uso presente (deteriorado) e a renda da terra potencial, que poderia ser capitalizada pelo “mais elevado e melhor” uso da terra (ou, ao menos, comparativamente “mais elevado e melhor” uso), em virtude da sua localização centralizada. (…)A maior parte das cidades no mundo capitalista avançado experimentou tal fenômeno, em maior ou menor intensidade. Onde o processo é desobstruído para trilhar seu caminho em nome do livre mercado, ele leva a um abandono substancial das propriedades localizadas nas áreas centrais. Essa desvalorização do capital investido no ambiente construído afeta as propriedades de todos os gêneros: comercial e industrial, bem como residencial. (…) Em um nível mais básico, é o deslocamento do capital para a construção de paisagens suburbanas e o consequente surgimento de um rent gap que cria a oportunidade econômica para a reestruturação das áreas urbanas centrais. A desvalorização da área central cria a oportunidade para a revalorização dessa parte “subdesenvolvida” do espaço urbano.
A solução milagrosa: revitalização por meio da permissão de direito real de uso à CUFA
Eis que, em um dos últimos atos de seu governo, no dia 30 de dezembro de 2016, o ex-prefeito Márcio Lacerda assinou o Decreto 16.537/16, que concedeu o direito de permissão de direito real de uso do Viaduto Santa Tereza à CUFA-MG (Central Única das Favelas), concomitante à outorga de uso de outros quatro baixios de viadutos a outras entidades privadas. O ex-mandatário, que foi tão combatido pelos movimentos sociais e culturais atuantes naquela região durante seus 8 anos de mandato, deixava um verdadeiro “presente de grego” para a cidade, em mais uma tentativa de revitalizar/gentrificar aquele território.
Depois de despender muito dinheiro público com as obras do Viaduto Santa Tereza, que foram precedidas, desde o início do século, por outras grandes obras públicas e investimentos privados na região, a Prefeitura cedeu a gestão do espaço a uma entidade privada, a CUFA.
A outorga foi formalizada por meio de um termo de permissão de direito real de uso, firmado entre o Munícipio de Belo Horizonte e a CUFA (as questões jurídicas pertinentes serão abordadas posteriormente, em outro texto).
A partir da leitura do projeto apresentado pela CUFA, podemos perceber algumas evidências de que, após anos de abandono daquela área, a Prefeitura apresenta agora uma solução milagrosa para todos os problemas nunca antes resolvidos. Nesse tipo de projeto de revitalização, é comum que a promoção da cultura sirva de justificativa para sua implementação.
No projeto apresentado pela CUFA, são destacados sinais de abandono do Viaduto, que precisam ser combatidos para que um “bom uso do local” seja retomado:
[Img2] LavAção no Viaduto Santa Tereza – Foto: CASA FORA DO EIXO MINAS, 2012.
A área tem iluminação insuficiente, pichações em locais inadequados e sem ordem, sinais de vandalismo em parte da estrutura arquitetônica do viaduto, banheiros vandalizados (projetados à época da execução) e fechados por não estarem em condições de uso, bem como a área no seu entorno (quadra de basquete) utilizada como banheiro público por usuários de drogas, flanelinhas, o que torna o local insalubre, com mau cheiro e não sendo utilizado para o fim destinado.
O uso inadequado e apropriação indiscriminada do espaço propicia a utilização de drogas e abrigo para usuários e outras pessoas em situação de rua. O clima de insegurança, insalubridade, aparência e fama negativa afasta bom uso do local.[5]
[5] Acesse o projeto completo http://migre.me/wACWb
Há inversão da relação “causa-consequência” em relação à insalubridade da quadra de basquete. Segundo o projeto apresentado, usuários de drogas e flanelinhas tornam o local insalubre, desconsiderando que não há banheiro público disponível na região há muitos anos, em razão da inércia da Prefeitura perante as recorrentes demandas nesse sentido. Essa versão intenta culpabilizar os usuários do local, que não saberiam como utilizar corretamente o espaço público, e não o poder público municipal, responsável pela manutenção dos banheiros públicos da cidade.
Para solucionar esse problema, propõe-se a exploração comercial de banheiros públicos a preço popular. O projeto é bastante claro em suas intenções:
A ideia é promover a transformação da imagem do baixo viaduto, mudar o visual negativo, apropriando-se das intervenções realizadas recentemente pelo município e agregando melhorias. Além disso, tornar o local um ponto de encontro, de compras de artesanatos e outros produtos de feirantes, além de estimular a prática de esportes urbanos, expressões artísticas e eventos de mote cultural. A CUFA-MG se propõe a agregar ainda mais valor a esse nobre espaço da cidade e, principalmente, promover a boa gerência do espaço, mantendo-o com uso qualificado e ordenado durante todo o tempo, desestimulando vandalismo e estimulando a apropriação artística e cultural do local.
Realizar projetos de revitalização para depois instaurar projetos que visam transformar a suposta imagem negativa de um local abandonado pelo poder público durante anos, mas cheio de vida e cultura promovida por diversos movimentos, é seguir a cartilha para a gentrificação desse território. Dessa última frase, é interessante notar também o uso do termo “nobre”, que nos remete à tradução mais usual do termo em inglês gentrification: enobrecimento.
O caso do banheiro público do Viaduto Santa Tereza ilustra as etapas da gentrificação: abandono, desvalorização, rent gap, revitalização, expulsão e novos frequentadores.
O caso do banheiro público do Viaduto Santa Tereza ilustra com clareza as etapas locais do processo de gentrificação: abandono intencional pelo poder público, desvalorização financeira, imagem negativa do espaço ligada ao vandalismo, rent gap [6], projetos de revitalização que prometem dar “novos ares” à região, expulsão dos antigos comerciantes e habitantes, e finalmente a chegada de novos frequentadores.
É contra esse processo que os movimentos sociais e culturais que ali atuam começaram a se organizar. A proposta inicial desses movimentos é que o poder público municipal assuma suas obrigações constitucionais de zelar pela manutenção da infraestrutura urbana, que inclui os banheiros públicos, sem transferi-la a agentes privados, permitindo que a vida e a cultura que já existem naquele local continuem a existir com melhores condições e sem gestão privada.
O caso do banheiro público do Viaduto Santa Tereza ilustra com clareza as etapas locais do processo de gentrificação: abandono intencional pelo poder público, desvalorização financeira, imagem negativa do espaço ligada ao vandalismo, rent gap [6], projetos de revitalização que prometem dar “novos ares” à região, expulsão dos antigos comerciantes e habitantes, e finalmente a chegada de novos frequentadores.
É contra esse processo que os movimentos sociais e culturais que ali atuam começaram a se organizar. A proposta inicial desses movimentos é que o poder público municipal assuma suas obrigações constitucionais de zelar pela manutenção da infraestrutura urbana, que inclui os banheiros públicos, sem transferi-la a agentes privados, permitindo que a vida e a cultura que já existem naquele local continuem a existir com melhores condições e sem gestão privada.
[6] Teoria desenvolvida pelo geógrafo inglês Neil Smith que explica economicamente o processo de gentrificação. Para Smith, rent gap é a diferença entre o valor imobiliário corrente de um imóvel ou conjunto de imóveis e o valor potencial do mesmo território urbano: este hiato financeiro se torna alvo do interesse de investidores que empreendem os processos de gentrificação.
Cartilha Real da Rua
Cartilha com território, dúvidas e linha do tempo referente ao Viaduto Santa Tereza
Felipe Soares
Mestre em Direito pela UFMG, pesquisador do Indisciplinar e do Cidade e Alteridade, membro da Real da Rua e conselheiro do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
felipebfs@hotmail.com
Marília Pimenta
graduanda em arquitetura e urbanismo, pesquisadora da frente Zona Cultural no grupo de pesquisa Indisciplinar e conselheira suplente do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
marilie@outlook.com
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