Reflexões sobre feminismo e conjuntura

Reflexões sobre feminismo e conjuntura

Reflexões sobre feminismo e conjuntura

Ao longo dos anos, o feminismo tem se consolidado como uma arma teórica e prática fundamental de crítica ao capitalismo e ao neoliberalismo.

 

Em um momento em que as mulheres têm sido atacadas em direitos historicamente conquistados, em um momento, por outro lado, de reanimação internacional das manifestações feministas e às vésperas do 8 de março, dia internacional da mulher, há muita coisa em pauta. Nesse contexto, diversas feministas têm se dedicado a entender e explicitar de que forma a teoria feminista pode dar contribuições fundamentais à crítica da sociedade capitalista atual e oferecer chaves para a construção de uma sociedade mais justa.

Silvia Federici nos relata, em sua obra O Calibán e a Bruxa, que a chamada caça às bruxas foi um longo processo de estigmatização e perseguição de mulheres já na decadência da idade média e que culminou com um dos maiores genocídios da história. Esse processo foi fundamental para a constituição do sistema capitalista que necessitava estabelecer o controle sobre os corpos e a capacidade reprodutiva das mulheres, sobre os seus saberes e sua força de trabalho, para a implantação do trabalho assalariado e das relações modernas de produção e reprodução.

A cientista política estadunidense Carole Pateman, em O contrato sexual, critica os contratualistas que, ao contarem o mito fundador da sociedade moderna burguesa, o contrato social, estabelecem que os homens são indivíduos livres para realizarem contratos, mas silenciam sobre o contrato sexual, a sujeição das mulheres – que seriam objetos, e não sujeitos, do contrato. Nesse ponto, é relevante lembrar que as mulheres, em boa parte dos países centrais, dependiam de autorização dos pais e depois dos maridos para saírem de casa, estudarem, trabalharem. Tudo isso estabelecido pela família e pelo contrato de casamento. A constituição do exército de trabalhadores assalariados nos países centrais, livres das amarras para produzir mercadorias e mais valia, com macacões limpos e marmita feita, dependeu em grande medida da figura espectral da dona de casa, mesmo quando ela mesma trabalhava “fora”.

Portanto, diversas autoras feministas apontam para o fato de que a constituição do capitalismo moderno dependeu do controle da sexualidade das mulheres, de sua capacidade reprodutiva para gerar filhos, mãos de obra futuras, e da dupla exploração da sua força de trabalho. Esse seria o patriarcado moderno que perdura até hoje. Portanto o patriarcado moderno é a formação social na qual o capitalismo se baseia, em que os homens como classe detêm o poder e o reproduzem porque se beneficiam dele. E antes que alguém diga que há mulheres machistas, eu afirmo que elas existem de fato, mas como classe elas não se beneficiam disso. Até as mulheres que hoje possuem posições privilegiadas no neoliberalismo se beneficiaram das conquistas da luta feminista coletiva.

Feministas negras estadunidenses, como Angela Davis, Patricia Hill Collins, bell hooks; de perspectiva decolonial, como Ochy Curiel, Maria Lugones e Yuderkys Miñoso; feministas brasileiras, como Lelia Gonzales, Beatriz Nascimento, Suely Carneiro, dentre outras, têm apontado o quão insuficiente é a análise da situação das mulheres na América se não for levado em conta o colonialismo, a escravidão e suas permanências, chamando atenção do próprio movimento feminista para essas dimensões, ao mesmo tempo em que resgatam movimentos e lideranças que, antes mesmo de ser consagrado o nome feminismo, realizaram forte resistência a essas estruturas de opressão coloniais, escravocratas e patriarcais.

Nas palavras de Ochy Curiel:[1] “se entendemos o feminismo como toda a luta das mulheres que se opõem ao patriarcado, teríamos que constituir sua genealogia considerando a história de muitas mulheres em muitos lugares-tempo. Este para mim é um dos principais gestos éticos e políticos de descolonização: retomar distintas histórias, pouco ou quase nunca contadas.”

A história do Brasil é marcada por figuras que se tornaram símbolos da luta das mulheres (Alambert, 2004) como: Dandara e Aqualtune, ligadas à resistência do Quilombo dos Palmares (1605 – 1694); Zeferina, liderança da resistência do Quilombo do Urubu (1826); Luiza Mahin, ligada à revolta dos Malês (1835), sempre resgatadas pelo movimento feminista negro.

Nesse sentido, a descolonização é entendida como uma prática política e epistemológica de quem percebe que a sua opressão enquanto mulher é articulada às opressões de raça, etnia e classe como pilares centrais, uma vez que nossa sociedade foi constituída a partir da invasão de nosso território, da colonização e da escravidão. É entendida como a necessidade de romper com modelos eurocêntricos de pensamento, buscando categorias baseadas na nossa própria história para entender nossos fenômenos. Admitir que não há uma mulher, mas várias mulheres, é romper com essa universalização moderna. É entender que só o diverso pode gerar uma verdadeira solidariedade e caminhos de transformação.

Para citar um exemplo.

[1] Ochy Curiel. Descolonizando el feminismo: una perspectiva desde America Latina y el Caribe, 2009.

Uma parcela do movimento feminista se debruçou a combater o mito da fragilidade feminina, que justificava seu impedimento de trabalhar fora de casa e ficar sob a proteção dos pais e maridos. Desestabilizando a visão universalista de mulher Sueli Carneiro[2] contrapõe: “nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar. ”

E por que isso é importante?

Porque como fruto do acúmulo de riquezas do capitalismo em sua fase neoliberal e para que o próprio sistema consiga se legitimar socialmente produzindo subjetividades, vemos a ascensão seletiva de algumas mulheres a espaços de poder no capitalismo. Essas mulheres possuem privilégios frente aos diversos sistemas de opressão social e muitas vezes desenvolvem políticas liberais e não emancipatórias.

[2] Sueli Carneiro. Enegrecer o feminismo: a situação da negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero.

Bell Hooks[3] chama atenção para a necessidade de afirmação de um projeto emancipatório e coletivo para o feminismo que considere gênero, raça e classe social. hooks problematiza ainda que a ideia de que retomar o caráter coletivo do movimento feminista não implica em uma homogeneização da experiência das mulheres nem na ideia de que há um sofrimento comum entre todas as mulheres, como se a opressão de mulheres pobres e ricas, negras e brancas não pudesse ser medida nem comparada.

As dimensões de classe e raça evidenciam diferenças de distribuição de recursos e de status sociais que alteram de forma bastante concreta as experiências dos sujeitos na sociedade. Nesse sentido, é preciso considerar que um componente importante da opressão é a ausência de opções, mas algumas mulheres possuem mais opções que outras e o feminismo deve dar conta dessas disparidades.

Apesar de não poder haver uma régua que meça objetivamente o nível de sofrimento dos sujeitos, uma vez que há uma série de matizes na sociedade, é preciso ter parâmetros históricos que sirvam de referência para avaliar as situações, contra o risco de cair em um enorme relativismo. A imbricação de sistemas de opressão de gênero, raça e classe deve, portanto, ser considerada nessa análise.

[3] Bell hooks. Mulheres Negras moldando a teoria feminista, (2015).

Para Nancy Fraser[4], a tentativa de cooptação do movimento feminista pelo neoliberalismo se deu a partir de uma readaptação estrutural do capitalismo que incorpora seletivamente pautas do feminismo, levando à fragmentação entre os aspectos políticos, econômicos e sociais, além da supressão das formulações mais radicais contra o capitalismo, expostas com forte projeção nas décadas de 1960-1970. Para ela, na passagem para o neoliberalismo, o capitalismo tenta incorporar certas dimensões da crítica feminista para os seus próprios propósitos. Promove uma política de identidades e um culturalismo que, em prol do reconhecimento, abre mão da redistribuição econômica. Some então a crítica ao capital e aparece a meritocracia e o sucesso individual.

A incorporação das mulheres então excluídas do mercado de trabalho, apesar de atender a uma reivindicação do movimento (sobretudo das mulheres brancas de classe média), silencia sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres, a disparidade salarial e a situação das famílias chefiadas por mulheres. O sucesso de algumas mulheres no mercado de trabalho não é acompanhado de uma socialização do cuidado, mas da transferência desse encargo para as empregadas domésticas, em sua maioria negras, o que é uma herança escravocrata.

Apesar disso, o feminismo entendido como um movimento social coletivo, possui muitas divergências com o neoliberalismo, cujo  avanço tem representado para a maioria das mulheres graves retrocessos:

– Flexibilização das condições de trabalho e redução dos salários, condição que atinge em especial as mulheres, sobretudo as mulheres negras;

– Retirada de direitos sociais e cortes de verba nas áreas de saúde, educação e previdência, o que aumenta a carga das mulheres com o trabalho do cuidado;

– Aumento do conservadorismo e do fundamentalismo religioso que visa o aumento do controle dos corpos e da vida das mulheres.

– Repressão aos movimentos sociais e reivindicativos.

– Aumento da militarização do mundo e nas cidades fazendo com que conflitos sociais tenham resposta ainda mais violenta.

Para não cair nessas armadilhas, a relação intrínseca entre as lutas é fundamental. Portanto a aposta recai sobre a necessidade de se construir uma prática política que considere a imbricação dos sistemas de dominação como sexismo, racismo e capitalismo, no que Patricia Hill Collins chama de matriz de opressão. Isso dará um sentido radical e transformador ao feminismo.

O movimento feminista tem uma longa história de lutas, enfrentamentos e formulações políticas. O feminismo também tem formulado uma epistemologia que vem desestabilizando o lugar neutro da ciência e da produção do conhecimento a partir da visão de sujeitas historicamente invisibilizadas e subalternizadas. A luta feminista tem tornado o mundo um lugar melhor para as mulheres, crianças e para o conjunto da sociedade. Por isso, frente aos ataques neoliberais, sua importância como movimento político e combativo pode ser fundamental.

Por fim vale lembrar a frase da poeta feminista negra estadunidense Audre Lorde: “não serei livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.”

 

[4] Nancy Fraser, O feminismo, o capitalismo e a astucia da história,(2009).

Texto por:

Natália Alves

Confira nossa cartilha sobre feminismo

A financeirização das políticas públicas e da gestão nas cidades

A financeirização das políticas públicas e da gestão nas cidades

A financeirização das políticas públicas e da gestão nas cidades

O aprofundamento do neoliberalismo no mundo atinge as cidades e governo local.

O arranjo territorial de nossas cidades e os modelos de governança local estão, ambos, diretamente relacionados à intensificação de processos de neoliberalização em escala global[1]. A hegemonia do empresariamento urbano[2], ao mesmo tempo em que estrutura as condições de acumulação do capital, reproduz modelos de desenvolvimento econômico e modelos de urbanização cada vez mais excludentes. A financeirização, prática central entre as frentes de neoliberalização na política urbana, se caracteriza pela capacidade de transformar qualquer fluxo de rendimento em título para negociação e especulação[3].

Quando defrontado com o momento de profunda crise do início dos anos de 1970, o ideário da neoliberalização promoveu, de modo surpreendente, a derrubada de barreiras para a absorção dos excedentes de capital, inventando as novas formas de especulação, em especial aquelas ligadas à produção do espaço. Com isso, a produção do espaço nas cidades e a sua gestão pelo poder municipal passaram a ter destacada importância dentro do modelo neoliberal de política econômica. Desse modo, cidades, regiões e até países inteiros passaram a construir sua gestão a partir de uma ótica empresarial, buscando associar todos os setores de gestão e de serviços, até então relativamente públicas, à esfera privada – abrindo espaço para investimentos, atraindo o máximo de capitais e abrindo concessões e vantagens para grupos empresariais.

Algumas das muitas frentes de articulação entre as práticas de financeirização e a produção do espaço podem ser elencadas: i) Operações Urbanas; ii) revitalizações de áreas consideradas degradadas; iii) conversão de patrimônio público em ativos financeiros; iv) financiamentos através de fundos de pensão; v) incentivos fiscais para capitais investidores; vi) novas modalidades de parceria com o capital privado; vii) estruturação de empresas de administração indireta de capital aberto.

No Brasil, o interesse do capital financeiro nas cidades aumentou consideravelmente diante da abundância de crédito no setor habitacional e do modo como isso impulsionou o setor de construção civil; da pressão dos investidores internacionais para que as empreiteiras diversificassem seu mercado; e da máxima apropriação de renda através de projetos de larga escala, cada vez mais priorizados pela política urbana. Por exemplo, o interesse estratégico das maiores empreiteiras nacionais em ampliar sua atuação se traduz em novas frentes de investimentos imobiliários e aquisição de terras; participação na incorporação de grandes empreendimentos privados; parcerias na construção de equipamentos públicos; e interesse na concessão de serviços públicos relacionados a esses projetos, tais como, manutenção e gestão de estruturas viárias, modais de transporte, saneamento, coleta de lixo e equipamentos públicos.

[1] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: crítica da razão neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
[2] HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço e debates, São Paulo, n.39, p.48-64, 1996.
[3] Como argumento Daniel Sanfelici em sua tese de doutorado “A metrópole no ritmo das finanças” defendida em 2013 no programa de pós-graduação em Geografia da USP.

Nesse contexto, o Estado possui uma atuação determinante na transposição de tal prática para a política econômica, uma vez que é ele quem cria as condições propícias para sua infiltração na esfera pública, visando atrair maiores investimentos, sobretudo através da reconfiguração do aparato regulatório e seu pleno desenvolvimento na esfera privada. Para além do papel de (re) regulador, o Estado arca, ainda, com os principais custos, financiando a maior parte dos projetos. Como exemplo, podemos destacar a crescente importância dos fundos de pensão nas PPPs, nos grandes projetos de infraestrutura e empreendimentos imobiliários[4], e o modo como, além de funcionar como fluxo de capital para estes setores, a rentabilidade dos fundos pode ser ampliada quando combinada à canalização de investimentos públicos e consequente valorização do solo urbano onde é aplicado.

Em diferentes cidades, o poder público altera organogramas institucionais para criar instâncias capazes de abrigar a financeirização com menores entraves à ação do capital. Entre tantos, pode-se citar a experiência de São Paulo com a Cia Paulista de Securitização (CPSEC), ou a abertura do capital da SABESP. A prefeitura de Belo Horizonte, sob a gestão de Márcio Lacerda, criou em 2014 a empresa PBH Ativos, fundamentada na antecipação de fluxo financeiro através de parcelamento de créditos tributários. Também em Porto Alegre, medida semelhante foi tomada com a criação da Empresa de Gestão de Ativos do Município de Porto Alegre, a INVESTE POA.

[4] ROLNIK, Raquel. Guerra de lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.

Um exemplo pode ser bem ilustrativo. Em 1994, a SABESP[5] deixou de ser 100% estatal, tornando-se uma empresa de economia mista e capital aberto. Em 1997, suas ações foram transferidas à Bovespa e, em 2002, passaram a ser negociadas na Bolsa de Valores de Nova York. O governo de São Paulo detém hoje 50,3% das ações enquanto o restante é negociado e especulado nos mercados financeiros internacionais. Assim, os acionistas privados acabam pressionando a forma como é gerido o serviço de distribuição de água e tratamento de esgoto de São Paulo tendo como única orientação a busca por uma maior rentabilidade, que o permite receber dividendos dos lucros e negociar a ação da empresa. O que se observou desde então foi a maximização dos lucros dos acionistas – em 2013, tiveram um lucro líquido de R$ 1,9 bilhões – ao passo que os investimentos que poderiam ter evitado a crise hídrica que assolou o estado de São Paulo em 2014, como a ampliação da rede de captação e saneamento, foram minimizados. O interesse dos acionistas – que muitas vezes sequer sabem que tipo de empresa estão decidindo os rumos com suas especulações e remuneração de capital – é apenas o lucro.

[5] http://ponte.cartacapital.com.br/sao-pedro-nao-tem-acoes-da-sabesp/

E é nessa mesma direção que a prestação de serviços municipais de Belo Horizonte e Porto Alegre está indo. A regulamentação de cada uma dessas empresas de economia mista na forma de sociedade anônima passa a ser responsável por orçar e contratar a prestação de vários serviços urbanos. A partir do decreto 15.534 de 2014, a PBH Ativos vai atuar junto à secretaria de Desenvolvimento, auxiliando a prefeitura em investimentos de infraestrutura, serviços públicos municipais, dentre outros. O decreto aumentou as prerrogativas da PBH Ativos S/A na administração municipal. Os custos financeiros das operações de debêntures[6] de pagamento de juros e a remuneração dos seus investidores são cobertos pela PBH Ativos. Mas, para isso, seu ‘negócio’ deve dar lucro[7]. Assim, o objetivo da política pública urbana é pervertido para a remuneração de investidores privados, mesmo sabendo, a partir de vasta literatura, que a intenção entre o lucro e o “bem-estar da população” (como deveria ser uma política pública) pode ser bem diversa.

[6] A debênture é um valor mobiliário emitido por sociedades por ações, representativo de dívida, que assegura a seus detentores o direito de crédito contra a companhia emissora. Consiste em um instrumento de captação de recursos no mercado de capitais, que as empresas utilizam para financiar seus projetos. É uma forma também de melhor gerenciar suas dívidas.
[7] http://www.sinfisco.com.br/artigo-pbh-ativos-s-a-a-quem-serve-o-governo-do-municipio-de-belo-horizonte/

Segundo o texto que institui a empresa, a PBH Ativos S/A[8] deverá atuar em todas as PPPs que o município solicitar por meio do seu Conselho Gestor das Parcerias Públicos Privadas. São previstos PPPs para vários serviços públicos prestados, como para o Mercado Distrital do Cruzeiro, o Centro de Convenções de Belo Horizonte, o terminal rodoviário municipal, serviços de iluminação pública, vilas produtivas e supermercado, de estacionamentos e gestão dos rotativos, do futuro centro administrativo municipal, de cemitérios, do Novo Sistema de Mobilidade Urbana Compartilhada, e de parques como o Parque Mangabeiras, o Jardim Zoológico, o Jardim Botânico, o Parque Ecológico e o Parque Barragem Santa Lúcia. Além dos previstos, o comunicado existente no site da empresa afirma que ela já vinha atuando nas PPPs do município, oferecendo garantias a empreendimentos como o Projeto Inova (construção de escolas municipais, em parceria público-privada com Odebrecht) e o Projeto do Novo Hospital Metropolitano.

[8] http://www.pbhativos.com.br/leis-decretos

Em Porto Alegre, a empresa está autorizada a usar todos os terrenos e imóveis de que a cidade é proprietária, como o Araújo Viana, o Mercado Público, o Gasômetro, além do capital de todas as empresas públicas da cidade como garantia para a emissão de títulos de dívida que são feitos sob a forma de debenture – que tem uma capacidade de liquidação muito mais atrativa aos investidores privados do que os títulos de dívida pública. Até mesmo os créditos e impostos que a cidade tenha por receber poderão ser “penhorados” como garantia para esses títulos. O projeto ainda autoriza que o fundo formado por esses recursos seja investido pelo conselho dos acionistas na empresa – e não pela própria prefeitura.

Quando essa lógica chega ao governo do município e se consolida, várias questões se desdobram: i) redução da experiência da democracia na construção da cidade, já que políticas públicas serão decididas e gestadas por um grupo de acionistas e diretores que a população não elegeu e desconhece; ii) política pública sendo pensada e realizada para gerar lucro e remunerar investidores; iii) transferência de patrimônio público para os cofres da empresa que possui dinâmica baseada na rentabilidade de suas práticas econômicas; iv) redução de receita do município por meio das estratégias de formação de capital da empresa; v) riscos do negócio assumidos pelo poder público e ganhos pela iniciativa privada.

Por fim, vale destacar que a gestão empresarial da cidade é uma estratégia de remunerar capitais privados às custas do orçamento público, transformando a cidade em um grande negócio, a ser gerido como uma empresa privada. Portanto, a tendência é que se observa, cada vez mais, é dessas práticas e racionalidades neoliberais tomando conta dos investimentos e gestões públicas em um intenso processo de privatização, em que o capital privado sai sempre ganhando às custas do poder público. Assim, o capital tem encontrado variadas formas de garantir sua reprodução: através de vários malabarismos jurídicos, legislativos e financeiros.

[9] http://www.ceapetce.org.br/noticias/quando-porto-alegre-deixou-de-ser-nossa-/

Texto por:

Daniel Medeiros

Thiago Canettieri

Lucca Mezzacappa

O que está em jogo na Zona Cultural Praça da Estação?

O que está em jogo na Zona Cultural Praça da Estação?

O que está em jogo na Zona Cultural Praça da Estação?

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O aprofundamento do neoliberalismo no mundo atinge as cidades e governo local

Localizada no hipercentro de Belo Horizonte, a Praça da Estação é historicamente um território de disputa entre diferentes projetos de cidade. Nos primeiros anos de construção da capital mineira, recebeu as famílias e as máquinas que construíram a cidade planejada por Aarão Reis, enquanto algumas dessas famílias construíam a primeira favela da cidade, no Alto da Estação, na Rua Sapucaí, próximo à Estação de Minas. 

Nas décadas de 1970 e 1980, a Praça da Estação e todos os prédios históricos ao seu redor quase deram lugar a um enorme sistema viário, que deixou de ser construído depois da movimentação de arquitetos e urbanistas pelo tombamento de diversos edifícios localizados nesse território.

Na década de 1990, esse território passou a ser alvo de diversos projetos urbanísticos que pretendiam retomar o seu valor cultural, ao mesmo tempo em que a esplanada da Praça da Estação recebia o BH Canta e Dança, com a presença de milhares de jovens voltados para a cultura hip-hop e o Viaduto Santa Teresa já recebia alguns encontros de pixadores. (Viaduto Santa Tereza“, de João Perdigão)

Nos anos 2000, a Praça da Estação se tornou território de diversos movimentos culturais da cidade: Duelo de Mcs, Praia da Estação, Samba da Meia Noite… Foi também parte fundamental da Operação Urbana Consorciada Vale do Arrudas, que flexibiliza os parâmetros urbanísticos da região em favor de interesses escusos do mercado imobiliário.

Quando, em 2013, em meio às diversas movimentações sociais que marcaram o país, a Prefeitura de Belo Horizonte apresentou à sociedade o “Corredor Cultural da Praça da Estação, talvez não esperasse pela reação que veio das pessoas que já ocupavam aquele local.

Conforme relatos e reflexões de Paula Bruzzi Berquó, que acompanhou de perto todo esse processo, em sua dissertação de mestrado  “A OCUPAÇÃO E A PRODUÇÃO DE ESPAÇOS BIOPOTENTES EM BELO HORIZONTE: entre rastros e emergências”

A diversidade de manifestações culturais que, desde o surgimento do Duelo, em agosto e 2007 – e sobretudo a partir de 2010, pelo efeito irradiador da Praia – passaram a correr no baixio do viaduto, tornaram-no um dos mais importantes polos de discussão política da cidade. Os debates que ali se engendravam, apesar de fortemente ligados à questão territorial, ultrapassavam, muitas vezes, temáticas apenas locais. O coletivo Real da Rua, por exemplo, tornou-se, a partir da discussão de questões relacionadas ao viaduto, importante

propagador de debates em torno à livre ocupação dos espaços públicos da cidade de maneira geral. Ora, o local adquiria, com isso, importância estratégica crescente frente aos órgãos municipais de planejamento urbano: além de possuir localização privilegiada (na região hipercentral), havia se tornado um importante foco de resistência a políticas de  cerceamento à livre apropriação dos espaços públicos da cidade.

De fato, tratava-se de um espaço em franca disputa. Prova disso é que, além da proposta referente ao Corredor Cultural, este se incluía também na Operação Urbana

Consorciada do Vale do Arrudas, intervenção urbanística de cunho estrutural que se esboçava, simultaneamente, na Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano. Fruto de uma parceria entre o poder público municipal e empresas privadas, o projeto estabelecia a flexibilização dos parâmetros urbanísticos que regulamentavam a área. Contudo, ainda que o intuito (tal como declarado no Estatuto da Cidade) fosse o de alcançar “melhorias sociais e a valorização ambiental” nas áreas em que tais  mudanças fossem realizadas, os reais ganhos que tal medida aparentava estar em vias de aportar, nesse sentido, para a área da Praça da Estação, eram bastante  controversos. Pareciam prevalecer, ao invés disso, interesses privados ocultos, voltados especificamente para a valorização dos terrenos situados no local. De fato,

como pontua Fernanda Chagas (2013), “a todo tempo fica a sensação de que há mais reuniões e acordos acontecendo ‘a portas fechadas’ do que a Prefeitura ou as  empresas envolvidas gostariam de divulgar” (CHAGAS, 2013, p.104).

Assim, apesar da alegação, pela Fundação Municipal de Cultura, da ausência de qualquer relação entre o Programa Corredor Cultural da Praça da Estação e a referida

Operação Urbana Consorciada, era possível antever por meio destes, o crescente  interesse do Estado e, sobretudo do mercado, pela região. Ora, a proposta do “Corredor Cultural”, apesar de não configurar, como a Operação Urbana, uma parceria público-privada formal, parecia mostrar-se, assim como esta, extremamente estratégica do ponto de vista do mercado imobiliário. O processo de “revitalização” nele envolvido contribuiria, muito provavelmente, para uma almejada valorização dos terrenos localizados nas proximidades da Praça da Estação (e de toda a região central), o que geraria grandes possibilidades de lucro aos agentes privados envolvidos. Se consumado, tal movimento acabaria, contudo, por tornar economicamente insustentável a permanência tanto dos pequenos estabelecimentos comerciais quanto dos próprios moradores (pessoas em situação de rua e setores marginalizados da população) que já ocupavam, naquele momento, o local. Não por acaso, o projeto se fazia sem qualquer participação destes agentes.

Para barrar o projeto proposto pela Prefeitura, os movimentos organizados em torno daquele território começaram a afirmar que “O Corredor Cultural já existe!”, culminando na elaboração de um mapa de mesmo nome na plataforma GoogleMaps com o “propósito de dar a ver os diversos movimentos, em grande parte informais, que compunham o já pulsante cenário cultural local”, conforme constatou Paula Bruzzi Berquó . Organizou-se também “A Ocupação” no baixio do Viaduto Santa Teresa, para dar visibilidade aos atores e movimentos da região e para demonstrar a insatisfação em relação ao projeto do Corredor Cultural apresentado pela Prefeitura.

O Indisciplinar participou desse processo desde o início, em 2013, quando o projeto foi apresentado pela Prefeitura de Belo Horizonte, conforme descreve Paula Bruzzi Berquó:

É em meio a esse processo, e a partir do reconhecimento de suas falhas, que os alunos da disciplina UNI 009 Oficina Multidisciplinar realizada no primeiro semestre de 2013 na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais se engajaram no estudo da área do baixio do Viaduto Santa Tereza. A disciplina recebeu o nome de “Cartografias Críticas” e teve como escopo, durante o primeiro semestre de 2013, a investigação de possíveis efeitos da implantação do “Programa Corredor Cultural da Praça da Estação” nas dinâmicas cotidianas do local. Para isso, foi realizada uma ampla pesquisa a respeito dos atores e linhas de força que compunham a área no momento em que o projeto se esboçava – processo este que envolveu conversas com moradores de rua, comerciantes ambulantes, grupos artísticos e muitos dos movimentos culturais atuantes no espaço. Desse trabalho, resultaram cadernos, diagramas, textos, e um mapa online colaborativo, construído por meio da inclusão, por parte de qualquer pessoa interessada, dos eventos culturais, fixos ou efêmeros, ocorridos na área.

Junto com essas ações realizadas nas ruas, nas duas reuniões públicas organizadas pela Fundação Municipal de Cultura para apresentação do projeto houve intensa presença das pessoas afetadas, onde ficou evidente a insatisfação com o projeto, especialmente em razão da falta de participação social para sua elaboração e do risco iminente de gentrificação da área.  
Logo na primeira reunião (ata disponível no relatório da comissão de acompanhamento, download aqui), um dos presentes afirmou que “o corredor cultural já existe, já é real” e a função do poder público seria “torná-lo mais possível, incorporando todos esses agentes que compõem a vida do espaço, o que inclui agentes culturais, população de rua e o proletariado da cidade”, como foi noticiado na época. (AYER, Flávia. PBH quer criar corredor cultural na Praça da Estação. Jornal Estado de Minas, 14 mar. 2013. Gerais. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/03/14/interna_gerais,356890/pbh-quer-criarcorredor-cultural-na-praca-da-estacao.shtml>)  O projeto apresentado, no entanto, desconsiderava as ocupações existentes na área.

Tal projeto se encontra dentro do contexto do urbanismo neoliberal, no qual, segundo proposição de Natacha Rena e Paula e Berquó , “projetos ditos “culturais” são cada vez mais valorizados no mercado urbano. Nesses projetos, guiados por medidas pacificadoras de transformação urbana em cenário “higiênico” e consensual, o fomento ao turismo global se conforma enquanto prioridade, em detrimento do atendimento às reais necessidades das comunidades locais.”

 

No caso de Belo Horizonte, esse processo é bastante claro. Durante as décadas de 1990 e 2000, depois da “descoberta” do valor cultural da região na década de 1980, foram várias as obras e os projetos que buscavam a recuperação da região central da cidade com reformas voltadas para o uso cultural dos equipamentos públicos e privados existentes.

Já havia, porém, cultura e vida naquele território. A partir de 2007, com o Duelo de Mcs, marco inicial da chamada “Quarta fase: início (?) da ocupação cultural de resistência”, de acordo com a proposição de Paula Bruzzi Berquó, o conflito entre os desejos gentrificadores do Estado-capital e a resistência advinda principalmente de movimentos culturais presentes na região começa a ficar mais evidente.

Com a movimentação em torno do território da Praça da Estação, formou-se, em Abril de 2013,uma Comissão de Acompanhamento com pessoas associadas aos movimentos culturais daquela região. Em junho de 2014, essa Comissão apresentou um relatório, que destacava os conflitos sociais existentes na região da Zona Cultural e enfatizava as demandas da sociedade civil para a região . Essas medidas tinham uma evidente finalidade “anti-gentrificadora”, pois pretendiam impedir a desconsideração do contexto e da história locais por projetos produzidos por agentes que desconhecem ou ignoram tais fatores.

Com o fim precoce do projeto do “Corredor Cultural”, surgiu a Zona Cultural da Praça da Estação e o seu Conselho Consultivo, criado em 2014, por meio do Decreto 15.587/14, que foi alterado para mudar a composição do Conselho e seu território:

* link para anexo do decreto
** link do editado pelo decreto
*** link para segundo anexo

Como resultado de muitas reivindicações de movimentos sociais atuantes na área contra o projeto do “Corredor Cultural da Praça da Estação” (projeto disponível para consulta aqui), o Conselho adotou como seu princípio ético a frase “Melhorar sem expulsar”. Proposto pela então conselheira Natacha Rena, esse princípio encampa os ideais que guiaram alguns movimentos sociais que participaram das lutas para instituição do Conselho em 2014,   ano em que parte dessa movimentação se manteve durante o Viaduto Ocupado, contra as obras realizadas no Viaduto Santa Teresa, também sem participação popular e transparência [1]. Dentre outras atribuições, o Conselho tinha como objetivo construir um Plano Diretor participativo para a área, dentro do prazo de um ano.

Desde setembro de 2015, as reuniões do Conselho passaram a tratar do território da Zona Cultural. Foram apresentados, por membros da Prefeitura e do Indisciplinar, estudos sobre os vazios gerados por imóveis subutilizados (dados sobre vazios disponíveis aqui), sobre os equipamentos históricos e culturais existentes, sobre os parâmetros urbanísticos do novo Plano Diretor em tramitação na Câmara Municipal. Além disso, houve discussões sobre questões infraestruturais da área, como a falta de banheiro público e o fechamento de vias para a realização de eventos, que são constantemente levantadas pelos frequentadores da área como pontos que devem ser resolvidos o quanto antes, mas até o momento, por exemplo, o banheiro público existente no Viaduto Santa Teresa não foi inaugurado, contrariando os vários requerimentos realizados por movimentos sociais desde 2013.

[1] Reforma que dura até o ano de 2017, tornando-se, assim, segundo o pesquisador João Perdigão, a obra mais longa da história do Viaduto, durando mais até do que a sua própria construção. A inauguração ocorreu, uma vez mais, por força de alguns dos movimentos sociais que atuaram anteriormente no território, que inauguram, sem aval da Prefeitura, a área da pista de skate. (http://ouviaduto.tumblr.com/)

Em 2016, o Indisciplinar, por meio dos conselheiros Felipe Soares e Marília Pimenta, apresentou proposta de metodologia que se fundamentava em cartografar atores, ações culturais, legislações pertinentes e projetos existentes relativos ao território da Zona Cultural. As conselheiras Laura Rennó e Izabel Dias, servidoras da Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano, também apresentaram proposta de metodologia para o Conselho, na qual propuseram dar voz à diversidade social presente no território a partir de metodologias vinculadas ao uso cotidiano dos espaços. O Conselho iniciou seus trabalhos em 2016, focando em metodologias e táticas que resgatassem o histórico do território e incentivassem a participação popular na construção das diretrizes, com intuito claro de evitar a gentrificação da área com o projeto da Zona Cultural, o que culminou com a elaboração das diretrizes para a Zona Cultural.

A partir da premissa “melhorar, sem expulsar”, o Conselho, com suas diretrizes, apostou na territorialização dos movimentos anti-gentrificadores já existentes na área da Zona Cultural. Criar habitações de interesse social e melhorar as condições de vida da população de rua e dos vendedores ambulantes são medidas que têm o propósito de garantir a permanência dessas populações naquele território. Incentivar as atividades que já ocorrem na Zona Cultural e valorizar as que são mais democráticas (gratuitas e sem gradis, por exemplo) são diretrizes que ressaltam a história e o contexto do território, fatores que costumam ser desprezados por projetos arquitetônicos com objetivos gentrificadores. Ressaltar os imóveis vazios ou subutilizados e a necessidade de cumprimento da função social da propriedade tem como objetivo impedir que os interesses de proprietários particulares se sobreponham aos interesses dos demais atores presentes no território.

O futuro do território da Praça da Estação depende dos próximos movimentos dos diversos agentes interessados. O mercado imobiliário e financeiro pretende obter lucro com os imóveis vazios e subutilizados da região, que deve se valorizar nos próximos anos, com a inauguração do Tribunal Regional do Trabalho no antigo prédio da Escola de Engenharia. Os movimentos sociais atuantes na região, por sua vez, mantém-se organizados, em busca de concretizar antigas demandas ainda não alcançadas.

Texto por:

Bernardo Neves

Felipe Bernardo Furtado Soares

Marília Pimenta

E agora, Izidora?

E agora, Izidora?

E agora, Izidora?

Um dos maiores conflitos socioterritoriais da América Latina, que envolve milhares de famílias de baixa renda em Belo Horizonte, ainda está sem solução definitiva.

Um dos principais slogans de campanha do então candidato à Prefeitura de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, recém empossado prefeito, chamava atenção para o drama das milhares de famílias de baixa renda habitantes da região da Izidora, localizada no vetor norte do município. Essa área, lugar de vasta importância ambiental, protagoniza um dos conflitos socioterritoriais mais emblemáticos da América Latina[1]. Ali, estórias de luta de milhares de famílias que garantem sua dignidade autoconstruindo espaço urbano, moradias, ruas, hortas comunitárias, creches, se unem a um território tradicional – o Quilombo dos Mangueiras –, que há anos aguarda a finalização do seu processo de demarcação. Há essa realidade são aproximados outros enredos, como os interesses bilionários vinculados a grandes projetos urbanos que cercam a região e a controversa parceria público-privada, Operação Urbana do Isidoro, projetada para urbanizar a área e levar a cabo um gigantesco empreendimento imobiliário popular, “Granja Werneck”, por meio do Programa Minha Casa Minha Vida. (saiba mais)

[1] As violações de direitos contra as ocupações da Izidora foram julgadas no Tribunal Internacional de Despejos em Quito (Equador), onde ocorreu a Habitat III da ONU. O caso foi selecionado como um dos 7 mais graves do mundo. (https://goo.gl/vgG2Lx)
Fig 1. Assembleia na ocupação Vitória. Fonte: Fanpage Resiste Izidora.

 

Fig. 2: Capa de Facebook utilizada pelo atual prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil, durante a campanha eleitoral. Fonte: Fanpage Alexandre Kalil.

A Izidora tem que funcionar e essa era a mensagem com que o candidato Kalil se mesclava às lutas populares pelo direito à cidade que tanta cor, barulho, organização e esperança trazem a Belo Horizonte. Prefeito, aqui a luta urbana já funciona, o que precisamos fazer funcionar é o compromisso dos Poderes Públicos com a efetivação de direitos no território. Essa amarga frustração foi a marca da antiga gestão municipal: como engenhosamente lembrou Kalil, o antigo governo “não fez nada contra a empresa Cowan, que derrubou um viaduto e matou pessoas, mas entrou com ações contra as famílias que moram na Izidora”. [2] Há ordem de despejo válida para as três ocupações do local: Rosa Leão, Esperança e Vitória, e um dos autores da demanda é a própria prefeitura.

Numa espécie de realismo jurídico fantasmagórico e cruel, mais uma vez os poderes instituídos funcionam na sua inércia patriarcal, classista e racial e ameaçam as milhares de famílias pobres e trabalhadoras da Izidora pela voracidade do desejo de apropriação privada da terra, por meio da renovação da ordem de despejo.

No dia 28 de setembro de 2016, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a cúpula dos desembargadores mineiros, decidiu, em sede do Mandado de Segurança (MS – 0612458-75.2014.8.13.0000), pela legitimidade da ordem de desocupação forçada das ocupações, autorizando seu imediato cumprimento pela Polícia Militar de Minas Gerais. Ao mesmo tempo, uma marcha de mais de 30 km, com pessoas das ocupações e apoiadores, percorria o caminho da Izidora até ao Tribunal para lembrar, em muitos passos, que se trata de um conflito coletivo com milhares de vida em jogo.

 

Fig. 3: Julgamento no Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Fonte: Fanpage Resiste Izidora.

 

Fig. 4: Marcha das ocupações da Izidora até o centro de Belo Horizonte no dia do julgamento pelo Órgão Especial. Fonte: Fanpage Resiste Izidora

O MS, negado pela decisão judicial, tinha sido impetrado pelo coletivo Margarida Alves de Advocacia Popular em face do ato do governador de Minas Gerais e do Comandante Geral da Polícia Militar que autorizava o despejo, tendo em vista o despreparo da Polícia Militar de MG para levar a cabo operação de reintegração, respeitando as normativas nacionais e internacionais sobre remoção forçada[3].

Isso aconteceu porque, na última decisão proferida pelo órgão de cúpula do TJ/MG, os desembargadores entenderam, quase que por unanimidade, que as frágeis indicações apresentadas pelo estado de que cumpririam todas as normativas eram suficientes para autorizar o imediato despejo das famílias. Vale lembrar que essa medida foi tomada à revelia do posicionamento francamente contrário do parecer da Procuradoria do Ministério Público nos autos do processo.

Nas letras da implacável (in)Justiça mineira, é mais justo autorizar a desocupação forçada de 8 mil famílias, garantindo a proteção ao direito de propriedade, que proteger a segurança, integridade e a vida de pessoas pobres e precarizadas de um possível despejo violento e sem as devidas garantias prévias à medida. A experiência concreta de pessoas e de modos de vida que se enraízam na terra e dela retiram suas possibilidades de existência deveria ser a fonte da decisão sobre como se vive e como se morre em territórios marcados pela opressão e abandono do estado –  e não a vontade abstrata, sem corpo, sem cheiro e sem calos, exarada num ato jurisdicional conservador. A luta cotidiana das três ocupações da Izidora –  Rosa Leão, Esperança e Vitória – já estão fazendo justiça ao garantir moradia e condições de vida a milhares de pessoas antes “sem teto”.

[3] A medida foi tomada após violenta repressão de marcha pacífica das ocupações da Izidora em julho de 2015. Para tanto, foi solicitada a suspensão da realização da operação policial porque o desalojamento pretendia se realizar de forma completamente ilegal: (i) não havia planos para o realojamento das famílias; (ii) não havia medidas para a proteção das crianças, adolescentes, idosos e portadores de necessidades especiais no território; (iii) não estava garantida observância à lei estadual n. 13.604/00 (lei que cria comissão especial para acompanhar os processos de desocupação de áreas invadidas para assentamento rural ou urbano no estado); (iv) não se cumpria o disposto na “Diretriz para a produção de serviços de segurança pública n. 3.01.02/2011″, exarada pela própria PMMG; (v) não se observavam tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, havendo, inclusive, nítida violação aos princípios básicos para a realização de remoções, anunciados em Relatório Especial da ONU

Você que faz versos, que ama, protesta… Você marcha para onde, Izidora?

Enquanto a rede de advogados populares reinventa taticamente instrumentos para seguir no imbróglio judicial e suspender o despejo, as famílias da Izidora e sua rede de apoiadores seguem na incansável resistência dentro e fora das ocupações, com assembleias semanais, reuniões com apoiadores, organização dos moradores, criação de cooperativa de trabalhadoras, manutenção dos espaços comunitários – como se não bastasse a criatividade necessária para seguir vivendo em territórios e posições de opressão.

A Izidora não é caso de polícia, mas de política urbana séria e comprometida, que reconheça e abra espaço para as cerca de 8 mil famílias que há anos vêm se autocusteando, às vezes com o preço de vidas e sujeitas às variadas violências dos territórios precarizados, construindo um novo bairro na cidade. Nas palavras do prefeito, durante sua campanha, “a polícia só vai entrar se for pra urbanizar a área para as famílias”[4] e a faraônica promessa de uns dos maiores projetos do Minha Casa Minha Vida do Brasil[5] restará como uma distopia de mal gosto e sem orçamento: “um apartamento de 36 metros quadrados não atende esse pessoal. Eles não precisam de uma construtora, precisam de um pedaço de terra”.[6]

Combinadas às promessas do novo prefeito, a reconfiguração da governança municipal também abriu caminho para retomada dos espaços de negociação extrajudicial do conflito. Ainda no mês de janeiro do presente ano, a Mesa de Diálogo e Negociação apresentou a “Proposta do Governo de Minas e da Prefeitura de Belo Horizonte para as Ocupações Esperança, Vitória e Rosa Leão (Região do Izidora) localizadas entre a Zona Norte de Belo Horizonte e o município de Santa Luzia”, o que parece ser o documento de coalizão das esferas administrativas que não querem “sujar suas mãos de sangue”, como disse Kalil.

Por esses dados, não haverá mais “empreendimento Granja Werneck”, nem tampouco a absurda Operação Urbana prevista para Izidora [saiba mais sobre as irregularidades da Operação Urbana (i)  https://goo.gl/UO4vZN , (ii) https://goo.gl/GbuEAf].

Mas será? O que consta dos termos da proposta não se trata de benesses ou concessões dos Poderes Públicos após anos de resistência popular. O conteúdo do acordo tem como referência diversos documentos elaborados pela rede de resistência da Izidora, envolvendo longa parceria entre comunidade, movimentos sociais, entidades da sociedade civil e universidade. Em grosso modo, a proposta contempla (i) a realização de cadastro prévio das 3 ocupações; (ii) a regularização fundiária/urbanização integral das ocupações Rosa Leão e Esperança e parcial da ocupação Vitória, por meio do projeto Vila Viva e (iii) a implantação do programa Minha Casa Minha Vida-Faixa 1 em parte da ocupação Vitória – o que demandaria a desocupação parcial do território.

Embora o documento aponte para pagamento de auxílio pecuniário para as pessoas que forem realocadas e remoção pacífica da área atingida pelo Minha Casa Minha Vida, inúmeras dúvidas permanecem. As áreas referentes à Rosa Leão, Esperança e Vitória, sujeitas à urbanização pelo Vila Viva serão desapropriadas e concedidas aos moradores? Qual área exata da ocupação Vitória será afetada pelo Minha Casa Minha Vida? Haverá homologação judicial do acordo e extinção dos processos judiciais? Essas e diversas outras questões foram apresentadas pela rede Resiste Izidora em documento-resposta à proposta de negociação do Poder Público.

As pessoas e famílias das ocupações da Izidora, principalmente as mulheres – maioria responsável pelos trabalhos de cuidado e organização da comunidade – seguem vivendo sob a ameaça de despejo iminente, que paira sobre suas preocupações feito um fardo adicional a carregar, para além da ausência de serviços públicos e o cotidiano árduo da trabalhadora precarizada. Até o momento, não houve nenhum movimento dos Poderes Públicos agendando assembleias com as comunidades para esclarecimento da proposta, produção de material didático para mobilização em torno do acordo, desistência de ação judicial, projeto de lei revogando a Operação Urbana do Isidoro e/ou de decreto de desapropriação das áreas.

BH também é Izidora, vamos por pra funcionar, Kalil?

 

Se você dormisse, se você cansasse, se você morresse…
Mas você não morre, você é dura, Izidora!

Saiba Mais:

Texto por:

Julia Ávila Franzoni

Daniela Faria