Os viadutos como a nova fronteira de expansão do capital

Os viadutos como a nova fronteira de expansão do capital

Os viadutos como a nova fronteira de expansão do capital

Os projetos de outorga de uso de viadutos a agentes privados em São Paulo e Belo Horizonte apresentam pontos comuns que exemplificam as estratégias utilizadas pelo capital para tomada desses “vazios urbanos”

Mirante 9 de Julho fica embaixo do Viaduto Professor Bernardino Tranchesi e sobre o túnel da avenida Nove de Julho. Foto: AG

Uma das metáforas utilizadas por Neil Smith para exemplificar o processo de gentrificação[1] nas cidades do século XX foi a ocupação do Oeste estadunidense durante os séculos XVIII e XIX. Durante a expansão da fronteira estadunidense para além da costa Leste, o território desconhecido pelos pioneiros e seus habitantes eram descritos como selvagens, perigosos e primitivos. Os pioneiros tinham como missão levar a civilização ao novo território e, claro, garantir mais espaço e mão-de-obra para a expansão do capital.

Smith compara esse processo com a gentrificação dos centros urbanos nas cidades norte-americanas do século XX. Em vez de caubóis e indígenas, temos os pioneiros e proprietários urbanos que irão desbravar as novas fronteiras urbanas, habitadas por pessoas que são consideradas “como um elemento natural do meio físico a que pertencem” e não como agentes sociais e históricos.

A jornalista Sabrina Duran, em seu blog “Arquitetura da Gentrificação: cidade e direitos humanos”, parte dos conceitos apresentados por Neil Smith para analisar algumas medidas da política urbana desenvolvida em São Paulo nos últimos anos em relação aos baixios de viadutos. Segundo ela, “iniciativas recentes da prefeitura dão indícios de que esses espaços, antes locais de ocultamento da população em situação de rua, passaram a ser vistos como nova frente de expansão do capital imobiliário, que precisa de espaços higienizados socialmente e atraentes do ponto de vista comercial e turístico, que circundem e valorizem os terrenos onde construirão suas torres comerciais e residenciais.

Tal conclusão surgiu ao longo de uma série de reportagens desenvolvidas por Sabrina sobre outorgas de uso de baixios de viadutos à iniciativa privada na cidade de São Paulo.

[1] Saiba mais sobre gentrificação com nossa cartilha
http://migre.me/wuN7Q
[Img.1] Mirante abriga festas promovidas por empresas como a transnacional Ray Ban. Foto: I hate flash

No mesmo sentido, o observaSP[2] realizou alguns estudos e artigos. A partir da comparação da experiência de São Paulo, retratada nessas duas fontes, e a de Belo Horizonte, formalizada pelo Decreto 16.537/16, que concede permissão de direito real de uso de cinco viadutos da cidade a cinco entidades privadas, sistematizamos alguns pontos comuns relativos às cessões de uso de baixios de viadutos a agentes privados:

1.Chamamentos Públicos amplos e genéricos:

Sabrina aponta que o chamamento público para as empresas interessadas em reformar o Viaduto Professor Bernardino Tranchesi menciona apenas “interessados da iniciativa privada”, sem explicitar a possibilidade de formação de consórcios de empresas. Em Belo Horizonte, o aviso de consulta pública 01/2015 incorre no mesmo vício ao se referir a “eventuais interessados da iniciativa privada em realizar parcerias com o Município para a utilização da área dos baixios dos viadutos”. A amplitude do chamamento dificulta a concorrência e a garantia de isonomia.

Além disso, tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, pouco se especifica sobre os parâmetros e finalidades dos editais de ocupação. Não há descrição mínima das contrapartidas necessárias e nem dos parâmetros de conservação e manutenção a serem mantidos pelos particulares. Assim, abre-se possibilidade para o fechamento e a privatização desses espaços públicos sem qualquer transparência e sem previsão de benefícios ao restante da sociedade.

2. Revitalização x Exploração comercial: qual o real objetivo das cessões de uso dos baixios?

Ao analisar o edital de Concorrência Pública para concessão de uso oneroso e requalificação urbanística dos baixos do Viaduto Júlio de Mesquita Filho e do seu entorno, no bairro do Bixiga, o observaSP apontou o seguinte:

Embora a premissa para o edital seja a manutenção e qualificação do baixo como espaço público, e ainda que o texto mencione que o vencedor deverá criar no terreno usos socioculturais que convidem os cidadãos à permanência, são enumeradas apenas genericamente referências e diretrizes para o projeto de ocupação, que nem mesmo definem usos ou parâmetros obrigatórios para a transformação urbanística do local. Pior, o edital determina que a proposta vencedora será necessariamente a de maior valor, o que significa que na prática a empresa ou consórcio vencedor poderá fazer o que bem entender do terreno, desde que pague bem e siga algumas poucas determinações.
(…)
Como vem ocorrendo nas parcerias público-privadas e concessões que abundam na atual gestão municipal, são os interesses privados que acabam por pautar a transformação urbana, seguindo sempre a lógica da rentabilidade.

A falta de clareza acerca dos reais objetivos desse tipo de edital está presente também no caso estudado pela jornalista Sabrina Duran e no de Belo Horizonte.

A finalidade do edital publicado pela Prefeitura de São Paulo para uso do Viaduto Professor Bernardino Tranchesi é efetuar Termo de Cooperação com a apresentação de propostas de parceria, execução e implantação de projetos de revitalização urbanística, ambiental, paisagística e desenvolvimento sócio-educacional e/ou sócio-cultural, compreendendo a conservação, manutenção  e limpeza do local (…)”

Em Belo Horizonte, o edital prescreve o seguinte:

A utilização mencionada poderá se dar com fins econômicos ou não, por meio de projetos que levem em conta a revitalização urbanística e paisagística do local e o desenvolvimentos de atividades sociais ou comerciais, e compreendam a conservação, a manutenção e limpeza das áreas (…)” 

Em todos esses casos, o objetivo é o de transferir ao agente privado a responsabilidade municipal de realizar medidas de revitalização e conservação do espaço. Como contrapartida, prevê-se a possibilidade de exploração comercial.  

Percebe-se que, na verdade, sob o discurso da necessidade de revitalização do espaço, há transformação de um espaço público em área comercial a ser explorada por um agente privado. O território deixa de atender ao interesse público para se transformar em área privatizada, na qual um ente privado ficará responsável pela prestação de serviços eminentemente públicos.No caso do Viaduto Santa Tereza em Belo Horizonte, a Permissionária irá assumir a manutenção de um espaço que foi recentemente reformado, desonerando o agente privado.

3. Cessão para fins comerciais sem previsão de receita à municipalidade e sem parâmetros para a exploração:

Outra questão levantada por Sabrina Duran no caso de São Paulo e que encontra ressonância em terras mineiras é o fato de que o poder público concede o uso dos baixios dos viadutos ao particular sem auferir nenhuma receita para tanto e sem realizar estudo prévio para calcular a relação entre os possíveis ganhos pelo particular e os valores a serem investidos na revitalização do espaço.

Em ambos os casos, a cessão dos espaços públicos se dá a título gratuito, isto é, sem que o particular tenha que pagar qualquer quantia ao Município. No caso de Belo Horizonte, a situação talvez seja ainda mais grave, porque, no caso do Viaduto Santa Tereza, a Permissionária poderá ainda instalar sua sede administrativa, sem a necessidade de pagar aluguel.

Sabrina Duran chama atenção para a necessidade de um “estudo de mercado para poder dizer qual é o potencial disso para ter um parâmetro de valor da contrapartida. Porque se o negócio tem o potencial de render R$ 50 milhões ao longo de dez anos e você faz uma concessão de 6 milhões, tem um vazio muito grande aí. Teria que ter um estudo para servir de parâmetro, senão o critério de decisão de contrapartida fica completamente subjetivo, o que não pode ter, por definição, em licitações e análogos.

Em Belo Horizonte, ao contrário do que ocorre em São Paulo, o termo de parceria não estabelece um valor a ser investido pelo particular e impede a existência de exploração comercial lucrativa – toda a renda auferida deve ser reinvestida no “projeto social” proposto.

O ponto comum é a absoluta ausência de parâmetros estabelecidos pelo poder público. Não é apresentado nenhum estudo prévio para aferir o potencial da exploração comercial do espaço para que se saiba, a priori, o valor que será  investido pelo particular em sua revitalização. Em outras palavras, o poder público não se preocupa se a cessão de uso será economicamente benéfica à sociedade. No caso do Viaduto Santa Tereza, é bastante pertinente a indagação lançada por Sabrina Duran: “Ao falar sobre a exploração comercial de um espaço público localizado em uma das regiões mais valorizadas da cidade, é razoável argumentar que um valor de contrapartida é suficiente apenas porque ele foi o maior apresentado em comparação com outros valores aleatórios e sem qualquer parâmetro mínimo?”

4. Longos períodos dos termos de parceria

Assim como no caso do Viaduto do Bixiga em SP, a concessão do baixio do Viaduto Santa Tereza é por um período de dez anos, renováveis até o limite de 30 anos.Períodos tão longos de concessão acabam por reforçar o caráter privatizante desse tipo de medida. O poder público abre mão de um espaço público por um lapso temporal que não costuma ser considerado nem em seu planejamento estratégico. Em 2016, por exemplo, a Prefeitura de Belo Horizonte lançou um plano de metas e resultados para a Belo Horizonte de 2030. A cessão do Viaduto Santa Tereza pode durar até 2046!

Durante tanto tempo gerindo o espaço, o agente privado acaba por se tornar seu proprietário de fato, inclusive por ser responsável por ordenar seu uso e prestar serviços de limpeza e manutenção.

5. Ausência de participação popular

Apesar da publicidade dos chamamentos públicos, tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, não foi realizada nenhuma audiência pública com os grupos e pessoas afetados antes da cessão de uso dos baixios dos viadutos aos agentes privados. Nesse ponto, cabe reproduzir questionamento de Sabrina Duran: Como saber que o projeto atende ao interesse público se a própria Subprefeitura Sé admitiu que não realizou debates com a população local para saber que tipo de intervenção era considerada prioritária para a região?”

6. Ausência de consulta aos órgãos do patrimônio e conselhos:

No caso da cessão do Viaduto no Bixiga, o observaSP apontou a total negligência com o fato de o Bixiga ser um bairro histórico, com inúmeros imóveis tombados. O edital não teria passado pelos órgãos de proteção do patrimônio histórico da cidade, apesar das claras repercussões na dinâmica do bairro que o edital ocasionaria.

Em Belo Horizonte, a situação é parecida. As informações obtidas até o momento indicam que o Conselho de Patrimônio do Município e o IEPHA não foram nem sequer informados da cessão de uso do Viaduto Santa Tereza, que é objeto de tombamento municipal e estadual. Além disso, o Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação também não foi consultado. 

[2] O observaSP é um observatório ligado ao Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da FAUUSP. O observatório tem por objetivo monitorar e influenciar políticas urbanas municipais, com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos, a partir de estudos de casos que analisam as estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística desenhados pelos governos locais para implementar (ou obstruir) o direito à moradia e à cidade, notadamente para os setores mais pobres e vulneráveis da população.

7. A expulsão dos antigos moradores e comerciantes da região por projetos voltados para o uso cultural dos baixios dos viadutos

Em suas pesquisas, a jornalista Sabrina Duran percebeu que os projetos de ocupação dos baixios dos viadutos por agentes privados normalmente envolvem o uso cultural desses espaços, pauta da classe média ilustrada e criativa que mora na região e que vê no parque uma opção de lazer e cultura, mas não debate os impactos especulativos e gentrificadores que a medida já vem provocando na área.” Como ela constatou, tais projetos costumam provocar a expulsão da população de rua da região.

No caso do edital aberto para a região do Bixiga em São Paulo, o observaSP chama a atenção para a possibilidade de expulsão de comerciantes que atuam há anos naquele baixio.

Em Belo Horizonte, como o projeto da CUFA ainda não foi implementado, é impossível afirmar que a população de rua e os comerciantes serão expulsos da região. Porém, há indícios de que o baixio do Viaduto poderá, sim, passar por um processo de higienização caso tal projeto seja efetivado.[3]

[3] Leia mais sobre o Viaduto Santa Tereza no InDebate
O cheiro do mijo: o que a gestão de um banheiro público tem a ver com o enobrecimento de um território?

http://indebate.indisciplinar.com/2017/05/12/o-cheiro-do-mijo-o-que-a-gestao-de-um-banheiro-publico-tem-a-ver-com-o-enobrecimento-de-um-territorio/

Em Belo Horizonte, as intenções gentrificadores desses projetos ficam ainda mais claras quando analisamos a situação do entorno dos viadutos cedidos à iniciativa privada. Ao lado do Viaduto Santa Tereza, foi construído um edifício envidraçado que serviria de hotel durante a Copa do Mundo mas ainda se encontra vazio e sem uso.

[Img.3] Imagem retirada do Google Street View. Baixio do Viaduto Santa Tereza com o hotel vazio ao fundo do lado direito.

Traçar o paralelo entre a experiência de São Paulo e de Belo Horizonte, encontrando os pontos comuns de cessões de baixios de viadutos para agentes privados, permite-nos compreender as estratégias utilizadas para o avanço do capital sobre esses vazios urbanos e vislumbrar as consequências da transferência da gestão de espaços públicos a entes privados. Assim como os pioneiros dos séculos XVII e XIX desbravaram o Meio-Oeste estadunidense, levando civilização àquela região, projetos de revitalização são utilizados para garantir  “bom uso” aos baixios de viadutos, locais normalmente habitados por grupos sociais marginalizados. Como pontuaram Paula Bruzzi Berquó, Natacha Rena e Fernanda Chagas:

Observa-se que, na ponta dos processos de segregação social em áreas urbanas de interesse do mercado, vem sendo utilizado o discurso da revitalização ou requalificação espacial, que, na prática, representa uma política que visa à substituição do público que frequenta, habita e utiliza determinadas regiões por outros públicos, de classes mais abastadas.

Os baixios dos viadutos parecem ser a nova fronteira a ser ultrapassada e apropriada pelo capital para sua contínua expansão. Durante anos de planejamento urbano, os baixios de viadutos foram sumariamente desconsiderados pelos gestores e foram sendo ocupados e utilizados pela população de diversas maneiras: moradia, estacionamento, espaços culturais autônomos.

Recentemente, porém, são diversos os projetos voltados à ocupação desses “vazios”. No plano “BH Segue em Frente – 2013-2016”, do segundo mandato do Prefeito Márcio Lacerda, há a proposta de:

Requalificar certos Espaços Públicos Residuais Atípicos ao longo dos eixos viários, dotando-os de nova utilidade, concebida em harmonia com a estrutura ambiental urbana circundante, por meio da instalação de equipamentos de infraestrutura social, de comércio, serviços e lazer.

Foi com base nessa diretriz que a Prefeitura de Belo Horizonte publicou o edital para ceder o uso de baixios de viadutos da cidade à iniciativa privada.

Nos casos analisados neste texto, os baixios aos quais novas utilidades devem ser atribuídas não se tratam de espaços “vazios”. Pelo contrário. O Viaduto Júlio de Mesquita Filho, no bairro do Bixiga, em São Paulo, e o Viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, são espaços de intensa ocupação cultural, vocação que é desconsiderada pelos editais de outorga de uso publicados pelas prefeituras municipais.

Os projetos aqui analisados, assim como na expansão para o oeste americano, encaram esses territórios como inabitados, as pessoas que os habitam são selvagens e suas histórias não merecem ser consideradas. Caberia aos permissionários, os “pioneiros”, garantir o bom – e rentável! – uso dessa nova fronteira urbana, com a expulsão dos antigos habitantes e substituição dos antigos costumes e usos do espaço.

[3] Leia mais sobre o Viaduto Santa Tereza no InDebate
O cheiro do mijo: o que a gestão de um banheiro público tem a ver com o enobrecimento de um território?

http://indebate.indisciplinar.com/2017/05/12/o-cheiro-do-mijo-o-que-a-gestao-de-um-banheiro-publico-tem-a-ver-com-o-enobrecimento-de-um-territorio/

Felipe Soares

Felipe Soares

Mestre em Direito pela UFMG, pesquisador do Indisciplinar e do Cidade e Alteridade, membro da Real da Rua e conselheiro do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
felipebfs@hotmail.com
Marília Pimenta

Marília Pimenta

graduanda em arquitetura e urbanismo, pesquisadora da frente Zona Cultural no grupo de pesquisa Indisciplinar e conselheira suplente do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
marilie@outlook.com

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O caso do banheiro público do baixio do Viaduto Santa Tereza serve como alegoria do processo de gentrificação pelo qual o centro de Belo Horizonte vem passando nos últimos anos.

Sabe-se que o centro de Belo Horizonte é território de conflitos entre vários interesses econômicos, sociais, culturais e históricos. A região da Praça da Estação é o epicentro da Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos – Via Leste-Oeste[1] e de diversos projetos de revitalização da cidade, bem como de diversos movimentos sociais e culturais de resistência política de enorme importância no debate público sobre a cidade nos últimos anos[2]. Ali, está latente a oposição entre o urbanismo neoliberal que compreende o território urbano a partir da lógica da rentabilidade e o urbanismo biopotente dos movimentos sociais urbanos, que atua por lógicas autônomas, vivências próprias e territorialidades contra-hegemônicas.

A discussão em torno da necessidade de instalação de banheiros públicos resume os processos socioespaciais pelos quais a região vem passando. As seguidas reivindicações dos movimentos que atuam nesse espaço, o descaso constante do poder público e, por fim, a solução milagrosa recentemente proposta exemplificam com perfeição as etapas do processo de gentrificação[3] descritas por Neil Smith, como veremos adiante.

[1] para entender o que é uma OUC: http://migre.me/wACDq; sobre a OUC-ACLO: http://migre.me/wACF8
[2] para saber mais sobre os interesses em jogo na região: http://migre.me/wuN7b
[3] para saber mais sobre gentrificação: http://migre.me/wuN7Q

Breve histórico

Desde 2007, o baixio do Viaduto Santa Tereza é ocupado por uma série de atividades culturais, que envolve batalhas de MC’s, skate e dança de rua, organizadas pelo coletivo Família de Rua[4]. A ocupação cultural do espaço, iniciada por esse grupo, se somou a outras formas de manifestação, fazendo surgir, ao longo do tempo, uma série de demandas políticas, que incluíam reivindicações relativas às condições infra-estruturais do espaço: iluminação, banheiro público, ponto de energia, lixeiras, liberação do alvará.

Após reiterados pedidos, em 2009, a Prefeitura colocou banheiros químicos e lixeiras móveis durante a realização do Duelo de MC’s pela primeira vez. Para além do fornecimento pontual da infra-estrutura, pleiteava-se a instalação de banheiros públicos permanentes no local, o que permitiria que seus usuários e frequentadores pudessem utilizá-los cotidianamente, e não apenas durante os eventos. A ausência de instalações sanitárias adequadas na região tornava a área atrás do palco um banheiro a céu aberto, impróprio a outros usos possíveis.

[4]  para saber mais detalhes desse histórico: http://migre.me/wuNls

Num protesto-ação feito para denunciar o descaso da Prefeitura com a qualidade sanitária do local, organizou-se a LavaAção, descrita pela pesquisadora Paula Bruzzi Berquó:

Em 27 de abril de 2012, tem-se, no baixio do Viaduto Santa Tereza, a LavAção, ato articulado entre a Família de Rua, o coletivo Fora do Eixo, o núcleo de Arte e Ativismo do grupo de teatro Espanca, os envolvidos com o espaço cultural Nelson Bordello, os integrantes do BAixo BAhia Futebol Social e a população de rua local. A ação, pensada como ato de interação entre os diversos agentes que compunham o espaço, consistiu na realização de uma espécie de mutirão para a limpeza da área, com foco nas calçadas situadas sob o Viaduto Santa Tereza e na escadaria que liga o seu baixio ao nível da pista de rolamento de veículos (Figura 57). Apesar de sua pequena escala, tratou-se de um ato fortemente simbólico: a partir de uma interferência conjunta naquele território, possibilidades, ainda que incipientes, pareciam emergir no sentido de apontar caminhos para uma sua construção de fato mais democrática e inclusiva. (fl. 157)

[Img1] Foto: Ludmilla Zago, utilizada no Seminário: A razão neoliberal ataca o território realizado durante o Verão Arte Contemporânea-2017 (VAC-2017)

Em 2013, com o anúncio do Corredor Cultural da Praça da Estação e do projeto de reforma do viaduto, a Prefeitura prometeu a reforma dos banheiros existentes e a sua posterior liberação para uso da cidade. Durante as reuniões públicas para apresentação dos dois projetos, membros da sociedade civil questionaram, por várias vezes, a indisponibilidade dos banheiros públicos, sendo que a resolução desse conflito foi um dos pontos considerados prioritários pela Comissão de Acompanhamento do projeto.

As obras do Viaduto se iniciaram apenas no segundo semestre de 2014, após a Copa do Mundo, e duraram até 2017, totalizando um tempo superior ao da própria construção desse patrimônio belo-horizontino, que durou cerca de 2 anos.

Durante uma reunião do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação no final de 2015, foi perguntado ao representante da Regional Centro-Sul, órgão responsável pela administração do Viaduto, sobre a possibilidade de liberação dos serviços sanitários ainda naquele ano ou, pelo menos, antes do carnaval do ano seguinte. A Regional Centro-Sul informou que não seria possível a disponibilização em 2015, devido à falta de orçamento.

Em 2016, a primeira parte das obras, na área em que se localizam os banheiros públicos, foi entregue à população, porém, sem a abertura dos sanitários. As razões alegadas pela Prefeitura eram a falta de orçamento, a dificuldade de manutenção e conservação e a impossibilidade de repassar a administração dos sanitários a um agente privado, diante da pouca rentabilidade do negócio.

É curioso que a Prefeitura possa gastar R$ 2 milhões de reais por ano limpando pichações e não tenha orçamento nem capacidade para manter e conservar um singelo banheiro público.

É curioso que uma Prefeitura responsável por administrar um município com quase 3 milhões de habitantes e que despende, por exemplo, alardeados R$ 2 milhões de reais por ano limpando pichações em viadutos não tenha orçamento e nem capacidade administrativa para manter e conservar um singelo banheiro público.

O descaso da Prefeitura com os banheiros públicos do Viaduto Santa Tereza parece ser proposital. Primeiro, abandona-se a região para que, posteriormente, como se fosse a única solução possível, sejam implementados projetos de revitalização, em parceria com agentes privados. É essa a descrição feita por Neil Smith:

Cada vez menores quantidades de capital são canalizadas para a manutenção e restauração dos edifícios localizados na área central. Isso resulta naquilo que denominamos um diferencial (rent gap) entre a atual renda da terra capitalizada pelo uso presente (deteriorado) e a renda da terra potencial, que poderia ser capitalizada pelo “mais elevado e melhor” uso da terra (ou, ao menos, comparativamente “mais elevado e melhor” uso), em virtude da sua localização centralizada. (…)A maior parte das cidades no mundo capitalista avançado experimentou tal fenômeno, em maior ou menor intensidade. Onde o processo é desobstruído para trilhar seu caminho em nome do livre mercado, ele leva a um abandono substancial das propriedades localizadas nas áreas centrais. Essa desvalorização do capital investido no ambiente construído afeta as propriedades de todos os gêneros: comercial e industrial, bem como residencial. (…) Em um nível mais básico, é o deslocamento do capital para a construção de paisagens suburbanas e o consequente surgimento de um rent gap que cria a oportunidade econômica para a reestruturação das áreas urbanas centrais. A desvalorização da área central cria a oportunidade para a revalorização dessa parte “subdesenvolvida” do espaço urbano.

A solução milagrosa: revitalização por meio da permissão de direito real de uso à CUFA

Eis que, em um dos últimos atos de seu governo, no dia 30 de dezembro de 2016, o ex-prefeito Márcio Lacerda assinou o Decreto 16.537/16, que concedeu o direito de permissão de direito real de uso do Viaduto Santa Tereza à CUFA-MG (Central Única das Favelas), concomitante à outorga de uso de outros quatro baixios de viadutos a outras entidades privadas. O ex-mandatário, que foi tão combatido pelos movimentos sociais e culturais atuantes naquela região durante seus 8 anos de mandato, deixava um verdadeiro “presente de grego” para a cidade, em mais uma tentativa de revitalizar/gentrificar aquele território.

Depois de despender muito dinheiro público com as obras do Viaduto Santa Tereza, que foram precedidas, desde o início do século, por outras grandes obras públicas e investimentos privados na região, a Prefeitura cedeu a gestão do espaço a uma entidade privada, a CUFA.

A outorga foi formalizada por meio de um termo de permissão de direito real de uso, firmado entre o Munícipio de Belo Horizonte e a CUFA (as questões jurídicas pertinentes serão abordadas posteriormente, em outro texto).

A partir da leitura do projeto apresentado pela CUFA, podemos perceber algumas evidências de que, após anos de abandono daquela área, a Prefeitura apresenta agora uma solução milagrosa para todos os problemas nunca antes resolvidos. Nesse tipo de projeto de revitalização, é comum que a promoção da cultura sirva de justificativa para sua implementação.

No projeto apresentado pela CUFA, são destacados sinais de abandono do Viaduto, que precisam ser combatidos para que um “bom uso do local” seja retomado:

[Img2] LavAção no Viaduto Santa Tereza – Foto: CASA FORA DO EIXO MINAS, 2012.

A área tem iluminação insuficiente, pichações em locais inadequados e sem ordem, sinais de vandalismo em parte da estrutura arquitetônica do viaduto, banheiros vandalizados (projetados à época da execução) e fechados por não estarem em condições de uso, bem como a área no seu entorno (quadra de basquete) utilizada como banheiro público por usuários de drogas, flanelinhas, o que torna o local insalubre, com mau cheiro e não sendo utilizado para o fim destinado.

O uso inadequado e apropriação indiscriminada do espaço propicia a utilização de drogas e abrigo para usuários e outras pessoas em situação de rua. O clima de insegurança, insalubridade, aparência e fama negativa afasta bom uso do local.[5]

[5] Acesse o projeto completo http://migre.me/wACWb

Há inversão da relação “causa-consequência” em relação à insalubridade da quadra de basquete. Segundo o projeto apresentado, usuários de drogas e flanelinhas tornam o local insalubre, desconsiderando que não há banheiro público disponível na região há muitos anos, em razão da inércia da Prefeitura perante as recorrentes demandas nesse sentido. Essa versão intenta culpabilizar os usuários do local, que não saberiam como utilizar corretamente o espaço público, e não o poder público municipal, responsável pela manutenção dos banheiros públicos da cidade.

Para solucionar esse problema, propõe-se a exploração comercial de banheiros públicos a preço popular. O projeto é bastante claro em suas intenções:

A ideia é promover a transformação da imagem do baixo viaduto, mudar o visual negativo, apropriando-se das intervenções realizadas recentemente pelo município e agregando melhorias. Além disso, tornar o local um ponto de encontro, de compras de artesanatos e outros produtos de feirantes, além de estimular a prática de esportes urbanos, expressões artísticas e eventos de mote cultural. A CUFA-MG se propõe a agregar ainda mais valor a esse nobre espaço da cidade e, principalmente, promover a boa gerência do espaço, mantendo-o com uso qualificado e ordenado durante todo o tempo, desestimulando vandalismo e estimulando a apropriação artística e cultural do local.

Realizar projetos de revitalização para depois instaurar projetos que visam transformar a suposta imagem negativa de um local abandonado pelo poder público durante anos, mas cheio de vida e cultura promovida por diversos movimentos, é seguir a cartilha para a gentrificação desse território. Dessa última frase, é interessante notar também o uso do termo “nobre”, que nos remete à tradução mais usual do termo em inglês gentrification: enobrecimento.

O caso do banheiro público do Viaduto Santa Tereza ilustra as etapas da gentrificação: abandono, desvalorização, rent gap, revitalização, expulsão e novos frequentadores.

O caso do banheiro público do Viaduto Santa Tereza ilustra com clareza as etapas locais do processo de gentrificação: abandono intencional pelo poder público, desvalorização financeira, imagem negativa do espaço ligada ao vandalismo, rent gap [6], projetos de revitalização que prometem dar “novos ares” à região, expulsão dos antigos comerciantes e habitantes, e finalmente a chegada de novos frequentadores.

É contra esse processo que os movimentos sociais e culturais que ali atuam começaram a se organizar. A proposta inicial desses movimentos é que o poder público municipal assuma suas obrigações constitucionais de zelar pela manutenção da infraestrutura urbana, que inclui os banheiros públicos, sem transferi-la a agentes privados, permitindo que a vida e a cultura que já existem naquele local continuem a existir com melhores condições e sem gestão privada.

O caso do banheiro público do Viaduto Santa Tereza ilustra com clareza as etapas locais do processo de gentrificação: abandono intencional pelo poder público, desvalorização financeira, imagem negativa do espaço ligada ao vandalismo, rent gap [6], projetos de revitalização que prometem dar “novos ares” à região, expulsão dos antigos comerciantes e habitantes, e finalmente a chegada de novos frequentadores.

É contra esse processo que os movimentos sociais e culturais que ali atuam começaram a se organizar. A proposta inicial desses movimentos é que o poder público municipal assuma suas obrigações constitucionais de zelar pela manutenção da infraestrutura urbana, que inclui os banheiros públicos, sem transferi-la a agentes privados, permitindo que a vida e a cultura que já existem naquele local continuem a existir com melhores condições e sem gestão privada.

[6] Teoria desenvolvida pelo geógrafo inglês Neil Smith que explica economicamente o processo de gentrificação. Para Smith, rent gap é a diferença entre o valor imobiliário corrente de um imóvel ou conjunto de imóveis e o valor potencial do mesmo território urbano: este hiato financeiro se torna alvo do interesse de investidores que empreendem os processos de gentrificação.

Cartilha Real da Rua

Cartilha com território, dúvidas e linha do tempo referente ao Viaduto Santa Tereza
Felipe Soares

Felipe Soares

Mestre em Direito pela UFMG, pesquisador do Indisciplinar e do Cidade e Alteridade, membro da Real da Rua e conselheiro do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
felipebfs@hotmail.com
Marília Pimenta

Marília Pimenta

graduanda em arquitetura e urbanismo, pesquisadora da frente Zona Cultural no grupo de pesquisa Indisciplinar e conselheira suplente do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
marilie@outlook.com

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O aprofundamento do neoliberalismo no mundo atinge as cidades e governo local

Localizada no hipercentro de Belo Horizonte, a Praça da Estação é historicamente um território de disputa entre diferentes projetos de cidade. Nos primeiros anos de construção da capital mineira, recebeu as famílias e as máquinas que construíram a cidade planejada por Aarão Reis, enquanto algumas dessas famílias construíam a primeira favela da cidade, no Alto da Estação, na Rua Sapucaí, próximo à Estação de Minas. 

Nas décadas de 1970 e 1980, a Praça da Estação e todos os prédios históricos ao seu redor quase deram lugar a um enorme sistema viário, que deixou de ser construído depois da movimentação de arquitetos e urbanistas pelo tombamento de diversos edifícios localizados nesse território.

Na década de 1990, esse território passou a ser alvo de diversos projetos urbanísticos que pretendiam retomar o seu valor cultural, ao mesmo tempo em que a esplanada da Praça da Estação recebia o BH Canta e Dança, com a presença de milhares de jovens voltados para a cultura hip-hop e o Viaduto Santa Teresa já recebia alguns encontros de pixadores. (Viaduto Santa Tereza“, de João Perdigão)

Nos anos 2000, a Praça da Estação se tornou território de diversos movimentos culturais da cidade: Duelo de Mcs, Praia da Estação, Samba da Meia Noite… Foi também parte fundamental da Operação Urbana Consorciada Vale do Arrudas, que flexibiliza os parâmetros urbanísticos da região em favor de interesses escusos do mercado imobiliário.

Quando, em 2013, em meio às diversas movimentações sociais que marcaram o país, a Prefeitura de Belo Horizonte apresentou à sociedade o “Corredor Cultural da Praça da Estação, talvez não esperasse pela reação que veio das pessoas que já ocupavam aquele local.

Conforme relatos e reflexões de Paula Bruzzi Berquó, que acompanhou de perto todo esse processo, em sua dissertação de mestrado  “A OCUPAÇÃO E A PRODUÇÃO DE ESPAÇOS BIOPOTENTES EM BELO HORIZONTE: entre rastros e emergências”

A diversidade de manifestações culturais que, desde o surgimento do Duelo, em agosto e 2007 – e sobretudo a partir de 2010, pelo efeito irradiador da Praia – passaram a correr no baixio do viaduto, tornaram-no um dos mais importantes polos de discussão política da cidade. Os debates que ali se engendravam, apesar de fortemente ligados à questão territorial, ultrapassavam, muitas vezes, temáticas apenas locais. O coletivo Real da Rua, por exemplo, tornou-se, a partir da discussão de questões relacionadas ao viaduto, importante

propagador de debates em torno à livre ocupação dos espaços públicos da cidade de maneira geral. Ora, o local adquiria, com isso, importância estratégica crescente frente aos órgãos municipais de planejamento urbano: além de possuir localização privilegiada (na região hipercentral), havia se tornado um importante foco de resistência a políticas de  cerceamento à livre apropriação dos espaços públicos da cidade.

De fato, tratava-se de um espaço em franca disputa. Prova disso é que, além da proposta referente ao Corredor Cultural, este se incluía também na Operação Urbana

Consorciada do Vale do Arrudas, intervenção urbanística de cunho estrutural que se esboçava, simultaneamente, na Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano. Fruto de uma parceria entre o poder público municipal e empresas privadas, o projeto estabelecia a flexibilização dos parâmetros urbanísticos que regulamentavam a área. Contudo, ainda que o intuito (tal como declarado no Estatuto da Cidade) fosse o de alcançar “melhorias sociais e a valorização ambiental” nas áreas em que tais  mudanças fossem realizadas, os reais ganhos que tal medida aparentava estar em vias de aportar, nesse sentido, para a área da Praça da Estação, eram bastante  controversos. Pareciam prevalecer, ao invés disso, interesses privados ocultos, voltados especificamente para a valorização dos terrenos situados no local. De fato,

como pontua Fernanda Chagas (2013), “a todo tempo fica a sensação de que há mais reuniões e acordos acontecendo ‘a portas fechadas’ do que a Prefeitura ou as  empresas envolvidas gostariam de divulgar” (CHAGAS, 2013, p.104).

Assim, apesar da alegação, pela Fundação Municipal de Cultura, da ausência de qualquer relação entre o Programa Corredor Cultural da Praça da Estação e a referida

Operação Urbana Consorciada, era possível antever por meio destes, o crescente  interesse do Estado e, sobretudo do mercado, pela região. Ora, a proposta do “Corredor Cultural”, apesar de não configurar, como a Operação Urbana, uma parceria público-privada formal, parecia mostrar-se, assim como esta, extremamente estratégica do ponto de vista do mercado imobiliário. O processo de “revitalização” nele envolvido contribuiria, muito provavelmente, para uma almejada valorização dos terrenos localizados nas proximidades da Praça da Estação (e de toda a região central), o que geraria grandes possibilidades de lucro aos agentes privados envolvidos. Se consumado, tal movimento acabaria, contudo, por tornar economicamente insustentável a permanência tanto dos pequenos estabelecimentos comerciais quanto dos próprios moradores (pessoas em situação de rua e setores marginalizados da população) que já ocupavam, naquele momento, o local. Não por acaso, o projeto se fazia sem qualquer participação destes agentes.

Para barrar o projeto proposto pela Prefeitura, os movimentos organizados em torno daquele território começaram a afirmar que “O Corredor Cultural já existe!”, culminando na elaboração de um mapa de mesmo nome na plataforma GoogleMaps com o “propósito de dar a ver os diversos movimentos, em grande parte informais, que compunham o já pulsante cenário cultural local”, conforme constatou Paula Bruzzi Berquó . Organizou-se também “A Ocupação” no baixio do Viaduto Santa Teresa, para dar visibilidade aos atores e movimentos da região e para demonstrar a insatisfação em relação ao projeto do Corredor Cultural apresentado pela Prefeitura.

O Indisciplinar participou desse processo desde o início, em 2013, quando o projeto foi apresentado pela Prefeitura de Belo Horizonte, conforme descreve Paula Bruzzi Berquó:

É em meio a esse processo, e a partir do reconhecimento de suas falhas, que os alunos da disciplina UNI 009 Oficina Multidisciplinar realizada no primeiro semestre de 2013 na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais se engajaram no estudo da área do baixio do Viaduto Santa Tereza. A disciplina recebeu o nome de “Cartografias Críticas” e teve como escopo, durante o primeiro semestre de 2013, a investigação de possíveis efeitos da implantação do “Programa Corredor Cultural da Praça da Estação” nas dinâmicas cotidianas do local. Para isso, foi realizada uma ampla pesquisa a respeito dos atores e linhas de força que compunham a área no momento em que o projeto se esboçava – processo este que envolveu conversas com moradores de rua, comerciantes ambulantes, grupos artísticos e muitos dos movimentos culturais atuantes no espaço. Desse trabalho, resultaram cadernos, diagramas, textos, e um mapa online colaborativo, construído por meio da inclusão, por parte de qualquer pessoa interessada, dos eventos culturais, fixos ou efêmeros, ocorridos na área.

Junto com essas ações realizadas nas ruas, nas duas reuniões públicas organizadas pela Fundação Municipal de Cultura para apresentação do projeto houve intensa presença das pessoas afetadas, onde ficou evidente a insatisfação com o projeto, especialmente em razão da falta de participação social para sua elaboração e do risco iminente de gentrificação da área.  
Logo na primeira reunião (ata disponível no relatório da comissão de acompanhamento, download aqui), um dos presentes afirmou que “o corredor cultural já existe, já é real” e a função do poder público seria “torná-lo mais possível, incorporando todos esses agentes que compõem a vida do espaço, o que inclui agentes culturais, população de rua e o proletariado da cidade”, como foi noticiado na época. (AYER, Flávia. PBH quer criar corredor cultural na Praça da Estação. Jornal Estado de Minas, 14 mar. 2013. Gerais. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/03/14/interna_gerais,356890/pbh-quer-criarcorredor-cultural-na-praca-da-estacao.shtml>)  O projeto apresentado, no entanto, desconsiderava as ocupações existentes na área.

Tal projeto se encontra dentro do contexto do urbanismo neoliberal, no qual, segundo proposição de Natacha Rena e Paula e Berquó , “projetos ditos “culturais” são cada vez mais valorizados no mercado urbano. Nesses projetos, guiados por medidas pacificadoras de transformação urbana em cenário “higiênico” e consensual, o fomento ao turismo global se conforma enquanto prioridade, em detrimento do atendimento às reais necessidades das comunidades locais.”

 

No caso de Belo Horizonte, esse processo é bastante claro. Durante as décadas de 1990 e 2000, depois da “descoberta” do valor cultural da região na década de 1980, foram várias as obras e os projetos que buscavam a recuperação da região central da cidade com reformas voltadas para o uso cultural dos equipamentos públicos e privados existentes.

Já havia, porém, cultura e vida naquele território. A partir de 2007, com o Duelo de Mcs, marco inicial da chamada “Quarta fase: início (?) da ocupação cultural de resistência”, de acordo com a proposição de Paula Bruzzi Berquó, o conflito entre os desejos gentrificadores do Estado-capital e a resistência advinda principalmente de movimentos culturais presentes na região começa a ficar mais evidente.

Com a movimentação em torno do território da Praça da Estação, formou-se, em Abril de 2013,uma Comissão de Acompanhamento com pessoas associadas aos movimentos culturais daquela região. Em junho de 2014, essa Comissão apresentou um relatório, que destacava os conflitos sociais existentes na região da Zona Cultural e enfatizava as demandas da sociedade civil para a região . Essas medidas tinham uma evidente finalidade “anti-gentrificadora”, pois pretendiam impedir a desconsideração do contexto e da história locais por projetos produzidos por agentes que desconhecem ou ignoram tais fatores.

Com o fim precoce do projeto do “Corredor Cultural”, surgiu a Zona Cultural da Praça da Estação e o seu Conselho Consultivo, criado em 2014, por meio do Decreto 15.587/14, que foi alterado para mudar a composição do Conselho e seu território:

* link para anexo do decreto
** link do editado pelo decreto
*** link para segundo anexo

Como resultado de muitas reivindicações de movimentos sociais atuantes na área contra o projeto do “Corredor Cultural da Praça da Estação” (projeto disponível para consulta aqui), o Conselho adotou como seu princípio ético a frase “Melhorar sem expulsar”. Proposto pela então conselheira Natacha Rena, esse princípio encampa os ideais que guiaram alguns movimentos sociais que participaram das lutas para instituição do Conselho em 2014,   ano em que parte dessa movimentação se manteve durante o Viaduto Ocupado, contra as obras realizadas no Viaduto Santa Teresa, também sem participação popular e transparência [1]. Dentre outras atribuições, o Conselho tinha como objetivo construir um Plano Diretor participativo para a área, dentro do prazo de um ano.

Desde setembro de 2015, as reuniões do Conselho passaram a tratar do território da Zona Cultural. Foram apresentados, por membros da Prefeitura e do Indisciplinar, estudos sobre os vazios gerados por imóveis subutilizados (dados sobre vazios disponíveis aqui), sobre os equipamentos históricos e culturais existentes, sobre os parâmetros urbanísticos do novo Plano Diretor em tramitação na Câmara Municipal. Além disso, houve discussões sobre questões infraestruturais da área, como a falta de banheiro público e o fechamento de vias para a realização de eventos, que são constantemente levantadas pelos frequentadores da área como pontos que devem ser resolvidos o quanto antes, mas até o momento, por exemplo, o banheiro público existente no Viaduto Santa Teresa não foi inaugurado, contrariando os vários requerimentos realizados por movimentos sociais desde 2013.

[1] Reforma que dura até o ano de 2017, tornando-se, assim, segundo o pesquisador João Perdigão, a obra mais longa da história do Viaduto, durando mais até do que a sua própria construção. A inauguração ocorreu, uma vez mais, por força de alguns dos movimentos sociais que atuaram anteriormente no território, que inauguram, sem aval da Prefeitura, a área da pista de skate. (http://ouviaduto.tumblr.com/)

Em 2016, o Indisciplinar, por meio dos conselheiros Felipe Soares e Marília Pimenta, apresentou proposta de metodologia que se fundamentava em cartografar atores, ações culturais, legislações pertinentes e projetos existentes relativos ao território da Zona Cultural. As conselheiras Laura Rennó e Izabel Dias, servidoras da Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano, também apresentaram proposta de metodologia para o Conselho, na qual propuseram dar voz à diversidade social presente no território a partir de metodologias vinculadas ao uso cotidiano dos espaços. O Conselho iniciou seus trabalhos em 2016, focando em metodologias e táticas que resgatassem o histórico do território e incentivassem a participação popular na construção das diretrizes, com intuito claro de evitar a gentrificação da área com o projeto da Zona Cultural, o que culminou com a elaboração das diretrizes para a Zona Cultural.

A partir da premissa “melhorar, sem expulsar”, o Conselho, com suas diretrizes, apostou na territorialização dos movimentos anti-gentrificadores já existentes na área da Zona Cultural. Criar habitações de interesse social e melhorar as condições de vida da população de rua e dos vendedores ambulantes são medidas que têm o propósito de garantir a permanência dessas populações naquele território. Incentivar as atividades que já ocorrem na Zona Cultural e valorizar as que são mais democráticas (gratuitas e sem gradis, por exemplo) são diretrizes que ressaltam a história e o contexto do território, fatores que costumam ser desprezados por projetos arquitetônicos com objetivos gentrificadores. Ressaltar os imóveis vazios ou subutilizados e a necessidade de cumprimento da função social da propriedade tem como objetivo impedir que os interesses de proprietários particulares se sobreponham aos interesses dos demais atores presentes no território.

O futuro do território da Praça da Estação depende dos próximos movimentos dos diversos agentes interessados. O mercado imobiliário e financeiro pretende obter lucro com os imóveis vazios e subutilizados da região, que deve se valorizar nos próximos anos, com a inauguração do Tribunal Regional do Trabalho no antigo prédio da Escola de Engenharia. Os movimentos sociais atuantes na região, por sua vez, mantém-se organizados, em busca de concretizar antigas demandas ainda não alcançadas.

Texto por:

Bernardo Neves

Felipe Bernardo Furtado Soares

Marília Pimenta