Depois dos frankensteins, esquizoides errantes sem fronteiras, e dos fantasmas alienados que vagam da pressão, descompressão e depressão, chegamos finalmente aos zumbis que hoje se tornaram nossa mais próxima normalopatia.
Os viadutos como a nova fronteira de expansão do capital
Os projetos de outorga de uso de viadutos a agentes privados em São Paulo e Belo Horizonte apresentam pontos comuns que exemplificam as estratégias utilizadas pelo capital para tomada desses “vazios urbanos”
Mirante 9 de Julho fica embaixo do Viaduto Professor Bernardino Tranchesi e sobre o túnel da avenida Nove de Julho. Foto: AG
Uma das metáforas utilizadas por Neil Smith para exemplificar o processo de gentrificação[1] nas cidades do século XX foi a ocupação do Oeste estadunidense durante os séculos XVIII e XIX. Durante a expansão da fronteira estadunidense para além da costa Leste, o território desconhecido pelos pioneiros e seus habitantes eram descritos como selvagens, perigosos e primitivos. Os pioneiros tinham como missão levar a civilização ao novo território e, claro, garantir mais espaço e mão-de-obra para a expansão do capital.
Smith compara esse processo com a gentrificação dos centros urbanos nas cidades norte-americanas do século XX. Em vez de caubóis e indígenas, temos os pioneiros e proprietários urbanos que irão desbravar as novas fronteiras urbanas, habitadas por pessoas que são consideradas “como um elemento natural do meio físico a que pertencem” e não como agentes sociais e históricos.
A jornalista Sabrina Duran, em seu blog “Arquitetura da Gentrificação: cidade e direitos humanos”, parte dos conceitos apresentados por Neil Smith para analisar algumas medidas da política urbana desenvolvida em São Paulo nos últimos anos em relação aos baixios de viadutos. Segundo ela, “iniciativas recentes da prefeitura dão indícios de que esses espaços, antes locais de ocultamento da população em situação de rua, passaram a ser vistos como nova frente de expansão do capital imobiliário, que precisa de espaços higienizados socialmente e atraentes do ponto de vista comercial e turístico, que circundem e valorizem os terrenos onde construirão suas torres comerciais e residenciais.“
Tal conclusão surgiu ao longo de uma série de reportagens desenvolvidas por Sabrina sobre outorgas de uso de baixios de viadutos à iniciativa privada na cidade de São Paulo.
[1] Saiba mais sobre gentrificação com nossa cartilha
http://migre.me/wuN7Q
[Img.1] Mirante abriga festas promovidas por empresas como a transnacional Ray Ban. Foto: I hate flash
No mesmo sentido, o observaSP[2] realizou alguns estudos e artigos. A partir da comparação da experiência de São Paulo, retratada nessas duas fontes, e a de Belo Horizonte, formalizada pelo Decreto 16.537/16, que concede permissão de direito real de uso de cinco viadutos da cidade a cinco entidades privadas, sistematizamos alguns pontos comuns relativos às cessões de uso de baixios de viadutos a agentes privados:
1.Chamamentos Públicos amplos e genéricos:
Sabrina aponta que o chamamento público para as empresas interessadas em reformar o Viaduto Professor Bernardino Tranchesi menciona apenas “interessados da iniciativa privada”, sem explicitar a possibilidade de formação de consórcios de empresas. Em Belo Horizonte, o aviso de consulta pública 01/2015 incorre no mesmo vício ao se referir a “eventuais interessados da iniciativa privada em realizar parcerias com o Município para a utilização da área dos baixios dos viadutos”. A amplitude do chamamento dificulta a concorrência e a garantia de isonomia.
Além disso, tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, pouco se especifica sobre os parâmetros e finalidades dos editais de ocupação. Não há descrição mínima das contrapartidas necessárias e nem dos parâmetros de conservação e manutenção a serem mantidos pelos particulares. Assim, abre-se possibilidade para o fechamento e a privatização desses espaços públicos sem qualquer transparência e sem previsão de benefícios ao restante da sociedade.
2. Revitalização x Exploração comercial: qual o real objetivo das cessões de uso dos baixios?
Ao analisar o edital de Concorrência Pública para concessão de uso oneroso e requalificação urbanística dos baixos do Viaduto Júlio de Mesquita Filho e do seu entorno, no bairro do Bixiga, o observaSP apontou o seguinte:
Embora a premissa para o edital seja a manutenção e qualificação do baixo como espaço público, e ainda que o texto mencione que o vencedor deverá criar no terreno usos socioculturais que convidem os cidadãos à permanência, são enumeradas apenas genericamente referências e diretrizes para o projeto de ocupação, que nem mesmo definem usos ou parâmetros obrigatórios para a transformação urbanística do local. Pior, o edital determina que a proposta vencedora será necessariamente a de maior valor, o que significa que na prática a empresa ou consórcio vencedor poderá fazer o que bem entender do terreno, desde que pague bem e siga algumas poucas determinações.
(…)
Como vem ocorrendo nas parcerias público-privadas e concessões que abundam na atual gestão municipal, são os interesses privados que acabam por pautar a transformação urbana, seguindo sempre a lógica da rentabilidade.
A falta de clareza acerca dos reais objetivos desse tipo de edital está presente também no caso estudado pela jornalista Sabrina Duran e no de Belo Horizonte.
A finalidade do edital publicado pela Prefeitura de São Paulo para uso do Viaduto Professor Bernardino Tranchesi é “efetuar Termo de Cooperação com a apresentação de propostas de parceria, execução e implantação de projetos de revitalização urbanística, ambiental, paisagística e desenvolvimento sócio-educacional e/ou sócio-cultural, compreendendo a conservação, manutenção e limpeza do local (…)”
Em Belo Horizonte, o edital prescreve o seguinte:
Em todos esses casos, o objetivo é o de transferir ao agente privado a responsabilidade municipal de realizar medidas de revitalização e conservação do espaço. Como contrapartida, prevê-se a possibilidade de exploração comercial.
Percebe-se que, na verdade, sob o discurso da necessidade de revitalização do espaço, há transformação de um espaço público em área comercial a ser explorada por um agente privado. O território deixa de atender ao interesse público para se transformar em área privatizada, na qual um ente privado ficará responsável pela prestação de serviços eminentemente públicos.No caso do Viaduto Santa Tereza em Belo Horizonte, a Permissionária irá assumir a manutenção de um espaço que foi recentemente reformado, desonerando o agente privado.
3. Cessão para fins comerciais sem previsão de receita à municipalidade e sem parâmetros para a exploração:
Outra questão levantada por Sabrina Duran no caso de São Paulo e que encontra ressonância em terras mineiras é o fato de que o poder público concede o uso dos baixios dos viadutos ao particular sem auferir nenhuma receita para tanto e sem realizar estudo prévio para calcular a relação entre os possíveis ganhos pelo particular e os valores a serem investidos na revitalização do espaço.
Em ambos os casos, a cessão dos espaços públicos se dá a título gratuito, isto é, sem que o particular tenha que pagar qualquer quantia ao Município. No caso de Belo Horizonte, a situação talvez seja ainda mais grave, porque, no caso do Viaduto Santa Tereza, a Permissionária poderá ainda instalar sua sede administrativa, sem a necessidade de pagar aluguel.
Sabrina Duran chama atenção para a necessidade de um “estudo de mercado para poder dizer qual é o potencial disso para ter um parâmetro de valor da contrapartida. Porque se o negócio tem o potencial de render R$ 50 milhões ao longo de dez anos e você faz uma concessão de 6 milhões, tem um vazio muito grande aí. Teria que ter um estudo para servir de parâmetro, senão o critério de decisão de contrapartida fica completamente subjetivo, o que não pode ter, por definição, em licitações e análogos.”
Em Belo Horizonte, ao contrário do que ocorre em São Paulo, o termo de parceria não estabelece um valor a ser investido pelo particular e impede a existência de exploração comercial lucrativa – toda a renda auferida deve ser reinvestida no “projeto social” proposto.
O ponto comum é a absoluta ausência de parâmetros estabelecidos pelo poder público. Não é apresentado nenhum estudo prévio para aferir o potencial da exploração comercial do espaço para que se saiba, a priori, o valor que será investido pelo particular em sua revitalização. Em outras palavras, o poder público não se preocupa se a cessão de uso será economicamente benéfica à sociedade. No caso do Viaduto Santa Tereza, é bastante pertinente a indagação lançada por Sabrina Duran: “Ao falar sobre a exploração comercial de um espaço público localizado em uma das regiões mais valorizadas da cidade, é razoável argumentar que um valor de contrapartida é suficiente apenas porque ele foi o maior apresentado em comparação com outros valores aleatórios e sem qualquer parâmetro mínimo?”
4. Longos períodos dos termos de parceria
Assim como no caso do Viaduto do Bixiga em SP, a concessão do baixio do Viaduto Santa Tereza é por um período de dez anos, renováveis até o limite de 30 anos.Períodos tão longos de concessão acabam por reforçar o caráter privatizante desse tipo de medida. O poder público abre mão de um espaço público por um lapso temporal que não costuma ser considerado nem em seu planejamento estratégico. Em 2016, por exemplo, a Prefeitura de Belo Horizonte lançou um plano de metas e resultados para a Belo Horizonte de 2030. A cessão do Viaduto Santa Tereza pode durar até 2046!
Durante tanto tempo gerindo o espaço, o agente privado acaba por se tornar seu proprietário de fato, inclusive por ser responsável por ordenar seu uso e prestar serviços de limpeza e manutenção.
5. Ausência de participação popular
Apesar da publicidade dos chamamentos públicos, tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, não foi realizada nenhuma audiência pública com os grupos e pessoas afetados antes da cessão de uso dos baixios dos viadutos aos agentes privados. Nesse ponto, cabe reproduzir questionamento de Sabrina Duran: “Como saber que o projeto atende ao interesse público se a própria Subprefeitura Sé admitiu que não realizou debates com a população local para saber que tipo de intervenção era considerada prioritária para a região?”
6. Ausência de consulta aos órgãos do patrimônio e conselhos:
No caso da cessão do Viaduto no Bixiga, o observaSP apontou a total negligência com o fato de o Bixiga ser um bairro histórico, com inúmeros imóveis tombados. O edital não teria passado pelos órgãos de proteção do patrimônio histórico da cidade, apesar das claras repercussões na dinâmica do bairro que o edital ocasionaria.
Em Belo Horizonte, a situação é parecida. As informações obtidas até o momento indicam que o Conselho de Patrimônio do Município e o IEPHA não foram nem sequer informados da cessão de uso do Viaduto Santa Tereza, que é objeto de tombamento municipal e estadual. Além disso, o Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação também não foi consultado.
[2] O observaSP é um observatório ligado ao Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da FAUUSP. O observatório tem por objetivo monitorar e influenciar políticas urbanas municipais, com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos, a partir de estudos de casos que analisam as estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística desenhados pelos governos locais para implementar (ou obstruir) o direito à moradia e à cidade, notadamente para os setores mais pobres e vulneráveis da população.
7. A expulsão dos antigos moradores e comerciantes da região por projetos voltados para o uso cultural dos baixios dos viadutos
Em suas pesquisas, a jornalista Sabrina Duran percebeu que os projetos de ocupação dos baixios dos viadutos por agentes privados normalmente envolvem o uso cultural desses espaços, “pauta da classe média ilustrada e criativa que mora na região e que vê no parque uma opção de lazer e cultura, mas não debate os impactos especulativos e gentrificadores que a medida já vem provocando na área.” Como ela constatou, tais projetos costumam provocar a expulsão da população de rua da região.
No caso do edital aberto para a região do Bixiga em São Paulo, o observaSP chama a atenção para a possibilidade de expulsão de comerciantes que atuam há anos naquele baixio.
Em Belo Horizonte, como o projeto da CUFA ainda não foi implementado, é impossível afirmar que a população de rua e os comerciantes serão expulsos da região. Porém, há indícios de que o baixio do Viaduto poderá, sim, passar por um processo de higienização caso tal projeto seja efetivado.[3]
[3] Leia mais sobre o Viaduto Santa Tereza no InDebate
O cheiro do mijo: o que a gestão de um banheiro público tem a ver com o enobrecimento de um território?
http://indebate.indisciplinar.com/2017/05/12/o-cheiro-do-mijo-o-que-a-gestao-de-um-banheiro-publico-tem-a-ver-com-o-enobrecimento-de-um-territorio/
Em Belo Horizonte, as intenções gentrificadores desses projetos ficam ainda mais claras quando analisamos a situação do entorno dos viadutos cedidos à iniciativa privada. Ao lado do Viaduto Santa Tereza, foi construído um edifício envidraçado que serviria de hotel durante a Copa do Mundo mas ainda se encontra vazio e sem uso.
[Img.3] Imagem retirada do Google Street View. Baixio do Viaduto Santa Tereza com o hotel vazio ao fundo do lado direito.
Traçar o paralelo entre a experiência de São Paulo e de Belo Horizonte, encontrando os pontos comuns de cessões de baixios de viadutos para agentes privados, permite-nos compreender as estratégias utilizadas para o avanço do capital sobre esses vazios urbanos e vislumbrar as consequências da transferência da gestão de espaços públicos a entes privados. Assim como os pioneiros dos séculos XVII e XIX desbravaram o Meio-Oeste estadunidense, levando civilização àquela região, projetos de revitalização são utilizados para garantir “bom uso” aos baixios de viadutos, locais normalmente habitados por grupos sociais marginalizados. Como pontuaram Paula Bruzzi Berquó, Natacha Rena e Fernanda Chagas:
Os baixios dos viadutos parecem ser a nova fronteira a ser ultrapassada e apropriada pelo capital para sua contínua expansão. Durante anos de planejamento urbano, os baixios de viadutos foram sumariamente desconsiderados pelos gestores e foram sendo ocupados e utilizados pela população de diversas maneiras: moradia, estacionamento, espaços culturais autônomos.
Recentemente, porém, são diversos os projetos voltados à ocupação desses “vazios”. No plano “BH Segue em Frente – 2013-2016”, do segundo mandato do Prefeito Márcio Lacerda, há a proposta de:
Requalificar certos Espaços Públicos Residuais Atípicos ao longo dos eixos viários, dotando-os de nova utilidade, concebida em harmonia com a estrutura ambiental urbana circundante, por meio da instalação de equipamentos de infraestrutura social, de comércio, serviços e lazer.
Foi com base nessa diretriz que a Prefeitura de Belo Horizonte publicou o edital para ceder o uso de baixios de viadutos da cidade à iniciativa privada.
Nos casos analisados neste texto, os baixios aos quais novas utilidades devem ser atribuídas não se tratam de espaços “vazios”. Pelo contrário. O Viaduto Júlio de Mesquita Filho, no bairro do Bixiga, em São Paulo, e o Viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, são espaços de intensa ocupação cultural, vocação que é desconsiderada pelos editais de outorga de uso publicados pelas prefeituras municipais.
Os projetos aqui analisados, assim como na expansão para o oeste americano, encaram esses territórios como inabitados, as pessoas que os habitam são selvagens e suas histórias não merecem ser consideradas. Caberia aos permissionários, os “pioneiros”, garantir o bom – e rentável! – uso dessa nova fronteira urbana, com a expulsão dos antigos habitantes e substituição dos antigos costumes e usos do espaço.
[3] Leia mais sobre o Viaduto Santa Tereza no InDebate
O cheiro do mijo: o que a gestão de um banheiro público tem a ver com o enobrecimento de um território?
http://indebate.indisciplinar.com/2017/05/12/o-cheiro-do-mijo-o-que-a-gestao-de-um-banheiro-publico-tem-a-ver-com-o-enobrecimento-de-um-territorio/
Felipe Soares
Mestre em Direito pela UFMG, pesquisador do Indisciplinar e do Cidade e Alteridade, membro da Real da Rua e conselheiro do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
felipebfs@hotmail.com
Marília Pimenta
graduanda em arquitetura e urbanismo, pesquisadora da frente Zona Cultural no grupo de pesquisa Indisciplinar e conselheira suplente do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
marilie@outlook.com
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