Grafites podem contribuir para processos de gentrificação? – Parte 1

Grafites podem contribuir para processos de gentrificação? – Parte 1

Grafites podem contribuir para processos de gentrificação? – Pt. 1

Com este artigo o Indebate inicia uma série de textos sobre as relações entre gentrificação, arte e classe criativa, destacando-se especialmente o grafite.

No segundo texto, serão apresentados com mais vagar exemplos de outras cidades no mundo: Soho em Nova Iorque nos anos 50 com a Factory do Andy Wahrol,  Marais em Paris, Jordan em Amsterdã, Malasaña em Madrid e Baixo Centro em São Paulo. Em seguida, será apresentado um texto do contexto urbanístico da região central de Belo Horizonte, apresentando projetos em curso e os interesses financeiros em jogo, com o objetivo de discutir se, no caso da capital mineira, o grafite contribui para o processo de gentrificação da região central da cidade.

 

Grafite e gentrificação em Berlin

Em diversos lugares do mundo, como Miami, Los Angeles, Nova York, São Paulo, Buenos Aires, o grafite passou a ser atração turística capaz de despertar o interesse de diversos empreendedores ávidos por explorar os potenciais comerciais desta arte urbana. Em alguns desses casos, o grafite serviu para a valorização de territórios antes abandonados, gerando, em seguida, a substituição de antigos moradores e comerciantes por novos frequentadores com mais dinheiro e interesses por produtos e experiências diferenciados.

Caso marcante é o da cidade Berlim, que, nos últimos anos, tornou-se a meca do grafite na Europa, recebendo milhares de turistas desejosos de apreciarem os enormes murais de grafites espalhados pela cidade. Não só isso. Berlin vem lutando contra a especulação imobiliária e a gentrificação de seus espaços, com normativas municipais pioneiras.

Em 2015, Berlin tornou-se a primeira cidade alemã a controlar o preço dos aluguéis, para que a supervalorização imobiliária dos últimos anos não empurre a população de baixa renda para cada vez mais longe das regiões da cidade com mais infra-estrutura. [1]

Ainda nesse sentido, assim como outras cidades globais, Berlin criou legislação contra aplicativos como o Airbnb, que tem a capacidade de aumentar exponencialmente o preço dos aluguéis em áreas turísticas da cidade[2]. Os aluguéis por curta temporada feitos normalmente por turistas encarecem o preço médio dos aluguéis, pois, para o proprietário, torna-se mais vantajoso o inquilino passageiro que esses aplicativos atraem do que o inquilino que aluga um imóvel para nele residir, por um tempo maior. Desse modo, turistas vão substituindo os moradores locais, que devem procurar locais de moradias em regiões mais afastadas e normalmente menos estruturas da cidade[3].

Dentro desse contexto de especulação imobiliária e gentrificação, em 2014, alguns grafiteiros optaram por pintar de preto dois dos mais famosos murais da cidade. Para justificar o ato, eles publicaram uma carta em grandes jornais europeus com o nome “Gentrificação e “zombificação” em Berlim estão em pleno andamento. Preferimos destruir a nossa arte de rua do que deixá-lo contribuir para esse processo” , oportunidade em que escreveram o seguinte:

Estas peças corajosamente chamaram a atenção mundial, tornando-se o que Siegfried Kracauer, em 1930, descreveu como Raumbilder: imagens espaciais inconscientemente produzidas que são os “sonhos da sociedade”. Sem querer, nós tínhamos criado uma representação visual ideal da Berlin imaginária dos anos 2000 e suas promessas: uma cidade cheia de terrenos baldios oferecendo muito espaço para moradias acessíveis e experimentação criativa entre as ruínas de sua história recente.

Estas características tornaram-se as principais atrações e o famoso mantra do prefeito falecido recentemente, Klaus Wowereit: “pobre, mas sexy” Berlin. Os murais tomaram seu lugar involuntário nesta realidade como um local de peregrinação de tours guiados de arte de rua, como uma oportunidade de foto para inúmeros cartões, capas de livros e capas de discos. A cidade começou a usar a estética de resistência para suas campanhas de marketing.

Mas, nesse momento, o bairro já se encontrava no meio do processo de gentrificação, com fortes protestos contra o aumento dos aluguéis. E é claro que a arte, especialmente a pública, por ser muito visível- basta pensar em Banksy – contribui para este processo.

Enquanto, por um lado, Berlim se orgulha de sua cena de arte, por outro, seu desenvolvimento urbano falhou e a política cultural desperdiçou muito do raro potencial espacial da cidade, e, assim, colocou em risco também a existência de sua principal atração: os artistas. Eles mesmos eram os seus maiores inimigos, contribuindo para o seu próprio deslocamento.

Recentemente, a gentrificação em Berlim não se contenta em destruir espaços criativos. Como a cidade precisa que sua marca artística continue a ser atraente, ela tende a reanimar artificialmente a criatividade que deslocou, produzindo, assim, uma “cidade de mortos-vivos”. Esta “zombificação” está ameaçando transformar Berlim em uma cidade-museu, a “cena de arte” preservada como um parque de diversões para aqueles que podem pagar os aluguéis crescentes.

Ainda assim, por que um artista concorda em destruir o seu próprio trabalho, em vez de endossar tentativas oficiais de preservá-lo como uma obra de arte pública? Desespero? Claro que não. Tampouco por tristeza. Desde o primeiro momento de sua existência, os murais de Blu estavam condenados a desaparecer. É da natureza da arte de rua ocupar o espaço celebrando sua incerteza, ciente de sua temporalidade e existência fugaz.

No entanto, para mim, o branco – bem, neste caso, preto – da limpeza também significa um renascimento: como uma chamada de alerta para a cidade e seus moradores, um lembrete da necessidade de preservar espaços acessíveis e cheios de possibilidades, em vez de produzir arte semelhante a múmias-zumbis.  Ele destaca a função social de intervenções artísticas onde outros não conseguem avançar.

Os murais berlinenses passaram a servir aos interesses do mercado imobiliário e turístico na gentrificação de territórios da cidade, em detrimento dos interesses da população local, inclusive de alguns artistas. Ao perceberem no que os seus trabalhos de arte haviam se transformado, os próprios autores optaram por apagá-los, com o objetivo de, ao menos, chamar a atenção da cidade para a situação.

O texto evidencia também que não foram os grafites que iniciaram o processo de gentrificação nesses territórios. Tal processo já estava em curso no momento em que os murais surgiram. Os autores perceberam, contudo, com o passar do tempo, que os grafites compunham a estratégia de valorização daqueles territórios, em consonância aos interesses dos investidores, em situação semelhante a causada pelos aplicativos como o Airbnb.

Interessante é que, no caso de Berlin, a especulação imobiliária afetou inclusive os artistas locais. Em 2012, um centro cultural alternativo que existia há mais de 22 anos no centro de Berlin foi despejado em razão da especulação imobiliária.

Felipe Bernardo Soares

Felipe Bernardo Soares

Mestre em Direito pela UFMG, pesquisador do Indisciplinar e do Cidade e Alteridade, membro da Real da Rua e conselheiro do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
felipebfs@hotmail.com

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Os incêndios como forma de expulsão criminosa de populações vulneráveis em áreas de interesse financeiro.

Imagem London News Pictures

O Indebate tem a enorme satisfação de publicar uma série de reportagens do professor Edésio Fernandes, produzidas especialmente para o Blog, analisando as políticas habitacionais e o direito à cidade a partir de Londres, onde reside atualmente, e sua relação inquietante com os processos de mercantilização da moradia no Brasil e demais países do Sul-global. Curta nossa página no facebook e acompanhe a série.

No primeiro texto, o professor Edésio Fernandes denuncia as causas do incêndio na torre Grenfell Tower que levou mais de 80 pessoas a morte, em sua maioria negros e imigrantes. Essa tragédia-crime, que gerou enorme comoção na população londrina, evidencia a crise da moradia social na Inglaterra e o tratamento perverso dado aos imigrantes e aos mais pobres. O artigo nos oferece o contexto histórico da política habitacional em Londres a partir da década de 1960 até sua crescente financeirização iniciada no governo Thatcher, que resultou no aumento dos alugueis e a diminuição das oferta de moradia social que agrava as desigualdades socioeconômicas até os dias de hoje.

Edésio Fernandes é jurista e urbanista, professor, pesquisador e consultor internacional especializado nas dimensões jurídicas dos processos de desenvolvimento urbano. É membro da DPU Associates e da Teaching Faculty do Lincoln Institute of Land Policy, professor associado com Tulane University, NYU e outras universidades, além de trabalhar regularmente para UN-Habitat e organizações governamentais e não-governamentais em diversos países. Fundou e coordena o IRGLUS-International Research Group on Law and Urban Space.

Era tarde da noite do dia 14 de junho de 2017 quando um incêndio começou em um dos apartamentos do conjunto habitacional Grenfell Tower, no distrito de Kensington and Chelsea, no oeste de Londres. Aparentemente causado por uma falha elétrica em um freezer doméstico, o incêndio logo se espalhou por toda a torre de 24 andares e 129 apartamentos, causando, de acordo com os primeiros relatórios, a morte de pelo menos 80 pessoas e ferimentos em outras 70. As matérias de TV e reportagens de jornais sobre o incêndio têm mostrado claramente quem eram os residentes: na sua maioria, negros, muçulmanos, estrangeiros, pobres… Em especial, havia há décadas no edifício uma sólida comunidade de imigrantes marroquinos.

De acordo com dados mais recentes da polícia, cerca de 350 pessoas estariam na torre nessa noite trágica e pelo menos 255 teriam escapado. As autoridades dizem que os números são incertos especialmente porque muitos dos residentes estariam em condição de imigração ilegal e os sobreviventes têm receio de se identificarem, embora o governo nacional tenha prometido uma anistia de um ano; muitos dos apartamentos estariam superlotados, diversos teriam sido sublocados e, portanto, não haveria maior controle sobre seus ocupantes; e a violência do incêndio estaria impossibilitando a identificação precisa dos restos humanos encontrados.

A intensidade e a rapidez com que o fogo se propagou chocaram a todos: o que normalmente seria um incêndio controlado, confinado e repercutindo somente em um ou dois apartamentos do edifício, logo consumiu toda a torre de 67 metros, com enormes labaredas se espalhando lateral e verticalmente. Muitos dos residentes estavam dormindo e quando perceberam o incêndio já mais não conseguiram sair; outros morreram porque obedeceram as instruções iniciais dos bombeiros de ficarem em suas casas, o que seria o procedimento normal se o fogo não tivesse sido tão absurdamente voraz.

As ações dos bombeiros, ainda que verdadeiramente heróicas, mostraram as limitações desse serviço público, que tem sido especialmente afetado pelos cortes de despesas resultantes dos anos de política de austeridade: os equipamentos levaram cerca de meia hora para chegar, as escadas somente chegavam ao décimo andar, faltou água, etc.

As investigações logo determinaram que o edifício não obedecia uma série de normas de segurança contra incêndio, sendo que as reportagens também têm mostrado que os moradores há anos têm reclamado do descaso do governo local e da agência que administra o conjunto, especialmente quanto à falta de manutenção adequada da torre. Ficou logo evidente, contudo, que a principal razão para a violência do incêndio foi a utilização de um tipo de material de revestimento no ano passado, como parte de um projeto de “regeneração” desse e outros conjuntos habitacionais, em Londres e em outras cidades inglesas, com o duplo objetivo de garantir maior eficiência ambiental aos edifícios e embelezar as construções. Em boa medida, as torres foram repaginadas, reformadas e embelezadas, para atender à demanda dos moradores mais privilegiados da vizinhança, que há tempos reclamavam do impacto das torres feias e malcuidadas – e sua população pobre – na vida dos bairros e especialmente nos preços dos seus imóveis. Esse foi certamente o caso em Kensington and Chelsea, distrito que concentra os grupos socioecônomicos mais ricos do país – e os imóveis mais caros.

a principal razão para a violência do incêndio foi a utilização de um tipo de material de revestimento no ano passado, como parte de um projeto de “regeneração” desse e outros conjuntos habitacionais

Contudo, sabe-se agora que o material usado para tal revestimento era altamente inflamável, sendo que, dentre os materiais semelhantes considerados, o que foi escolhido era o mais barato e o de pior qualidade. As primeiras análises indicaram também que os construtores e empreiteiros envolvidos nos projetos de regeneração ignoraram uma série de outras medidas de precaução contra incêndio. Desde então, testes de segurança contra incêndio foram realizados nesses conjuntos que tinham recentemente sido modernizados com esse mesmo tipo de revestimento, em Londres e outras cidades inglesas – e todos falharam. Em um distrito do norte de Londres, Camden, cerca de 4.000 pessoas foram evacuadas de seus apartamentos sem aviso no final da tarde para a execução de obras de remoção desse revestimento, tendo sido levadas para precários centros comunitários ou hotéis.

Até o momento, ninguém assumiu responsabilidade pelo incêndio. Os arquitetos das empresas contratadas dizem que sugeriram outro material não inflamável, mas que não são eles que decidem, sendo que há dúvidas quanto à legalidade ou não do material utilizado. Os planejadores urbanos do governo local dizem que não têm nada com isso porque os serviços são terceirizados. Os peritos encarregados de monitorar as obras – e que foram 16 vezes na Grenfell Tower durante a reforma – dizem que não podem garantir que o que eles viram é o que de fato foi colocado pelas construtoras. Os empreiteiros dizem que são forçados a escolher o material mais barato por conta das pressões da agência, resultado de PPP, que cuida dos imóveis do poder público. Arquitetos, engenheiros, peritos, burocratas…ninguém é responsável. Contudo, pelo menos neste primeiro momento, a pressão social tem sido no sentido de que a tragédia seja tratada como um homicídio coletivo culposo.

Fig.1 Natalie Oxford – Wikipedia

A busca pela identificação de causas e restos mortais continua, mas já são muitos os elementos que indicam que, para além de ser um evento trágico e/ou crime isolado, o incêndio da Grenfell Tower em Londres é a expressão muito concreta, e profundamente dolorosa, das mudanças sociopolíticas na Inglaterra nas ultimas três décadas, especialmente no que diz respeito ao tratamento das necessidades e direitos de moradia social dos mais pobres e mais vulneráveis. Tanto abandono, descaso, negligência, imperícia e incompetência se dão e se explicam no contexto mais amplo da questão da moradia no país – e da profunda crise da moradia social que tem afetado esses grupos sociais.

A Grenfell Tower era uma das muitas torres semelhantes, além de outros conjuntos habitacionais de menor porte, construídas no bojo das ações do Estado de Bem-Estar Social constituído no período pós-guerra nessa região de Londres – Notting Hill Gate/Lancaster Road -, que até os anos 1980 passou por um processo de declínio econômico. O mesmo aconteceu em outras partes mais pobres da cidade, especialmente no Sul e no Sudeste. Nesse período, além dos ingleses desempregados/mães solteiras/pessoas vulneráveis/idosos desamparados, o governo também precisava solucionar a questão da moradia dos imigrantes, cujos números estavam crescendo. No primeiro momento, o governo facilitou especialmente a vinda dos negros caribenhos para que pudessem trabalhar principalmente nos serviços públicos de saúde e transporte, e muitos se localizaram nesse bairro – razão da criação em 1966 do hoje internacionalmente famoso Notting Hill Carnival. Muitos dos conjuntos habitacionais na região foram construídos em lotes vazios, ao longo de vias férreas e estradas, ou então em lugares onde as bombas alemãs tinham destruído as casas originais. Para uma cidade que não tinha até recentemente a tradição da construção verticalizada, as torres se destacavam no horizonte – e incomodavam muita gente.

A Grenfell Tower foi projetada no final dos anos 1960 e construída no começo dos anos 1970, inicialmente com 120 apartamentos. Com o tempo, novos grupos de imigrantes chegaram, vindos especialmente das antigas colônias inglesas, e o bairro se tornou cada vez mais multicultural – ao mesmo tempo em que passou por um processo acentuado de gentrificação, atraindo famílias mais ricas e determinando o aumento vertiginoso dos preços de imóveis. Começaram a surgir as tensões entre grupos de moradores, inclusive quanto aos impactos socioambientais, urbanísticos e de vizinhança do Notting Hill Carnival.


Nos anos 1980, como parte do crescente movimento neoliberal que propunha a redução do aparato estatal, a ênfase na propriedade privada e o reconhecimento de direitos individuais, Mrs. Thatcher lançou a política de privatização do estoque habitacional público, permitindo que moradores que pagavam aluguel social pudessem comprar os imóveis em que moravam. Muitos os fizeram, e grande parte desses apartamentos construídos nas décadas anteriores passaram para o mercado imobiliário, sendo que muitos desses apartamentos foram alugados e/ou sublocados. Contudo, parece que a Grenfell Tower não passou por processo significativo de privatização, o que significa que seus moradores ainda são sobretudo “inquilinos sociais” do governo local.

Por um lado, com a crescente financeirização do mercado imobiliário londrino e sua plena integração no mercado global, o número de imóveis vazios em áreas centrais tem crescido rapidamente, muitos deles de propriedade de fundos de investimento e/ou companhias baseadas em paraísos fiscais. A pressão por novas construções tem tido diversas expressões, dentre elas um movimento impressionante de verticalização, com mais de 400 torres sendo construídas em Londres no momento; ampliação da oferta dos imóveis de luxo; redução do tamanho dos apartamentos para a classe média; pressão por desregulação da ordem urbanística e ambiental, inclusive para construção nos cinturões verdes da cidade.

Por outro lado, com o crescimento recorde do mercado de aluguéis, a superlotação de imóveis tem convivido com o aumento das práticas ilegais de conversão em quartos de unidades precárias como garagens, além das novas construções ilegais nos quintais das casas. Ao mesmo tempo, o investimento na construção de novos conjuntos habitacionais caiu drasticamente nesse bairro, em Londres e no resto do país. Por toda parte, aumentaram as desigualdades socioeconomicas, aumentou a demanda por moradia social, aumentou a imigração – e diminuiu a oferta de moradia social, juntamente com uma série de outros serviços públicos e benefícios sociais. Governos locais como os dessa região têm há anos colocado famílias em pensões e/ou pequenos hotéis, na expectativa de que elas se mudem para outras partes da cidade – ou mesmo para outras cidades. O valor do aluguel dos imóveis tem aumentado sistematicamente, e os benefícios estatais têm caído na mesma proporção.

Por toda parte, aumentaram as desigualdades socioeconomicas, aumentou a demanda por moradia social, aumentou a imigração – e diminuiu a oferta de moradia social, juntamente com uma série de outros serviços públicos e benefícios sociais.

Fig.2 Getty images

Para piorar, há alguns anos o governo Conservador lançou a infame “bedroom tax”, a cobrança pelo uso de espaço físico nos apartamentos dos conjuntos habitacionais, sinalizando claramente que, diferentemente do que se pensava, o direito de moradia não era por prazo indeterminado e nem era para ser necessariamente exercido no mesmo local, assim obrigando famílias a saírem de seus apartamentos – com frequência, para outras cidades. Nos últimos anos, muitas das torres do pós-guerra, semiprivatizadas ou totalmente privatizadas, foram demolidas e substituídas por edifícios modernos e caros. Uma pesquisa ainda está para ser feita sobre o que aconteceu com os antigos moradores: para onde foram?

A tragédia-crime da Grenfell Tower doeu fundo nos londrinos e as manifestações de apoio e ajuda certamente foram muito comoventes; dentre outras iniciativas coletivas, a gravação dos artistas famosos em prol dos sobreviventes logo foi para o primeiro lugar da lista das músicas mais vendidas. Nesse clima de enorme emoção, muitos acreditaram que esse episódio tão lamentável seria um marco-divisor para a promoção de mudanças profundas das políticas públicas no país, especialmente as políticas de moradia social. Passada a comoção inicial, contudo, tem ficado evidente que a solidariedade humana tem prazo de validade curto. Poucos dias depois, os moradores do edifício luxuoso onde o governo local tinha comprado alguns apartamentos – que estavam vazios há meses – para neles abrigar dezenas das famílias de sobreviventes começaram a protestar, alegando que os valores de seus imóveis estariam sendo depreciados. O hotel onde algumas famílias tinham sido alojadas as despejou dizendo que não tinha mais vagas.  Cerca de 15 famílias de sobreviventes, apenas, aceitaram as ofertas de relocalização feitas pelo governo local, porque não são na mesma região e não são adequadas, sendo que elas temem que essas soluções temporárias se tornem definitivas – com a tragédia sendo usada para remover de vez os moradores indesejados, já que, a julgar pelo que tem acontecido por toda parte, o novo edifício a ser construído no lugar da torre destruída estará além de suas possibilidades econômicas. Nos últimos dias, um influente politico do Partido Conservador tem tentado usar da tragédia para forçar a mudança da rota do Notting Hill Carnival, assim satisfazendo o desejo antigo da comunidade rica que mora no bairro.

A carcaça da torre queimada continua dominando o horizonte do oeste de Londres e chocando quem a vê, revelando de forma escancarada a natureza cruel da sociedade inglesa contemporânea que tem negligenciado e cada vez mais abandonado seus pobres e vulneráveis, condenados a viverem de maneira cada vez mais precária – e a morrerem nessa horrível fogueira humana.

De fato, têm sido muitas as comparações com as condições encontradas por Engels nos seus estudos durante a Revolução Industrial no país. Se tantas mortes servirão pelo menos para mudar o rumo do tratamento da questão da moradia, só o tempo dirá – mas, infelizmente os sinais não são muito animadores. O risco é de que, uma vez demolida a torre, a memória dos mortos fique ainda mais difusa, e a lembrança da tragédia se torne algo remoto e abstrato para muitos, um sonho ruim que passou.  

Fig.3 European Pressphoto Agency

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Entrevista Julia Valente

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UPPs: Governo Militarizado e a Ideia de Pacificação

Uma entrevista com Julia Valente, mestre em Direito Penal, sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) implantadas no Rio de Janeiro.

Foto Ricardo Moraes

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) implantadas no Rio de Janeiro, em 2008, são comumente vistas apenas pelo viés da segurança pública, do combate ao tráfico de drogas e ao “crime organizado”. Por outro lado, há inúmeras denúncias contra as muitas ações arbitrárias e ilegais cometidas por agentes estatais contra os moradores das favelas em que esse programa foi instalado. Denuncia-se ainda a falta de implementação de outros programas sociais nesses territórios, que acabam submetidos tão somente à lógica da segurança pública. Ampliando esse debate, a advogada e mestre em Direito Penal pela UERJ, Júlia Valente, nos mostra como o programa das UPPs está alinhado aos interesses do mercado e às tendências globais do urbanismo neoliberal. Júlia lançou, em 2016, pela editora Revan, o livro “UPPs: Governo Militarizado e a Ideia de Pacificação”.

Em seu trabalho, fica clara a relação entre a implementação do programa das UPPs e os megaeventos (Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e Olímpiadas do Rio de 2016). Qual a relação entre os territórios em que foram instaladas as UPPs e os megaeventos?

As UPPs, como os megaeventos, fazem parte de um mesmo projeto militarista-empresarial de cidade em curso no Rio de Janeiro. A ocupação militarizada dos territórios de pobreza serviam à estratégia de segurança desses eventos, então os territórios em que foram instaladas eram estrategicamente localizados: comunidades no entorno dos locais em que esses eventos iriam acontecer, na Zona Sul carioca e nos corredores de trânsito do turismo. Era necessário manter a aparência de controle e segurança nos locais que estavam à vista do público.

Fig1 Capa do livro “UPPs: Governo Militarizado e a Ideia de Pacificação”, de Julia Valente

Terminados os megaeventos, com a queda dos investimentos privados na cidade do Rio de Janeiro e a situação calamitosa das finanças do Estado do Rio de Janeiro, qual sua expectativa para as UPPs?

Para os críticos do projeto, a expectativa desde o início era que as UPPs não seriam viáveis a longo prazo, o projeto era insustentável por demandar vultuosos e crescentes investimentos e os ambiciosos planos de expansão simplesmente irreais. A crise afeta o Estado do Rio de Janeiro de forma estrutural e já vemos as consequências no campo da segurança pública. O Estado procura defender as UPPs a todo custo, afirma que não vai retroceder, mas manter o projeto “com ajustes”, o que significa realocar policiais, cortar gastos e colocar os policiais (com salários atrasados) em situações cada vez mais precárias e vulneráveis. Ele está tentando sustentar a imagem e o discurso criado em torno do projeto, mas a falência já foi decretada de antemão, pois as UPPs não representaram uma transformação profunda com a forma de lidar com as favelas. Com o incremento da violência, o Estado vai lidar da forma com que sempre lidou: com a repressão militarizada. Hoje temos operações mais ostensivas, com maior aparato bélico, que remete às incursões anteriores às ocupações. A lógica da guerra nunca foi de fato abandonada. Se em algum momento a violência letal diminuiu, hoje temos mortes dia sim dia não em conflitos armados em favelas com UPPs, de acordo com os dados coletados pelo aplicativo Fogo Cruzado da Anistia Internacional.

Fig1 Vista da favela e da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no Complexo do Alemão no Rio – Foto: Daniel Marenco

Em quais experiências anteriores o programa das UPPs foi inspirado?

As UPPs se inspiram diretamente no modelo dos Proyectos Urbanos Integrales implantados na cidade de Medellín, na Colômbia. No início de 2007, o então governador Sérgio Cabral e seu Secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame visitaram Medellín e de lá voltaram como o modelo de “retomada de território” com o apoio das forças militares seguida de ocupação permanente acompanhada de iniciativas sociais. Mesmo os teleféricos nos morros do Rio foram inspirados no colombiano. Entretanto, embora Medellín seja uma cidade comparável ao Rio de Janeiro, a situação do tráfico de drogas lá é ainda mais complexa, pois envolve também guerrilhas. Além disso, quando as UPPs foram implementadas aqui, o modelo de lá já estava em crise, com um novo aumento das taxas de criminalidade, particularmente do número de homicídios. O que houve na Colômbia foi uma reconfiguração dos poderes dos diferentes atores: as guerrilhas foram contidas, mas os grupos paramilitares se fortaleceram. No Rio de Janeiro também houve um rearranjo de poderes, mas não sabemos ainda avaliar a extensão de suas consequências.

Dentro de um contexto de “reestruturação urbana”, em que o capital imobiliário e financeiro buscam cada vez mais novos territórios para se reproduzir nas cidades, qual é o papel das UPPs ?

David Harvey explica que o capital passa por crises cíclicas de superacumulação e então precisa encontrar formas de se expandir para que o excedente seja absorvido e não se desvalorize. Umas das formas de fazê-lo é buscar novos territórios, novos mercados consumidores. Na política da “pacificação” o Estado usa seu poder militar para abrir caminho para a exteriorização no território das favelas da atividade econômica baseada no mercado, permitindo a continuidade da acumulação de capital no contexto de um projeto empresarialista de cidade. Nesse sentido, as UPPs buscam “incluir” a população das favelas através de uma cidadania mediada pelo consumo. Querem que os pobres tenham poder de consumo e paguem pelos serviços fornecidos pelas empresas e pelo Estado. Além disso, há uma valorização do território ligada à especulação imobiliária o que leva à “remoção branca” de muitas famílias. Qual o impacto das UPPs na vida cotidiana das pessoas que habitam os territórios atingidos? Nesses territórios o traficante fortemente armado dá lugar ao policial fortemente armado. O policiamento ostensivo se torna uma constante, não sendo realizado por uma “polícia de proximidade”, mais cidadã, como se prometia. A presença constante da polícia, que não é adequadamente preparada, leva a uma série de violações como as frequentes abordagens. A vida das pessoas passa a ser mais regulamentada e direitos são restringidos. Além disso, o custo de vida sobe com os custos dos serviços regularizados e a especulação imobiliária e as alternativas informais desenvolvidas pelos moradores à falta de serviços são desarticuladas.

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Ação higienista da Prefeitura de Belo Horizonte, que contribui para financeirização da cidade, deixa trabalhadores revoltados.

fig.1 Manifestação ocupou uma das pistas da avenida Afonso Pena, em direção à Prefeitura (Yuran Khan/Bhaz)

Nos últimos dias, Belo Horizonte virou um palco de grandes embates entre a Prefeitura Municipal e as diversas categorias das trabalhadoras e dos trabalhadores de rua. Camelôs, caixeiros, toreros (vendedores “na tora”), vendedores de frutas e outros ambulantes tomaram as ruas quando foram impedidos de trabalhar.

As manifestações, que se iniciaram no dia 3 de julho, foram duramente reprimidas pela Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), que armou, junto à Prefeitura, uma operação envolvendo grande efetivo do choque e até caveirão, ferindo centenas de pessoas e detendo mais de vinte nos primeiros dois dias.

A operação armada produziu um cenário de guerra e de fome, uma vez que a categoria depende do trabalho diário para seu sustento. Neste país de golpes e legalidades flexíveis, a operação é justificada por uma legislação municipal chamada Código de Posturas, que, na prática, viola o direito constitucional ao trabalho de mais de 2.000 famílias que hoje trabalham no centro da cidade. Mas será a legalidade do código o real fundamento dessa ação?

A resposta mais evidente viria da pressão de lojistas e associações de moradores que não querem conviver com o comércio informal. Contudo, essa resposta não resume o problema, pois, para lidar com a questão do trabalho informal, poderiam ser pensadas uma diversidade de alternativas: corredores populares, feiras livres, licenciamento de categorias, como já acontece com os vendedores de frutas etc. No entanto, a alternativa mais concreta e imediata que a prefeitura oferece é o modelo já experimentado e fracassado dos shoppings populares.

fig.2 Camelos em macha dia 04 de Julho. Fonte: Cidade que queremos BH

Convém lembrar que na gestão de Fernando Pimentel como Prefeito de Belo Horizonte (PBH – 2001 a 2008) ocorreu, no centro da cidade, um processo de higienização urbana por via da realocação de camelôs em shoppings populares e do combate à circulação de perueiros, vistos como responsáveis por um processo de deterioração social e como ameaça ao bem estar da coletividade[1].

Tal ação foi seguida da implantação de um Projeto de Requalificação da Área Central de BH chamado “Centro Vivo”, que teve forte adesão dos comerciantes formais e de suas entidades representativas. A PBH, a PMMG e o Clube dos Dirigentes Lojistas (CDL) implantaram, nesse contexto, o “Olho Vivo”, que tinha o objetivo expresso de reduzir a dita criminalidade através do monitoramento do centro por câmeras de vídeo. Maria Fernandes Caldas, hoje Secretária de Serviços Urbanos da PBH e responsável pela nova ação higienista do hipercentro, chegou a ser coordenadora desse Projeto de Requalificação da Área Central nos anos 2000[2].

No dia 19 de Junho de 2017, o prefeito Alexandre Kalil, ao lado da referida Secretária, assinou o Decreto nº 16.634, que institui o Plano de Ação para o Hipercentro de Belo Horizonte, tendo por objetivo a atuação em três frentes. Veja-se como se manifestou o Prefeito acerca do Plano:

“Primeiro, vamos agir sobre a questão dos ambulantes no Hipercentro de Belo Horizonte. Segundo, sobre o gravíssimo problema do crack que nós temos que combater com humanidade também. O terceiro não será em um governo que vamos resolver. Demora tempo, demanda estudo, mas também terá início em nosso governo, que é a situação dos moradores de rua”, explicou Kalil[3].

Importante registrar que no dia 28 de junho, ocorreu um despejo administrativo realizado de forma inconstitucional, sem ordem judicial e sem a possibilidade de exercício do contraditório e de ampla defesa. Nessa ação, mais de 30 famílias em situação de rua, que viviam há mais de duas décadas no Viaduto da Silva Lobo, foram alvo de ação da Guarda Municipal e Fiscalização da Prefeitura de Belo Horizonte. (Ver nota aqui).

A ação de guerra realizada no início desta semana no Centro da Cidade para eliminar o trabalho ambulante da região deixou grande parte da população revoltada, como se vê pela repercussão do contundente testemunho e desabafo de Vânia Lúcia, mulher negra e idosa, que trabalha na rua há 10 anos para manter seu sustento e sua dignidade.

O referido Decreto tem como diretriz geral, prevista em seu artigo 7º, a ampliação das condições de segurança e a manutenção da ordem pública e da segurança urbana e patrimonial, conformando a militarização da cidade e da questão social. Além disso, excepciona, em seu artigo 9º, os procedimentos previstos no Decreto nº 16.505, de 15 de dezembro de 2016, que rege as Operações Urbanas Simplificadas no Município.

Busca-se, assim, criar um rito específico para um arranjo público-privado (PPP’s) de gestão de shoppings populares, pelo qual os donos desses estabelecimentos poderão receber, em troca da cessão indireta de espaço aos camelôs, o pagamento por via de potencial construtivo, que pode se converter em ampliação de sua estrutura física ou que pode ser vendido para construtoras, assentando um processo de financeirização da cidade.

Em um momento de aumento das relações de desemprego, que chegou a 14 milhões de pessoas no país, e de precarização do trabalho com um desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários, faz-se necessária uma saída que respeite os direitos desses trabalhadores.

O Código de Posturas do Município não pode se sobrepor ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, à efetivação de direitos sociais e ao direito à cidade desses sujeitos. E tampouco essas regras podem se sobrepor às Convenções Internacionais de Direitos Humanos, que contemplam a atividade laboral humana como direito fundamental, devendo essa ser protegida dos abusos e exercida com dignidade.

Ao invés de PPP’s, por que não Parcerias Públicas Comunitárias como método de gestão coletiva e democrática da cidade e de exercício do direito ao trabalho e à cidade ? As periferias dessa cidade têm o direito de ocupar o Centro e as ruas do Centro como expressão do direito à cidade! O direito à cidade, aqui, deve ser visto como o direito de redefinir usos e funções dos espaços públicos a partir da efetivação do direito ao trabalho digno, do direito de se apropriar e fruir das ruas, do direito a uma cidade desmilitarizada e desfinanceirizada – Dignidade Ambulante!  Dignidade na Rua! Desmilitarização a Cidade! Planejamento Urbano Popular!

Por uma cidade onde caibam muitxs cidades!
Mátria-Pátria Livre – Venceremos!

Isabella Gonçalves

Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), assessora em co-vereança do mandato das “Muitas: pela cidade que Queremos”, em Belo Horizonte e militante das Brigadas Populares.

Luiz Fernando Vasconcelos

É mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), advogado popular e militante das Brigadas Populares.

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Com cartão, sem cartão: as fragmentações como estratégia de controle do território pela Samarco (Vale-BHP)

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O crime da Samarco (Vale-BHP Billiton), a fragmentação geográfica e as fronteiras socioespaciais.

Escamoteado pelo golpe de Estado que segue em curso no país, o crime da Samarco e suas controladoras Vale e BHP Billiton, na bacia do Rio Doce, ficou sedimentado no fundo da gaveta das preocupações nacionais e das pautas jornalísticas. E não é só pela instabilidade política: a questão ficou obscurecida por uma seletividade relativa à importância dada aos atingidos e por diversas estratégias empresariais de encobrimento dos rastros do crime.

A amplitude do desastre pode ser compreendida pela dimensão espacial e temporal com que se alastra a lama tóxica, seguida de seus incontáveis danos sociais, ambientais, econômicos e afetivos. A extensão espacial dos impactos percorre a bacia do Rio Doce, desde a barragem de Fundão, em Mariana-MG, até a foz na vila Regência Augusta, em Linhares-ES, e se estende no oceano. Em nota técnica[1], o ICMBio e Projeto Tamar demonstram que a alta concentração da pluma de rejeitos no oceano está localizada entre São Mateus, no norte do ES, e o litoral da Serra, município da Grande Vitória. Ainda mais alarmante, o estudo do Instituto de Biofísica da UFRJ[2] comprova que até mesmo o lençol freático em alguns pontos nas imediações da bacia está contaminado. Tão intangível quanto é a extensão temporal. Afinal, o rompimento da barragem em si é apenas o início de um processo longínquo de difusão e aprofundamento de uma diversidade de impactos.

Se entendemos, como propõe Ana Fani Carlos, que espaço é “condição, meio e produto da realização da sociedade humana em toda a sua multiplicidade”, igualmente vasto é o rol de pessoas atingidas e a multiplicidade de afetações, que não se limitam ao itinerário da lama, nem mesmo a esta geração.

O rompimento da barragem da Samarco (Vale-BHP) se desdobra em múltiplos distanciamentos nas relações entre as pessoas, os modos de vida e o espaço.

Uma leitura atenta às relações socioespaciais nos direciona para o entendimento de que o rompimento da barragem da Samarco (Vale-BHP) se desdobra em múltiplos distanciamentos nas relações entre as pessoas, os modos de vida e o espaço. Tais fronteiras são frequentemente acirradas pelas práticas e políticas institucionais centradas na fragmentação da resistência e na expansão do domínio dos interesses empresariais sobre o território.

A cisão imediata é a desterritorialização, ou seja, o rearranjo das relações de poder sobre o território, assim como o enfraquecimento dos enlaces locais e referências simbólicas. Em sua forma mais clara, compreende o deslocamento de moradores de comunidades soterradas pela lama, localidades que acumulam características de uma economia agrária, para casas alugadas na área central de Mariana-MG. Por detrás dessa saída, recostam-se os interesses empresariais na dissolução das relações socioespaciais, exacerbados na dispersa distribuição espacial [mapa 1] das casas alugadas em Mariana, o que fragiliza a sustentação dos laços que uniam os moradores em comunidades.

[1] Nota técnica nº 03/2017 Vitoria- ES/TAMAR/DIBIO/ICMBio – Identificação da área atingida pela pluma de rejeitos da Samarco e das principais comunidades pesqueiras existentes na mesma.
[2] http://www.greenpeace.org.br/hubfs/Campanhas/Agua_Para_Quem/documentos/greenpeace_estudo_agua_riodoce%20.pdf

A recostura dessas fragmentações impostas se dá muitas vezes através de festejos religiosos no território atingido, o que pressupõe não só reencontrar os antigos vizinhos, como também o processo de revisitar o território devastado. Essa tentativa de retomada de controle sobre o território traz à tona a importância do espaço para a manutenção da comunidade.

Na contramão, as investidas empresariais tentam cercear esses enlaces seguindo alguns passos: primeiro, impondo o controle da circulação através de cercamentos da área soterrada e de restrições de visitas ao território; segundo, consentindo o saque às casas invadidas pela lama e a desconstrução de referenciais; e, por fim, o xeque-mate, o apagamento dos rastros do crime e da memória local. Esse apagamento se dá de maneira gradual, com a demolição de casas e a elaboração de uma “maquiagem verde”, chegando ao absurdo de se pintar de verde gramas secas no centro de Barra Longa-MG, e de modo evidente com a inundação de parte do povoado do Bento Rodrigues, devido à conclusão das obras do Dique s4, sob o pretexto de conter o vazamento de rejeitos.

[mapa 1] Localização das casas alugadas na cidade de Mariana. fonte: Fonte: Jornal “A Sirene – Para não esquecer”, Edição número zero, 2015.
[fig 1] Queimação de judas, representado pela empresa samarco, na celebração da Semana Santa em Bento Rodrigues – foto: Daniela Félix, Jornal Sirene

De certo, a construção do Dique S4 mostra a dupla estratégia de controle territorial da empresa: a dominação da propriedade privada e a apropriação da sua dimensão subjetiva. De um lado, recorre-se ao domínio sobre a propriedade, de outro, há a tentativa de impedir a reaproximação afetiva com o território. Para isso, as empresas lançam mão de artifícios jurídicos do Estado, sob o ímpeto neoliberalizante escancarado no Decreto de Numeração Especial 500[3], assinado pelo governador de Minas Gerais, que concede às empresas o direito de uso, por 36 meses, das terras a serem alagadas. Na prática, significou uma proposta de indenização aos donos das terras pelo uso temporário que a empresa requisita, podendo o prazo ser estendido sem mais indenizações. Ressalta-se que a área do Dique S4 já era alvo do interesse das empresas desde 2009, confrontado na época pela resistência dos moradores e embasada pelo valor histórico do povoado e pelos altos impactos ambientais que geraria.

Uma vez tomado pela lama tóxica, o rio, elemento central das práticas cotidianas de diversas comunidades ao longo de toda a bacia do Rio Doce, muitas vezes se transforma em fronteira geográfica.

Outro sinal de desterritorialização é a impossibilidade de se adentrar o rio. Uma vez tomado pela lama tóxica, o rio, elemento central das práticas cotidianas de diversas comunidades ao longo de toda a bacia do Rio Doce, muitas vezes se transforma em fronteira geográfica. O ato de atravessar de uma margem a outra, como era realizado cotidianamente entre Cachoeira Escura, distrito de Belo Oriente-MG e São Lourenço, no município do Bugre-MG, passou a realizar-se por um deslocamento de mais de uma hora por terra. Do mesmo modo, a contaminação impede travessias cotidianas intrínsecas às atividades econômicas, práticas espirituais, lazer e a rotina de modo geral.

O aprofundamento dessas cisões, e, por conseguinte, do desastre-crime que segue em curso, se dá através das investidas das empresas e da Fundação Renova[4] de domínio sobre o território por meio de estratégias para criar uma divisão entre os atingidos, sejam elas a fim de cristalizar as divergências socioespaciais, como também de segmentar e criminalizar as resistências. É nessa lógica que se fortalecem as separações entre os direitos de reassentamento dos moradores de Paracatu de Baixo e Paracatu de Cima, em Mariana-MG, localidades que, antes do desastre-crime, compartilhavam os mesmos equipamentos públicos e espaços de lazer, palcos das relações de vizinhança.

[4] A Fundação Renova é a entidade designada para cuidar dos processos de reparação e compensação dos impactos do desastre. Testa de ferro da Samarco-Vale-Bhp Billiton, a Fundação é mantida pelas empresas culpadas pelo desastre conforme estabelecido no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta, fruto do acordo extrajudicial entre União, Governo dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e Empresas assinado em março/2016.  Visto isso, mantenho a denominação “empresas” mesmo que em referência às ações da Fundação Renova.

As empresas conduzem as negociações até a exaustão, a fim de exacerbar os dissensos

Seguindo a mesma lógica, estrategicamente, as empresas conduzem as negociações até a exaustão, a fim de exacerbar os dissensos, como muito bem exemplificado no processo de definição do terreno do reassentamento em Gesteira, Barra Longa-MG. O impasse foi produzido pelas empresas ao inviabilizarem a compra do terreno adequado às necessidades de todos os moradores, ofertando apenas saídas incompatíveis. O desgaste do processo acabou gerando cisões internas entre aqueles que, angustiados por soluções definitivas, cogitam receber indenização em dinheiro, e aqueles que não abrem mão do reassentamento[5]. Por conveniência das empresas, não foi cogitada a possibilidade de recorrer ao poder estatal para desapropriação, que nem seria necessária, visto que há pouco tempo o proprietário do terreno anunciou a disponibilidade de venda.

A mais emblemática dessas práticas é a concessão do auxílio financeiro emergencial para os atingidos que perderam a renda diante do desastre. Os atingidos recebem um cartão cuja distribuição é controlada pelas empresas, pautada em critérios não esclarecidos e via de regra concedidos aos homens das famílias, desconsiderando as mulheres que tinham renda própria. Além da adoção de critérios inconsistentes e machistas, o cartão virou meio de fragmentação entre grupos de atingidos – ribeirinhos, pescadores e comerciantes – e intrafamiliares, que agora se dividem entre os Com Cartão e os Sem Cartão. Ademais, a ameaça de retirada do cartão é feita constantemente aos atingidos, que se aliam a movimentos de resistência. Numa perspectiva mais alarmante, o cartão se tornou estratégia de acesso das empresas a diversas localidades onde não exerciam influência.

Se antes as empresas exerciam poder sobre as cidades da bacia onde se localizam as bases operacionais do seu ciclo produtivo minerário (mina e porto-indústria), hoje seu domínio se expandiu para a bacia inteira, já que boa parte dos atingidos que perderam suas rendas se encontram dependentes do cartão ofertado pela empresa. Da mesma forma, o deslocamento dos atingidos das áreas invadidas pela lama para região central de Mariana implica submetê-los a uma área com estreitos vínculos com essas empresas, sujeitando-os a estigmatização. Tal prática possibilita a expansão do domínio da Samarco (Vale-BHP) sobre todo o território atingido e também o autocontrole da população, a partir da disseminação do discurso de culpabilização dos atingidos pelo desemprego, isto é, o êxito da biopolítica.

[fig.2] Terras alagadas em Bento Rodrigues – Foto: Rodolfo Meirel
[5] É nesse contexto de vulnerabilidade social que integrantes do Grupo de Pesquisa e Estudos Socioambientais (GEPSA-UFOP), viram como necessidade esclarecer questões sobre a assessoria técnica reunidas em cartilha. Cartilha criada pelo GEPSA, em parceria com o Coletivo Margarida Alves e o Movimento dos Atingidos por Barragens. Disponível em: https://issuu.com/gepsaufop/docs/final_cartilha_assessoria_para_o_is
[fig 3] Procissão segue pelas ruínas de Bento Rodrigues para celebrar o dia de Nossa Senhora das Mercês – Fotos: Alexandre Guzanshe

Em resposta às práticas empresariais de segmentação das comunidades, os atingidos têm se mobilizado para estruturar as negociações coletivas, por meio de comissões representativas escolhidas pelas comunidades atingidas e pela reivindicação de assessoria técnica. Desde o ano passado, membros das comissões acompanham as negociações em Mariana (MG) com apoio da Cáritas Brasileira, assessoria escolhida. Nesse modelo, evita-se o esvaziamento das negociações e impede-se a canalização das empresas para as conversas individuais, nas quais o domínio corporativo tenderia a pesar sobre os encaminhamentos. Seguindo os êxitos precedentes, em maio, Barra Longa-MG conquistou a contratação da assessoria técnica e, desde fevereiro deste ano, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) vem mobilizando a formação de comissões de atingidos estaduais e municipais no Espírito Santo, numa ação conjunta[6] com Ministério Público Estadual e as Defensorias Públicas da União e do Espírito Santo.

Parece cabível fazer dois apontamentos preliminares: primeiro que tais práticas desterritorializantes, no entendimento de Harvey[7], pressupõem a compressão de tempo-espaço, ou seja, a quebra de fronteiras locacionais para a contínua acumulação do capital. Paradoxalmente, a desterritorialização também se alimenta da criação de novas cisões que dissolvem as relações socioespaciais e de controle preexistentes. Por fim, um caminho possível para recostura desse território dilacerado é o entendimento de território atingido pelas práticas do Estado-Capital, sobretudo das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton. Contudo, essa tarefa não é tão simples, tendo em vista que a extensão espaço-temporal das afetações ainda é intangível, dificultando uma delimitação do que é o território atingido.

[6] A formação de comissões de atingidos está atrelada também ao andamento das negociações do Termo Aditivo ao Termo de Ajustamento Preliminar, que visa o diagnóstico socioeconômico para embasar a negociação do Termo Ajustamento de Conduta Final (TACF), a ser assinado em julho.
[7] HARVEY, D. 1992. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola.

Paula Guimarães

mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Indisciplinar, com parceria do Movimento dos atingidos por Barragens, e integrante do grupo Mobiliza Rio Doce, vinculado ao Programa Participa UFMG Rio Doce-Mariana.
paulaguimaraes1701@gmail.com

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Os viadutos como a nova fronteira de expansão do capital

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Os projetos de outorga de uso de viadutos a agentes privados em São Paulo e Belo Horizonte apresentam pontos comuns que exemplificam as estratégias utilizadas pelo capital para tomada desses “vazios urbanos”

Mirante 9 de Julho fica embaixo do Viaduto Professor Bernardino Tranchesi e sobre o túnel da avenida Nove de Julho. Foto: AG

Uma das metáforas utilizadas por Neil Smith para exemplificar o processo de gentrificação[1] nas cidades do século XX foi a ocupação do Oeste estadunidense durante os séculos XVIII e XIX. Durante a expansão da fronteira estadunidense para além da costa Leste, o território desconhecido pelos pioneiros e seus habitantes eram descritos como selvagens, perigosos e primitivos. Os pioneiros tinham como missão levar a civilização ao novo território e, claro, garantir mais espaço e mão-de-obra para a expansão do capital.

Smith compara esse processo com a gentrificação dos centros urbanos nas cidades norte-americanas do século XX. Em vez de caubóis e indígenas, temos os pioneiros e proprietários urbanos que irão desbravar as novas fronteiras urbanas, habitadas por pessoas que são consideradas “como um elemento natural do meio físico a que pertencem” e não como agentes sociais e históricos.

A jornalista Sabrina Duran, em seu blog “Arquitetura da Gentrificação: cidade e direitos humanos”, parte dos conceitos apresentados por Neil Smith para analisar algumas medidas da política urbana desenvolvida em São Paulo nos últimos anos em relação aos baixios de viadutos. Segundo ela, “iniciativas recentes da prefeitura dão indícios de que esses espaços, antes locais de ocultamento da população em situação de rua, passaram a ser vistos como nova frente de expansão do capital imobiliário, que precisa de espaços higienizados socialmente e atraentes do ponto de vista comercial e turístico, que circundem e valorizem os terrenos onde construirão suas torres comerciais e residenciais.

Tal conclusão surgiu ao longo de uma série de reportagens desenvolvidas por Sabrina sobre outorgas de uso de baixios de viadutos à iniciativa privada na cidade de São Paulo.

[1] Saiba mais sobre gentrificação com nossa cartilha
http://migre.me/wuN7Q
[Img.1] Mirante abriga festas promovidas por empresas como a transnacional Ray Ban. Foto: I hate flash

No mesmo sentido, o observaSP[2] realizou alguns estudos e artigos. A partir da comparação da experiência de São Paulo, retratada nessas duas fontes, e a de Belo Horizonte, formalizada pelo Decreto 16.537/16, que concede permissão de direito real de uso de cinco viadutos da cidade a cinco entidades privadas, sistematizamos alguns pontos comuns relativos às cessões de uso de baixios de viadutos a agentes privados:

1.Chamamentos Públicos amplos e genéricos:

Sabrina aponta que o chamamento público para as empresas interessadas em reformar o Viaduto Professor Bernardino Tranchesi menciona apenas “interessados da iniciativa privada”, sem explicitar a possibilidade de formação de consórcios de empresas. Em Belo Horizonte, o aviso de consulta pública 01/2015 incorre no mesmo vício ao se referir a “eventuais interessados da iniciativa privada em realizar parcerias com o Município para a utilização da área dos baixios dos viadutos”. A amplitude do chamamento dificulta a concorrência e a garantia de isonomia.

Além disso, tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, pouco se especifica sobre os parâmetros e finalidades dos editais de ocupação. Não há descrição mínima das contrapartidas necessárias e nem dos parâmetros de conservação e manutenção a serem mantidos pelos particulares. Assim, abre-se possibilidade para o fechamento e a privatização desses espaços públicos sem qualquer transparência e sem previsão de benefícios ao restante da sociedade.

2. Revitalização x Exploração comercial: qual o real objetivo das cessões de uso dos baixios?

Ao analisar o edital de Concorrência Pública para concessão de uso oneroso e requalificação urbanística dos baixos do Viaduto Júlio de Mesquita Filho e do seu entorno, no bairro do Bixiga, o observaSP apontou o seguinte:

Embora a premissa para o edital seja a manutenção e qualificação do baixo como espaço público, e ainda que o texto mencione que o vencedor deverá criar no terreno usos socioculturais que convidem os cidadãos à permanência, são enumeradas apenas genericamente referências e diretrizes para o projeto de ocupação, que nem mesmo definem usos ou parâmetros obrigatórios para a transformação urbanística do local. Pior, o edital determina que a proposta vencedora será necessariamente a de maior valor, o que significa que na prática a empresa ou consórcio vencedor poderá fazer o que bem entender do terreno, desde que pague bem e siga algumas poucas determinações.
(…)
Como vem ocorrendo nas parcerias público-privadas e concessões que abundam na atual gestão municipal, são os interesses privados que acabam por pautar a transformação urbana, seguindo sempre a lógica da rentabilidade.

A falta de clareza acerca dos reais objetivos desse tipo de edital está presente também no caso estudado pela jornalista Sabrina Duran e no de Belo Horizonte.

A finalidade do edital publicado pela Prefeitura de São Paulo para uso do Viaduto Professor Bernardino Tranchesi é efetuar Termo de Cooperação com a apresentação de propostas de parceria, execução e implantação de projetos de revitalização urbanística, ambiental, paisagística e desenvolvimento sócio-educacional e/ou sócio-cultural, compreendendo a conservação, manutenção  e limpeza do local (…)”

Em Belo Horizonte, o edital prescreve o seguinte:

A utilização mencionada poderá se dar com fins econômicos ou não, por meio de projetos que levem em conta a revitalização urbanística e paisagística do local e o desenvolvimentos de atividades sociais ou comerciais, e compreendam a conservação, a manutenção e limpeza das áreas (…)” 

Em todos esses casos, o objetivo é o de transferir ao agente privado a responsabilidade municipal de realizar medidas de revitalização e conservação do espaço. Como contrapartida, prevê-se a possibilidade de exploração comercial.  

Percebe-se que, na verdade, sob o discurso da necessidade de revitalização do espaço, há transformação de um espaço público em área comercial a ser explorada por um agente privado. O território deixa de atender ao interesse público para se transformar em área privatizada, na qual um ente privado ficará responsável pela prestação de serviços eminentemente públicos.No caso do Viaduto Santa Tereza em Belo Horizonte, a Permissionária irá assumir a manutenção de um espaço que foi recentemente reformado, desonerando o agente privado.

3. Cessão para fins comerciais sem previsão de receita à municipalidade e sem parâmetros para a exploração:

Outra questão levantada por Sabrina Duran no caso de São Paulo e que encontra ressonância em terras mineiras é o fato de que o poder público concede o uso dos baixios dos viadutos ao particular sem auferir nenhuma receita para tanto e sem realizar estudo prévio para calcular a relação entre os possíveis ganhos pelo particular e os valores a serem investidos na revitalização do espaço.

Em ambos os casos, a cessão dos espaços públicos se dá a título gratuito, isto é, sem que o particular tenha que pagar qualquer quantia ao Município. No caso de Belo Horizonte, a situação talvez seja ainda mais grave, porque, no caso do Viaduto Santa Tereza, a Permissionária poderá ainda instalar sua sede administrativa, sem a necessidade de pagar aluguel.

Sabrina Duran chama atenção para a necessidade de um “estudo de mercado para poder dizer qual é o potencial disso para ter um parâmetro de valor da contrapartida. Porque se o negócio tem o potencial de render R$ 50 milhões ao longo de dez anos e você faz uma concessão de 6 milhões, tem um vazio muito grande aí. Teria que ter um estudo para servir de parâmetro, senão o critério de decisão de contrapartida fica completamente subjetivo, o que não pode ter, por definição, em licitações e análogos.

Em Belo Horizonte, ao contrário do que ocorre em São Paulo, o termo de parceria não estabelece um valor a ser investido pelo particular e impede a existência de exploração comercial lucrativa – toda a renda auferida deve ser reinvestida no “projeto social” proposto.

O ponto comum é a absoluta ausência de parâmetros estabelecidos pelo poder público. Não é apresentado nenhum estudo prévio para aferir o potencial da exploração comercial do espaço para que se saiba, a priori, o valor que será  investido pelo particular em sua revitalização. Em outras palavras, o poder público não se preocupa se a cessão de uso será economicamente benéfica à sociedade. No caso do Viaduto Santa Tereza, é bastante pertinente a indagação lançada por Sabrina Duran: “Ao falar sobre a exploração comercial de um espaço público localizado em uma das regiões mais valorizadas da cidade, é razoável argumentar que um valor de contrapartida é suficiente apenas porque ele foi o maior apresentado em comparação com outros valores aleatórios e sem qualquer parâmetro mínimo?”

4. Longos períodos dos termos de parceria

Assim como no caso do Viaduto do Bixiga em SP, a concessão do baixio do Viaduto Santa Tereza é por um período de dez anos, renováveis até o limite de 30 anos.Períodos tão longos de concessão acabam por reforçar o caráter privatizante desse tipo de medida. O poder público abre mão de um espaço público por um lapso temporal que não costuma ser considerado nem em seu planejamento estratégico. Em 2016, por exemplo, a Prefeitura de Belo Horizonte lançou um plano de metas e resultados para a Belo Horizonte de 2030. A cessão do Viaduto Santa Tereza pode durar até 2046!

Durante tanto tempo gerindo o espaço, o agente privado acaba por se tornar seu proprietário de fato, inclusive por ser responsável por ordenar seu uso e prestar serviços de limpeza e manutenção.

5. Ausência de participação popular

Apesar da publicidade dos chamamentos públicos, tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, não foi realizada nenhuma audiência pública com os grupos e pessoas afetados antes da cessão de uso dos baixios dos viadutos aos agentes privados. Nesse ponto, cabe reproduzir questionamento de Sabrina Duran: Como saber que o projeto atende ao interesse público se a própria Subprefeitura Sé admitiu que não realizou debates com a população local para saber que tipo de intervenção era considerada prioritária para a região?”

6. Ausência de consulta aos órgãos do patrimônio e conselhos:

No caso da cessão do Viaduto no Bixiga, o observaSP apontou a total negligência com o fato de o Bixiga ser um bairro histórico, com inúmeros imóveis tombados. O edital não teria passado pelos órgãos de proteção do patrimônio histórico da cidade, apesar das claras repercussões na dinâmica do bairro que o edital ocasionaria.

Em Belo Horizonte, a situação é parecida. As informações obtidas até o momento indicam que o Conselho de Patrimônio do Município e o IEPHA não foram nem sequer informados da cessão de uso do Viaduto Santa Tereza, que é objeto de tombamento municipal e estadual. Além disso, o Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação também não foi consultado. 

[2] O observaSP é um observatório ligado ao Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da FAUUSP. O observatório tem por objetivo monitorar e influenciar políticas urbanas municipais, com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos, a partir de estudos de casos que analisam as estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística desenhados pelos governos locais para implementar (ou obstruir) o direito à moradia e à cidade, notadamente para os setores mais pobres e vulneráveis da população.

7. A expulsão dos antigos moradores e comerciantes da região por projetos voltados para o uso cultural dos baixios dos viadutos

Em suas pesquisas, a jornalista Sabrina Duran percebeu que os projetos de ocupação dos baixios dos viadutos por agentes privados normalmente envolvem o uso cultural desses espaços, pauta da classe média ilustrada e criativa que mora na região e que vê no parque uma opção de lazer e cultura, mas não debate os impactos especulativos e gentrificadores que a medida já vem provocando na área.” Como ela constatou, tais projetos costumam provocar a expulsão da população de rua da região.

No caso do edital aberto para a região do Bixiga em São Paulo, o observaSP chama a atenção para a possibilidade de expulsão de comerciantes que atuam há anos naquele baixio.

Em Belo Horizonte, como o projeto da CUFA ainda não foi implementado, é impossível afirmar que a população de rua e os comerciantes serão expulsos da região. Porém, há indícios de que o baixio do Viaduto poderá, sim, passar por um processo de higienização caso tal projeto seja efetivado.[3]

[3] Leia mais sobre o Viaduto Santa Tereza no InDebate
O cheiro do mijo: o que a gestão de um banheiro público tem a ver com o enobrecimento de um território?

http://indebate.indisciplinar.com/2017/05/12/o-cheiro-do-mijo-o-que-a-gestao-de-um-banheiro-publico-tem-a-ver-com-o-enobrecimento-de-um-territorio/

Em Belo Horizonte, as intenções gentrificadores desses projetos ficam ainda mais claras quando analisamos a situação do entorno dos viadutos cedidos à iniciativa privada. Ao lado do Viaduto Santa Tereza, foi construído um edifício envidraçado que serviria de hotel durante a Copa do Mundo mas ainda se encontra vazio e sem uso.

[Img.3] Imagem retirada do Google Street View. Baixio do Viaduto Santa Tereza com o hotel vazio ao fundo do lado direito.

Traçar o paralelo entre a experiência de São Paulo e de Belo Horizonte, encontrando os pontos comuns de cessões de baixios de viadutos para agentes privados, permite-nos compreender as estratégias utilizadas para o avanço do capital sobre esses vazios urbanos e vislumbrar as consequências da transferência da gestão de espaços públicos a entes privados. Assim como os pioneiros dos séculos XVII e XIX desbravaram o Meio-Oeste estadunidense, levando civilização àquela região, projetos de revitalização são utilizados para garantir  “bom uso” aos baixios de viadutos, locais normalmente habitados por grupos sociais marginalizados. Como pontuaram Paula Bruzzi Berquó, Natacha Rena e Fernanda Chagas:

Observa-se que, na ponta dos processos de segregação social em áreas urbanas de interesse do mercado, vem sendo utilizado o discurso da revitalização ou requalificação espacial, que, na prática, representa uma política que visa à substituição do público que frequenta, habita e utiliza determinadas regiões por outros públicos, de classes mais abastadas.

Os baixios dos viadutos parecem ser a nova fronteira a ser ultrapassada e apropriada pelo capital para sua contínua expansão. Durante anos de planejamento urbano, os baixios de viadutos foram sumariamente desconsiderados pelos gestores e foram sendo ocupados e utilizados pela população de diversas maneiras: moradia, estacionamento, espaços culturais autônomos.

Recentemente, porém, são diversos os projetos voltados à ocupação desses “vazios”. No plano “BH Segue em Frente – 2013-2016”, do segundo mandato do Prefeito Márcio Lacerda, há a proposta de:

Requalificar certos Espaços Públicos Residuais Atípicos ao longo dos eixos viários, dotando-os de nova utilidade, concebida em harmonia com a estrutura ambiental urbana circundante, por meio da instalação de equipamentos de infraestrutura social, de comércio, serviços e lazer.

Foi com base nessa diretriz que a Prefeitura de Belo Horizonte publicou o edital para ceder o uso de baixios de viadutos da cidade à iniciativa privada.

Nos casos analisados neste texto, os baixios aos quais novas utilidades devem ser atribuídas não se tratam de espaços “vazios”. Pelo contrário. O Viaduto Júlio de Mesquita Filho, no bairro do Bixiga, em São Paulo, e o Viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, são espaços de intensa ocupação cultural, vocação que é desconsiderada pelos editais de outorga de uso publicados pelas prefeituras municipais.

Os projetos aqui analisados, assim como na expansão para o oeste americano, encaram esses territórios como inabitados, as pessoas que os habitam são selvagens e suas histórias não merecem ser consideradas. Caberia aos permissionários, os “pioneiros”, garantir o bom – e rentável! – uso dessa nova fronteira urbana, com a expulsão dos antigos habitantes e substituição dos antigos costumes e usos do espaço.

[3] Leia mais sobre o Viaduto Santa Tereza no InDebate
O cheiro do mijo: o que a gestão de um banheiro público tem a ver com o enobrecimento de um território?

http://indebate.indisciplinar.com/2017/05/12/o-cheiro-do-mijo-o-que-a-gestao-de-um-banheiro-publico-tem-a-ver-com-o-enobrecimento-de-um-territorio/

Felipe Soares

Felipe Soares

Mestre em Direito pela UFMG, pesquisador do Indisciplinar e do Cidade e Alteridade, membro da Real da Rua e conselheiro do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
felipebfs@hotmail.com
Marília Pimenta

Marília Pimenta

graduanda em arquitetura e urbanismo, pesquisadora da frente Zona Cultural no grupo de pesquisa Indisciplinar e conselheira suplente do Conselho Consultivo da Zona Cultural da Praça da Estação.
marilie@outlook.com

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