Caso Rio Doce: propostas de reparação levam ao avanço neoliberal sobre a bacia

Caso Rio Doce: propostas de reparação levam ao avanço neoliberal sobre a bacia

Caso Rio Doce: propostas de reparação levam ao avanço neoliberal sobre a bacia

O avanço da racionalidade neoliberal propicia uma diversidade de ONG’s ambientalistas articuladas com uma rede internacional de interesses controversos e uma atuação tecnicista e afastada dos reais problemas das comunidades do Rio Doce.

Os encaminhamentos institucionais dados ao rompimento da barragem da Samarco, Vale e BHP Billiton no vale do Rio Doce sinalizam que as fragmentações impostas transcendem a esfera socioespacial e atingem as estruturas institucionais, a partir da deslegitimação do aparelho Estatal e da concomitante emergência do terceiro setor como saída viável para gestão dos processos de reparação do desastre-crime.

Pautada em tais argumentos justifica-se a criação da Fundação Renova,  sob o empenho intensivo de condicionar a saída para os entraves gerados através do próprio mercado, garantindo às empresas culpadas pelo desastre-crime e mantenedoras da fundação, não só o controle sobre os processos de reparação e compensação, como também a acumulação de capital em meio ao desastre-crime que segue em curso.

O discurso que coloca o Estado como instituição incapaz de gerir os recursos ganha forças em meio a crise política em voga em nosso país, acentuando a mentalidade de que a corrupção é imanente ao setor público e passível de ser superada no meio empresarial a partir de mecanismos de gestão. No seio das boas práticas que pretendem convalidar as entidades  “não governamentais”, ressalta-se o setor de Compliance (transparência), presente na linha de frente do arranjo de governança da Fundação Renova, alimentando a crítica à alardeada corrupção estatal. No entanto, se o embate é por legitimidade, o arranjo de governança do qual emerge a Fundação Renova e o Comitê Interfederativo (CIF) não é legítimo nem judicialmente, nem pelos atingidos. Pois, é preciso retomar que o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta que embasa a criação deste arranjo, não foi homologado pela justiça e também não conta com a anuência dos atingidos.

Recentemente o arranjo institucional foi colocado em xeque por mais uma questão[1]: a falta de um posicionamento efetivo do CIF frente às empresas e à fundação renova, para garantir o cumprimento da deliberação Nº 58 elaborada pelo próprio comitê. A medida exige o reconhecimento das comunidades do Norte e Sul da Foz do Rio Doce como atingidas, que implica o cadastramento imediato e, posteriormente, a concessão do auxílio emergencial. Após quatro meses de descumprimento da deliberação pela fundação, o CIF, em benefício dos  interesses empresariais, se restringe a apenas notificar a entidade, para uma ação que demandaria multa, em respeito às comunidades até agora desassistidas. Com isso, esta deliberação que gerou grandes expectativas nas comunidades do norte e sul da foz serviu exclusivamente para conter os processos de resistência até então efervescentes.  Tal experiência comprova que os encaminhamentos assertivos para o reconhecimento de direitos e reparações não virão nem pelos direcionamentos do Comitê Interfederativo, nem pela Fundação Renova e suas mantenedoras Samarco, Vale e Bhp Billiton. A saída é clara: militância e ação direta.

O reconhecimento de direitos e reparações não virão do Comitê Interfederativo, nem pela Fundação Renova e suas mantenedoras Samarco, Vale e Bhp Billiton. A saída é clara: militância e ação direta. 

[1] O processo de cadastramento nas comunidades atingidas de São Mateus foi iniciado em setembro/2017

Na contramão, o recorrente esforço de concatenar as saídas pelo terceiro setor – leia-se ONGs e fundações – é central para o avanço do ambientalismo neoliberal, estimulado pelo Banco Mundial através da adoção de diretrizes para a concessão de recursos direcionados às questões ambientais no sul global, que prezam pela substituição do Estado por organizações não governamentais. Nesse sentido, o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves nos alerta para a colonialidade implícita nestas políticas ambientais, pois implicam em manter os recursos naturais salvaguardados por organizações em sua maioria internacionais, com uma agenda submetida aos interesses do Banco Mundial, isto é, sob o controle do grande capital internacional.

Está implícita a colonialidade nestas políticas ambientais, pois mantem os recursos naturais salvaguardados por organizações internacionais como o Banco Mundial, isto é, sob o controle do grande capital internacional.

No caso do rio Doce, a relação entre entidades do terceiro setor e as empresas vai muito além de uma mera aproximação de vocabulário, constituindo um modelo de gestão empresarial com roupagem verde, a exemplo da parceria com o Instituto Terra. O fotógrafo Sebastião Salgado há bastante tempo, tem alguns de seus projetos profissionais financiados pela Vale, além de manter a ONG ambientalista focada em projetos de recuperação das nascentes do Rio Doce também financiados pela empresa e atualmente em parceria com a Fundação Renova. Entretanto, o que antes era apenas mais um investimento empresarial em publicidade verde, após o crime, se converteu em uma grande jogada de sorte, em benefício da reputação das empresas. Logo após o crime, o fotógrafo deu uma série de declarações polêmicas em defesa das empresas, dizendo que “essas empresas primam pela preocupação ecológica” e que a degradação do Rio Doce é anterior ao desastre, argumento enfatizado pela Renova na denominação desastre silencioso.

No entanto, considerar que o processo prévio de degradação, causado inclusive pela mineração, ofusca a morte instantânea de mais de 11 toneladas de peixes de 98 espécies, sendo várias delas endêmicas do rio, além da ameaça à fonte de sobrevivência das várias comunidades ao longo da bacia é corroborar com a desresponsabilização das empresas. Neste mesmo caminho, o advento da Fundação Renova, enquanto entidade da sociedade civil – ainda que permeada em todos os escalões por antigos funcionários das empresas criminosas – para tratar questões relativas aos atingidos foi um dos primeiros artifícios para preservar a imagem das empresas culpadas pelo crime, retirando-se em grande parte dos holofotes. Em meio às comunidades, é a apreensão quanto à dependência econômica da atividade minerária que muitas vezes encobrem a responsabilização das empresas mineradoras. De modo mais alarmante, a desresponsabilização atinge até mesmo os desdobramentos judiciais, culminando na suspensão recente, pela Justiça Federal, do processo criminal contra a Samarco, Vale e a BHP e alguns de seus representantes.

Fig.2 Atingidos pelo rompimento de Fundão e MAB protestam em frente à Justiça Federal. Foto Jornal a Sirene

O avanço da racionalidade neoliberal propicia não só a emergência de uma diversidade de ONG’s ambientalistas articuladas por uma rede de interesses controversos, como também abre espaço para uma atuação tecnicista sobre os problemas ambientais engendrada por um protagonismo do técnico-especialista. Esta ascendência ocorre a despeito da atuação militante que resiste aos golpes de supressão explícitos nas políticas adotadas por empresas e pelo terceiro setor a elas ligadas, como nos mapeamentos de stakeholders (pessoas interessadas ou impactadas), componentes do estudo de “risco social corporativo”. Muito comuns às práticas empresariais, estes estudos visam a estabilização das resistências, a fim de legitimar a atuação das empresas, a partir da “acumulação de capital social”, que se realiza por meio da ruptura entre comunidade e capacidade crítica[1]. Não obstante, a adoção deste léxico e estratégia de gestão pela Samarco (Vale-BHP Billiton), precedem o desastre-crime e também perfazem o escopo de trabalho da Fundação Renova.

Seguindo esta lógica, a organização e mobilização da sociedade recebem atenção central no gerenciamento dos riscos sociais. Visando lidar com esses “riscos”, as empresas, por canais próprios ou articulados a outras entidades do terceiro setor, buscam aproximar-se e incentivar as organizações, apropriando-se de conceitos como “mobilização” e “engajamento”, quando na verdade estas adequações se limitam ao campo discursivo.

Na atual conjuntura, não só os movimentos de resistência encontram-se em risco diante do avanço neoliberal e das estratégias empresariais, como também a produção de conhecimento comprometida com a dimensão ético-política.

Na atual conjuntura, não só os movimentos de resistência encontram-se em risco diante do avanço neoliberal e das estratégias empresariais, como também a produção de conhecimento comprometida com a dimensão ético-política. O desmantelamento das estruturas estatais e dentre elas a Universidade, abriu uma fissura estratégica para o entranhamento das empresas culpadas na produção de conhecimento, através dos financiamentos de pesquisa. É neste cenário propício que cresce o assédio da Fundação Renova sobre os grupos de pesquisa e universidades, visando legitimar suas ações. Processo que se concretiza na parceria entre Fundação Renova e os Fundos de Apoio à Pesquisa e Ensino de Minas Gerais e do Espírito Santo (FAPEMIG e FAPES).

Confluindo com as práticas empresariais, o mito da neutralidade científica é a racionalidade na qual se recostam os interesses hegemônicos, em detrimento da concepção de Universidade em prol daqueles desfavorecidos socialmente. Diante disso, a recusa ao financiamento empresarial e da Fundação Renova é a única forma de garantir que as nossas críticas não sejam neutralizadas.

[2] ACSELRAD, H. PINTO, R. A gestão empresarial do “risco social” e a neutralização da crítica. Revista PRAIA VERMELHA, Rio de Janeiro, v. 19 nº 2, p. 51-64, Jul-Dez 2009 2009.

De modo análogo à ruptura socioespacial explícita na divisão entre os atingidos “com cartão e sem cartão”[2], o ambiente acadêmico afetado pelas estratégias empresariais é posto à ruptura entre os financiados e os não financiados pela fundação. Tal segmentação ultrapassa a questão dos recursos, para compreender de que lado a universidade se coloca, a legitimar as estruturas postas ou a desestabilizar o campo de forças em prol da luta dos atingidos. Mediante este acinte à produção de conhecimento, não nos resta dúvidas: somos todos atingidos pelo crime da Samarco, Vale e BHP Billiton.

É com o mote “somos todos atingidos” que O Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens convocou a todos a construir coletivamente o 8º Encontro Nacional do Atingidos por Barragens com lema “Água e energia com soberania, distribuição da riqueza e controle popular”, que ocorreu entre os dia 1 e 5 de outubro, no Rio de Janeiro-RJ. O encontro teve a pretensão de debater a criação de um modelo energético popular para o Brasil, fortalecer a luta pela aprovação da Política de Direitos para as Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e denunciar a desresponsabilização das empresas culpadas pelo crime no Rio Doce.

[3] Leia mais no InDebate:
Com cartão, sem cartão: as fragmentações como estratégia de controle do território pela Samarco (Vale-BHP)
https://goo.gl/NpxXZ4

Paula Guimarães

Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, pesquisadora do Indisciplinar na frente ação Cartografias frente ao desastre-crime no Rio Doce, vinculado ao projeto extensionista Cartografias Emergentes.

Raul Lemos dos Santos

graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG,  pesquisador do Indisciplinar na frente ação Cartografias frente ao desastre-crime no Rio Doce, vinculado ao projeto extensionista Cartografias Emergentes.

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Ação higienista da Prefeitura de Belo Horizonte, que contribui para financeirização da cidade, deixa trabalhadores revoltados.

fig.1 Manifestação ocupou uma das pistas da avenida Afonso Pena, em direção à Prefeitura (Yuran Khan/Bhaz)

Nos últimos dias, Belo Horizonte virou um palco de grandes embates entre a Prefeitura Municipal e as diversas categorias das trabalhadoras e dos trabalhadores de rua. Camelôs, caixeiros, toreros (vendedores “na tora”), vendedores de frutas e outros ambulantes tomaram as ruas quando foram impedidos de trabalhar.

As manifestações, que se iniciaram no dia 3 de julho, foram duramente reprimidas pela Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), que armou, junto à Prefeitura, uma operação envolvendo grande efetivo do choque e até caveirão, ferindo centenas de pessoas e detendo mais de vinte nos primeiros dois dias.

A operação armada produziu um cenário de guerra e de fome, uma vez que a categoria depende do trabalho diário para seu sustento. Neste país de golpes e legalidades flexíveis, a operação é justificada por uma legislação municipal chamada Código de Posturas, que, na prática, viola o direito constitucional ao trabalho de mais de 2.000 famílias que hoje trabalham no centro da cidade. Mas será a legalidade do código o real fundamento dessa ação?

A resposta mais evidente viria da pressão de lojistas e associações de moradores que não querem conviver com o comércio informal. Contudo, essa resposta não resume o problema, pois, para lidar com a questão do trabalho informal, poderiam ser pensadas uma diversidade de alternativas: corredores populares, feiras livres, licenciamento de categorias, como já acontece com os vendedores de frutas etc. No entanto, a alternativa mais concreta e imediata que a prefeitura oferece é o modelo já experimentado e fracassado dos shoppings populares.

fig.2 Camelos em macha dia 04 de Julho. Fonte: Cidade que queremos BH

Convém lembrar que na gestão de Fernando Pimentel como Prefeito de Belo Horizonte (PBH – 2001 a 2008) ocorreu, no centro da cidade, um processo de higienização urbana por via da realocação de camelôs em shoppings populares e do combate à circulação de perueiros, vistos como responsáveis por um processo de deterioração social e como ameaça ao bem estar da coletividade[1].

Tal ação foi seguida da implantação de um Projeto de Requalificação da Área Central de BH chamado “Centro Vivo”, que teve forte adesão dos comerciantes formais e de suas entidades representativas. A PBH, a PMMG e o Clube dos Dirigentes Lojistas (CDL) implantaram, nesse contexto, o “Olho Vivo”, que tinha o objetivo expresso de reduzir a dita criminalidade através do monitoramento do centro por câmeras de vídeo. Maria Fernandes Caldas, hoje Secretária de Serviços Urbanos da PBH e responsável pela nova ação higienista do hipercentro, chegou a ser coordenadora desse Projeto de Requalificação da Área Central nos anos 2000[2].

No dia 19 de Junho de 2017, o prefeito Alexandre Kalil, ao lado da referida Secretária, assinou o Decreto nº 16.634, que institui o Plano de Ação para o Hipercentro de Belo Horizonte, tendo por objetivo a atuação em três frentes. Veja-se como se manifestou o Prefeito acerca do Plano:

“Primeiro, vamos agir sobre a questão dos ambulantes no Hipercentro de Belo Horizonte. Segundo, sobre o gravíssimo problema do crack que nós temos que combater com humanidade também. O terceiro não será em um governo que vamos resolver. Demora tempo, demanda estudo, mas também terá início em nosso governo, que é a situação dos moradores de rua”, explicou Kalil[3].

Importante registrar que no dia 28 de junho, ocorreu um despejo administrativo realizado de forma inconstitucional, sem ordem judicial e sem a possibilidade de exercício do contraditório e de ampla defesa. Nessa ação, mais de 30 famílias em situação de rua, que viviam há mais de duas décadas no Viaduto da Silva Lobo, foram alvo de ação da Guarda Municipal e Fiscalização da Prefeitura de Belo Horizonte. (Ver nota aqui).

A ação de guerra realizada no início desta semana no Centro da Cidade para eliminar o trabalho ambulante da região deixou grande parte da população revoltada, como se vê pela repercussão do contundente testemunho e desabafo de Vânia Lúcia, mulher negra e idosa, que trabalha na rua há 10 anos para manter seu sustento e sua dignidade.

O referido Decreto tem como diretriz geral, prevista em seu artigo 7º, a ampliação das condições de segurança e a manutenção da ordem pública e da segurança urbana e patrimonial, conformando a militarização da cidade e da questão social. Além disso, excepciona, em seu artigo 9º, os procedimentos previstos no Decreto nº 16.505, de 15 de dezembro de 2016, que rege as Operações Urbanas Simplificadas no Município.

Busca-se, assim, criar um rito específico para um arranjo público-privado (PPP’s) de gestão de shoppings populares, pelo qual os donos desses estabelecimentos poderão receber, em troca da cessão indireta de espaço aos camelôs, o pagamento por via de potencial construtivo, que pode se converter em ampliação de sua estrutura física ou que pode ser vendido para construtoras, assentando um processo de financeirização da cidade.

Em um momento de aumento das relações de desemprego, que chegou a 14 milhões de pessoas no país, e de precarização do trabalho com um desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários, faz-se necessária uma saída que respeite os direitos desses trabalhadores.

O Código de Posturas do Município não pode se sobrepor ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, à efetivação de direitos sociais e ao direito à cidade desses sujeitos. E tampouco essas regras podem se sobrepor às Convenções Internacionais de Direitos Humanos, que contemplam a atividade laboral humana como direito fundamental, devendo essa ser protegida dos abusos e exercida com dignidade.

Ao invés de PPP’s, por que não Parcerias Públicas Comunitárias como método de gestão coletiva e democrática da cidade e de exercício do direito ao trabalho e à cidade ? As periferias dessa cidade têm o direito de ocupar o Centro e as ruas do Centro como expressão do direito à cidade! O direito à cidade, aqui, deve ser visto como o direito de redefinir usos e funções dos espaços públicos a partir da efetivação do direito ao trabalho digno, do direito de se apropriar e fruir das ruas, do direito a uma cidade desmilitarizada e desfinanceirizada – Dignidade Ambulante!  Dignidade na Rua! Desmilitarização a Cidade! Planejamento Urbano Popular!

Por uma cidade onde caibam muitxs cidades!
Mátria-Pátria Livre – Venceremos!

Isabella Gonçalves

Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), assessora em co-vereança do mandato das “Muitas: pela cidade que Queremos”, em Belo Horizonte e militante das Brigadas Populares.

Luiz Fernando Vasconcelos

É mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), advogado popular e militante das Brigadas Populares.

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Instrumento de neoliberalização da política pública é alvo de CPI

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Câmara Municipal de Belo Horizonte investiga ações da PBH Ativos.

Está em andamento desde do dia 19 de Maio de 2017 uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) presidida pelo vereador Gilson Reis com o intuito de investigar as ações da PBH Ativos S/A realizadas até o início de 2017. Tal CPI conta também com a participação do vereador Pedro Patrus como subrelator sobre a emissão de debentures em suas reuniões. A CPI organizou oitivas nas quais foram convidadas a economista Eulália Alvarenga, professor Diércio Ferreira e o advogado Fernando Santanna (dia 12/06); a economista e integrante do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli (dia 19/06) para prestar depoimentos sobre potenciais problemas técnicos e irregularidades no funcionamento da S/A. Também a Doutora Cleide Nepomuceno (26/06) foi ouvida sobre a transferência dos recursos do DRENURBS (Plano Diretor de Drenagem Urbana). Agora a CPI utilizará instrumentos de convocação para a presença do Tribunal de Contas da União, Tribunal de Contas do Estado, e a Comissão de Valores Moveis. Ainda, na terça-feira, (27/06) ocorreu uma Audiência Pública para tratar sobre a PL 239/2017, que trata da cisão da PBH Ativos.

As filmagens das seçoes da CPI e as transmissões estão sendo realizadas pelo grupo Indisciplinar. Além disto, na plataforma do grupo é possível encontrar documentos e materiais de estudo sobre o tema.

A página Somos todos conta cidade empresa publicou um manifesto contra a PBH Ativos e sua cisão, assinado por diversos movimentos, associações e entidades. Confira o manifesto.


 

SOMOS CONTRA A PBH ATIVOS S/A, SOMOS CONTRA A CISÃO PARCIAL DESSA EMPRESA

A PBH Ativos S/A é uma empresa privada, uma sociedade anônima de capital fechado, criada pela Prefeitura de Belo Horizonte no mandato do prefeito e empresário Márcio Lacerda, por meio da Lei 10.003 de 25 de novembro de 2010 (alterações dadas pela Lei n° 10.699) e teve seu estatuto instituído pelo Decreto 14.444 de 09 de junho 2011. Essa empresa foi criada para atuar como estrutura paralela à Prefeitura, sendo apresentada como facilitadora na “articulação e operacionalização de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico e social do Município”.

A PBH Ativos S/A objetiva o lucro acima de tudo e foi criada sob a forma de uma Sociedade Anônima, incluindo a participação não apenas de empresas do município, como a BHTRANS e a PRODABEL, como sócias-minoritárias, mas também de pessoas físicas.

A empresa, conforme descrito em sua página de internet, tem por missão auxiliar a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte na articulação e operacionalização de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico e social do Município, por meio da gestão de obras de infraestrutura, parcerias público-privadas, captação de recursos financeiros, administração patrimonial e gestão de ativos e de imóveis.

Mas, ao contrário do que se prega, vale destacar, seguindo uma série de bibliografia crítica sobre o tema, que a consolidação dessa empresa não veio para construir desenvolvimento econômico e social para cidade. O que se tem observado em sua operacionalização é a transferência de enormes quantias de patrimônio público dos cofres do Município para PBH Ativos S/A, sem que nenhuma melhoria seja revertida para a sociedade. Até agora, foram transferidos recursos do orçamento municipal para a integralização de capital da PBH Ativos S/A da ordem de 1 bilhão de reais (235 milhões em créditos que o Município possuía com a COPASA, 29 milhões em terrenos e imóveis e mais 880 milhões de cessão de créditos tributários) para subsidiar o a emissão de Debêntures.

O atual Prefeito, Alexandre Kalil, teve como plataforma política em sua campanha a extinção da sociedade anônima PBH Ativos S/A, com duras críticas à gestão de Márcio Lacerda e, em especial à criação dessa S/A. Todavia, no dia 25 de abril do presente ano, Kalil encaminhou à Câmara de Vereadores de Belo Horizonte o Projeto de Lei – PL 239/2017 cuja ementa é:

“Autoriza o Poder Executivo a realizar a cisão parcial da sociedade de que trata a Lei n°10.003, de 25 de novembro de 2010, extinguindo-se a PBH Ativos S.A. e dá outras providências.”

Contudo, apurando o olhar, a nova gestão de Kalil não cumpriu o que prometeu. O PL 239/17 prevê não a extinção da PBH Ativos S/A, mas sua divisão em duas companhias: a Companhia Municipal de Investimentos e Participações e mudança a denominação social da PBH Ativos S/A para Companhia Municipal de Securitização.

Trata-se de mera maquiagem jurídica levada a cabo pela estratégia formal de mudança legislativa que não apenas altera, mas vai além, expande as principais competências de gestão empresarial antes previstas para PBH Ativos S/A. Tanto é assim, que uma rápida comparação entre a lei que instituiu a PBH Ativos S/A, em 2010, e o novo o PL 239/2017 repete, num caricatural ipsis litteris, 10 dos 12 objetivos sociais da primeira versão da S/A.

Se com a gestão da PBH Ativos S/A, de Márcio Lacerda, já estava evidente a tentativa de emplacar na administração de Belo Horizonte um modelo neoliberal de gestão da política pública, realizando o empresarialmente urbano, com a nova proposta enviada pelo governo Kalil, nos estudos indicam que além da permanência das atividades da PBH Ativos, a privatização da gestão será bem maior que no antigo modelo, completamente rechaçado pelos movimentos sociais da cidade.

Para demonstrar o que representa o novo PL proposto pelo Executivo Municipal, citamos alguns exemplos a seguir.

No Inciso VII do Artigo 2º (que trata dos objetivos sociais da Companhia de Investimento e Participação), lê-se:

“VII – atuar como mandatária do Município em contratos de concessões, podendo, para tanto, celebrar convênios ou outros instrumentos congêneres com entidades da Administração Pública Municipal, bem como empresas direta ou indiretamente controladas;”

Faz parte do novo modelo que a Cia de Participação e Investimento possa atuar no lugar do próprio Município, ou seja, podendo assinar e iniciar novos contratos de concessão e celebrar os convênios que julgar necessário. O inciso VIII do mesmo artigo complementa o inciso anterior, prevendo que a empresa será a responsável – no lugar do Município – auxiliar, gerenciar, licitar, realizar ou custear obras e serviços.

Já o inciso IX:

“IX – participar da formação acionária de outras sociedades cujo objeto social seja compatível com suas finalidades”; (grifamos)

Preocupante, já que com essa autorização, a empresa poderá participar de formação acionária de outras sociedades, e o texto do PL  não se limita às sociedades de administração pública indireta, o que abre espaço para que se participe da formação acionária de sociedades anônimas privadas. Deve-se combinar a análise com a autorização do Inciso XI, citado abaixo, que atribui a essa empresa a emissão e distribuição de valores mobiliários e captação de recursos junto ao mercado de capitais, o que representa a principal forma de emissão de títulos de dívida pública, ou seja, SECURITIZAÇÃO:

“XI – adquirir créditos, estruturas e implementar operações que envolvam a emissão e distribuição de valores mobiliários, de emissão pública ou privada, ou qualquer outra forma de captação de recursos junto ao mercado de capitais.”

Por simples leitura do PL, vemos que se permite à empresa realizar operações financeiras injustificadas que criam dívidas para o Município, vedadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Nota-se que o patrimônio do Município servirá de garantia para o pagamento dessas dívidas criadas. Percebe-se claramente o comprometimento do orçamento público e de gerações futuras, devido a garantias de operações realizadas por empresa privada. Créditos tributários serão dados como garantia de títulos, desvinculando a finalidade do tributo, cuja função deveria ser a de melhoria da cidade para nós, belorizontinos. As receitas tributárias que deveriam ser usadas para melhorias na cidade, para os seus cidadãos, serão usadas pela sociedade anônima, como garantia de emissão de dívida pública beneficiando o mercado financeiro. Fato esse que já ocorre na PBH Ativos S/A e que motivou várias ações na Justiça e nos órgãos de Controle – por parte da sociedade organizada em PBH e vereadores.

Além do esvaziamento da gestão inerente à Administração Pública Direta que elegemos, o empresarialmente urbano via estes modelos de empresas retira, das Secretarias do Município, escolhas de políticas públicas estratégicas.

É sabido que o capital social da PBH Ativos S/A hoje pertence quase na sua integralidade ao Município (apesar da composição social poder ser alterada por decreto) e se aprovado o PL 239/2017, haverá significativa modificação da composição acionária da empresa sucessora da PBH Ativos S/A, conforme se depreende do § 3º, art.2º:

“§ 3º – Fica o Poder Executivo autorizado a realizar aumento de Capital da Companhia Municipal de Investimentos e Participações exclusivamente mediante a integralização através de ações representativas de 50,01% da totalidade de ações ordinárias nominativas da Companhia Municipal de Securitização.”

A integralização do capital da Companhia Municipal de Investimentos e Participações, será realizado com 50,01% das ações ordinárias nominativas que o Município detém da PBH Ativos S/A. Isso significa que essa nova empresa –  Companhia Municipal de Investimentos e Participação – será dona de metade da Companhia de Securitização. Também fica explícito que o Município perde o controle acionário da Companhia Municipal de Securitização (nova denominação social da PBH Ativos S/A.

Denunciamos também que o PL, mesmo autorizativo, não demonstra a composição acionária das duas empresas.

Outro risco que se coloca diante da cisão proposta se relaciona à omissão, no PL, quanto ao capital social da Companhia Municipal de Participações e Investimentos, o que indica que a nova gestão se dará nos moldes da  gestão do Prefeito Márcio Lacerda: o capital social e sua distribuição será aumentado via decreto, podendo oferecer crédito tributário do Município, imóveis públicos e ativos municipais como parte para integralização do capital social dessas empresas. O que se vê é o sucateamento do poder público em troca de ganhos econômicos para o setor privado. O PL 239/2017, se aprovado, vai autorizar a maior privatização pela qual já passou o Município, maior do que foi feito com a PBH Ativos S/A, na adm. Lacerda, ou seja, é um modelo que garante a privatização de espaços públicos, cessão ilegal de créditos tributários, o dentre outros males que atingirão fortemente o processo de participação popular que deveria estar garantida pelo voto popular e democrático em um projeto eleitoral

Assim, opomo-nos à forma de governança gestada pelo ex-Prefeito empresário Márcio Lacerda, que poderá se perpetuar na gestão do novo Prefeito Alexandre Kalil – a despeito das suas promessas de campanha.

Reafirmamos que, o Projeto de Lei nº239/2017, apresentado pelo Prefeito Alexandre Kalil, indica um modelo mais perverso que o atual, apresentando mecanismos de rapinagem do orçamento público municipal que podem operar – em níveis cada vez mais sofisticados – para garantir a rentabilidade de capitais privados.

A gestão pública deve estar orientada a atender as demandas populares e coletivas, e não aos interesses privados que podem solapar a democracia nos processos de produção de cidades.

Outras movimentações semelhantes às da PBH Ativos S/A, assim como das duas Companhias que poderão ser criadas em Belo Horizonte, acontecem em outras cidades: em 2015, com a Lei nº8.961/2015, surge em Salvador, a Salvador Companhia de Securitização; em 2016, com a Lei nº 11.991/2016, surge em Porto Alegre, a empresa de securitização InvestePOA; em 2017, com o Lei 01-00179/2017, em São Paulo altera-se a SP Negócios. Provavelmente trata-se da formação de uma rede de cidades-empresa para a gestão financeirizada das políticas públicas, atendendo aos interesses de capitais em busca de rentabilidade.

NÃO AO PLS 204/2016, do Senador José Serra, que visa legalizar a Secutização das DIVIDAS PÙBLICAS

#SomosTodosContraCidadeEmpresa

Assinam essa carta/manifesto:

– Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas da Grande BH – AMES/BH

– Associação dos Procuradores do Município de Belo Horizonte – APROMBH

Associação Pernambucana dos Fiscos Municipais – APEFISCO

– Auditoria Cidadã da Dívida – Coordenação Nacional, Núcleo Mineiro, Núcleo Primeiro de Maio

– Brigadas Populares

– Casa de Referência da Mulher Tina Martins

CEAPE – Sindicato de Auditores Públicos Externos do TCE-RS

– Coletivo Mineiro de Resistência – Alternativa Popular

– Comissão Pastoral da Terra – CPT

– Consulta Popular

DA FAFICH/UFMG

– DA Letras – UFMG

– Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social – ENESSO

– Federação Nacional dos Estudantes de Ensino Técnico – FENET

Federação Nacional dos Auditores e Fiscais de Tributos Municipais – FENAFIM

– Fórum das Comunidades de Resistência

– Grupo de Pesquisa Indisciplinar (UFMG)

INTERSINDICAL – Central da Classe Trabalhadora

-Labcidade (FAUUSP)

– Labhab – Laboratório de habitação e assentamentos humanos (FAUUSP)

– Levante Popular da Juventude

– Marcha Mundial de Mulheres – MMM

– Movimento das Associações de Moradores de Belo Horizonte- MAMBH

– Movimento Correnteza

– Movimento das Trabalhadoras(es) por Direitos – MTD

– Movimento de Luta nos Bairro, Vilas e Favelas – MLB

– Movimento de Mulheres Olga Benário

– Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB

– Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST

– Movimento Luta de Classes – MLC

– Movimento Nossa BH

MUITAS – Cidade que Queremos

– Política Econômica da Maioria – POEMA

– PSOL MG

PSOL BH

– Rede de Desenvolvimento do Bairro Jardim Felicidade

– Sindicato dos Auditores de Tributos Municipais de Belo Horizonte – SINFISCO

-Tarifa Zero/BH

­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­-Trabalhadoras(es) Por Direitos – MTD

– União da Juventude Rebelião

 

Para saber mais sobre a PBH Ativos leia no indebate
A Hidra da financeirização: as duas cabeças da PBH Ativos S/A
http://indebate.indisciplinar.com/2017/05/22/a-hidra-da-financeirizacao-as-duas-cabecas-da-pbh-ativos-sa/
A gestão empresarial da política municipal de Belo Horizonte: o caso da PBH Ativos
http://indebate.indisciplinar.com/2017/04/12/a-gestao-empresarial-da-politica-municipal-de-belo-horizonte-o-caso-da-pbh-ativos/

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Relato – oitiva Marcio Lacerda

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Com cartão, sem cartão: as fragmentações como estratégia de controle do território pela Samarco (Vale-BHP)

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O crime da Samarco (Vale-BHP Billiton), a fragmentação geográfica e as fronteiras socioespaciais.

Escamoteado pelo golpe de Estado que segue em curso no país, o crime da Samarco e suas controladoras Vale e BHP Billiton, na bacia do Rio Doce, ficou sedimentado no fundo da gaveta das preocupações nacionais e das pautas jornalísticas. E não é só pela instabilidade política: a questão ficou obscurecida por uma seletividade relativa à importância dada aos atingidos e por diversas estratégias empresariais de encobrimento dos rastros do crime.

A amplitude do desastre pode ser compreendida pela dimensão espacial e temporal com que se alastra a lama tóxica, seguida de seus incontáveis danos sociais, ambientais, econômicos e afetivos. A extensão espacial dos impactos percorre a bacia do Rio Doce, desde a barragem de Fundão, em Mariana-MG, até a foz na vila Regência Augusta, em Linhares-ES, e se estende no oceano. Em nota técnica[1], o ICMBio e Projeto Tamar demonstram que a alta concentração da pluma de rejeitos no oceano está localizada entre São Mateus, no norte do ES, e o litoral da Serra, município da Grande Vitória. Ainda mais alarmante, o estudo do Instituto de Biofísica da UFRJ[2] comprova que até mesmo o lençol freático em alguns pontos nas imediações da bacia está contaminado. Tão intangível quanto é a extensão temporal. Afinal, o rompimento da barragem em si é apenas o início de um processo longínquo de difusão e aprofundamento de uma diversidade de impactos.

Se entendemos, como propõe Ana Fani Carlos, que espaço é “condição, meio e produto da realização da sociedade humana em toda a sua multiplicidade”, igualmente vasto é o rol de pessoas atingidas e a multiplicidade de afetações, que não se limitam ao itinerário da lama, nem mesmo a esta geração.

O rompimento da barragem da Samarco (Vale-BHP) se desdobra em múltiplos distanciamentos nas relações entre as pessoas, os modos de vida e o espaço.

Uma leitura atenta às relações socioespaciais nos direciona para o entendimento de que o rompimento da barragem da Samarco (Vale-BHP) se desdobra em múltiplos distanciamentos nas relações entre as pessoas, os modos de vida e o espaço. Tais fronteiras são frequentemente acirradas pelas práticas e políticas institucionais centradas na fragmentação da resistência e na expansão do domínio dos interesses empresariais sobre o território.

A cisão imediata é a desterritorialização, ou seja, o rearranjo das relações de poder sobre o território, assim como o enfraquecimento dos enlaces locais e referências simbólicas. Em sua forma mais clara, compreende o deslocamento de moradores de comunidades soterradas pela lama, localidades que acumulam características de uma economia agrária, para casas alugadas na área central de Mariana-MG. Por detrás dessa saída, recostam-se os interesses empresariais na dissolução das relações socioespaciais, exacerbados na dispersa distribuição espacial [mapa 1] das casas alugadas em Mariana, o que fragiliza a sustentação dos laços que uniam os moradores em comunidades.

[1] Nota técnica nº 03/2017 Vitoria- ES/TAMAR/DIBIO/ICMBio – Identificação da área atingida pela pluma de rejeitos da Samarco e das principais comunidades pesqueiras existentes na mesma.
[2] http://www.greenpeace.org.br/hubfs/Campanhas/Agua_Para_Quem/documentos/greenpeace_estudo_agua_riodoce%20.pdf

A recostura dessas fragmentações impostas se dá muitas vezes através de festejos religiosos no território atingido, o que pressupõe não só reencontrar os antigos vizinhos, como também o processo de revisitar o território devastado. Essa tentativa de retomada de controle sobre o território traz à tona a importância do espaço para a manutenção da comunidade.

Na contramão, as investidas empresariais tentam cercear esses enlaces seguindo alguns passos: primeiro, impondo o controle da circulação através de cercamentos da área soterrada e de restrições de visitas ao território; segundo, consentindo o saque às casas invadidas pela lama e a desconstrução de referenciais; e, por fim, o xeque-mate, o apagamento dos rastros do crime e da memória local. Esse apagamento se dá de maneira gradual, com a demolição de casas e a elaboração de uma “maquiagem verde”, chegando ao absurdo de se pintar de verde gramas secas no centro de Barra Longa-MG, e de modo evidente com a inundação de parte do povoado do Bento Rodrigues, devido à conclusão das obras do Dique s4, sob o pretexto de conter o vazamento de rejeitos.

[mapa 1] Localização das casas alugadas na cidade de Mariana. fonte: Fonte: Jornal “A Sirene – Para não esquecer”, Edição número zero, 2015.
[fig 1] Queimação de judas, representado pela empresa samarco, na celebração da Semana Santa em Bento Rodrigues – foto: Daniela Félix, Jornal Sirene

De certo, a construção do Dique S4 mostra a dupla estratégia de controle territorial da empresa: a dominação da propriedade privada e a apropriação da sua dimensão subjetiva. De um lado, recorre-se ao domínio sobre a propriedade, de outro, há a tentativa de impedir a reaproximação afetiva com o território. Para isso, as empresas lançam mão de artifícios jurídicos do Estado, sob o ímpeto neoliberalizante escancarado no Decreto de Numeração Especial 500[3], assinado pelo governador de Minas Gerais, que concede às empresas o direito de uso, por 36 meses, das terras a serem alagadas. Na prática, significou uma proposta de indenização aos donos das terras pelo uso temporário que a empresa requisita, podendo o prazo ser estendido sem mais indenizações. Ressalta-se que a área do Dique S4 já era alvo do interesse das empresas desde 2009, confrontado na época pela resistência dos moradores e embasada pelo valor histórico do povoado e pelos altos impactos ambientais que geraria.

Uma vez tomado pela lama tóxica, o rio, elemento central das práticas cotidianas de diversas comunidades ao longo de toda a bacia do Rio Doce, muitas vezes se transforma em fronteira geográfica.

Outro sinal de desterritorialização é a impossibilidade de se adentrar o rio. Uma vez tomado pela lama tóxica, o rio, elemento central das práticas cotidianas de diversas comunidades ao longo de toda a bacia do Rio Doce, muitas vezes se transforma em fronteira geográfica. O ato de atravessar de uma margem a outra, como era realizado cotidianamente entre Cachoeira Escura, distrito de Belo Oriente-MG e São Lourenço, no município do Bugre-MG, passou a realizar-se por um deslocamento de mais de uma hora por terra. Do mesmo modo, a contaminação impede travessias cotidianas intrínsecas às atividades econômicas, práticas espirituais, lazer e a rotina de modo geral.

O aprofundamento dessas cisões, e, por conseguinte, do desastre-crime que segue em curso, se dá através das investidas das empresas e da Fundação Renova[4] de domínio sobre o território por meio de estratégias para criar uma divisão entre os atingidos, sejam elas a fim de cristalizar as divergências socioespaciais, como também de segmentar e criminalizar as resistências. É nessa lógica que se fortalecem as separações entre os direitos de reassentamento dos moradores de Paracatu de Baixo e Paracatu de Cima, em Mariana-MG, localidades que, antes do desastre-crime, compartilhavam os mesmos equipamentos públicos e espaços de lazer, palcos das relações de vizinhança.

[4] A Fundação Renova é a entidade designada para cuidar dos processos de reparação e compensação dos impactos do desastre. Testa de ferro da Samarco-Vale-Bhp Billiton, a Fundação é mantida pelas empresas culpadas pelo desastre conforme estabelecido no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta, fruto do acordo extrajudicial entre União, Governo dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e Empresas assinado em março/2016.  Visto isso, mantenho a denominação “empresas” mesmo que em referência às ações da Fundação Renova.

As empresas conduzem as negociações até a exaustão, a fim de exacerbar os dissensos

Seguindo a mesma lógica, estrategicamente, as empresas conduzem as negociações até a exaustão, a fim de exacerbar os dissensos, como muito bem exemplificado no processo de definição do terreno do reassentamento em Gesteira, Barra Longa-MG. O impasse foi produzido pelas empresas ao inviabilizarem a compra do terreno adequado às necessidades de todos os moradores, ofertando apenas saídas incompatíveis. O desgaste do processo acabou gerando cisões internas entre aqueles que, angustiados por soluções definitivas, cogitam receber indenização em dinheiro, e aqueles que não abrem mão do reassentamento[5]. Por conveniência das empresas, não foi cogitada a possibilidade de recorrer ao poder estatal para desapropriação, que nem seria necessária, visto que há pouco tempo o proprietário do terreno anunciou a disponibilidade de venda.

A mais emblemática dessas práticas é a concessão do auxílio financeiro emergencial para os atingidos que perderam a renda diante do desastre. Os atingidos recebem um cartão cuja distribuição é controlada pelas empresas, pautada em critérios não esclarecidos e via de regra concedidos aos homens das famílias, desconsiderando as mulheres que tinham renda própria. Além da adoção de critérios inconsistentes e machistas, o cartão virou meio de fragmentação entre grupos de atingidos – ribeirinhos, pescadores e comerciantes – e intrafamiliares, que agora se dividem entre os Com Cartão e os Sem Cartão. Ademais, a ameaça de retirada do cartão é feita constantemente aos atingidos, que se aliam a movimentos de resistência. Numa perspectiva mais alarmante, o cartão se tornou estratégia de acesso das empresas a diversas localidades onde não exerciam influência.

Se antes as empresas exerciam poder sobre as cidades da bacia onde se localizam as bases operacionais do seu ciclo produtivo minerário (mina e porto-indústria), hoje seu domínio se expandiu para a bacia inteira, já que boa parte dos atingidos que perderam suas rendas se encontram dependentes do cartão ofertado pela empresa. Da mesma forma, o deslocamento dos atingidos das áreas invadidas pela lama para região central de Mariana implica submetê-los a uma área com estreitos vínculos com essas empresas, sujeitando-os a estigmatização. Tal prática possibilita a expansão do domínio da Samarco (Vale-BHP) sobre todo o território atingido e também o autocontrole da população, a partir da disseminação do discurso de culpabilização dos atingidos pelo desemprego, isto é, o êxito da biopolítica.

[fig.2] Terras alagadas em Bento Rodrigues – Foto: Rodolfo Meirel
[5] É nesse contexto de vulnerabilidade social que integrantes do Grupo de Pesquisa e Estudos Socioambientais (GEPSA-UFOP), viram como necessidade esclarecer questões sobre a assessoria técnica reunidas em cartilha. Cartilha criada pelo GEPSA, em parceria com o Coletivo Margarida Alves e o Movimento dos Atingidos por Barragens. Disponível em: https://issuu.com/gepsaufop/docs/final_cartilha_assessoria_para_o_is
[fig 3] Procissão segue pelas ruínas de Bento Rodrigues para celebrar o dia de Nossa Senhora das Mercês – Fotos: Alexandre Guzanshe

Em resposta às práticas empresariais de segmentação das comunidades, os atingidos têm se mobilizado para estruturar as negociações coletivas, por meio de comissões representativas escolhidas pelas comunidades atingidas e pela reivindicação de assessoria técnica. Desde o ano passado, membros das comissões acompanham as negociações em Mariana (MG) com apoio da Cáritas Brasileira, assessoria escolhida. Nesse modelo, evita-se o esvaziamento das negociações e impede-se a canalização das empresas para as conversas individuais, nas quais o domínio corporativo tenderia a pesar sobre os encaminhamentos. Seguindo os êxitos precedentes, em maio, Barra Longa-MG conquistou a contratação da assessoria técnica e, desde fevereiro deste ano, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) vem mobilizando a formação de comissões de atingidos estaduais e municipais no Espírito Santo, numa ação conjunta[6] com Ministério Público Estadual e as Defensorias Públicas da União e do Espírito Santo.

Parece cabível fazer dois apontamentos preliminares: primeiro que tais práticas desterritorializantes, no entendimento de Harvey[7], pressupõem a compressão de tempo-espaço, ou seja, a quebra de fronteiras locacionais para a contínua acumulação do capital. Paradoxalmente, a desterritorialização também se alimenta da criação de novas cisões que dissolvem as relações socioespaciais e de controle preexistentes. Por fim, um caminho possível para recostura desse território dilacerado é o entendimento de território atingido pelas práticas do Estado-Capital, sobretudo das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton. Contudo, essa tarefa não é tão simples, tendo em vista que a extensão espaço-temporal das afetações ainda é intangível, dificultando uma delimitação do que é o território atingido.

[6] A formação de comissões de atingidos está atrelada também ao andamento das negociações do Termo Aditivo ao Termo de Ajustamento Preliminar, que visa o diagnóstico socioeconômico para embasar a negociação do Termo Ajustamento de Conduta Final (TACF), a ser assinado em julho.
[7] HARVEY, D. 1992. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola.

Paula Guimarães

mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Indisciplinar, com parceria do Movimento dos atingidos por Barragens, e integrante do grupo Mobiliza Rio Doce, vinculado ao Programa Participa UFMG Rio Doce-Mariana.
paulaguimaraes1701@gmail.com

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#Ocupatudo: notas conjunturais em torno da questão urbana

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Por uma reforma urbana popular de resistência positiva contra a cidade-empresa neoliberal.

Imagem ocupações CEFET-MG

O ano 2017 se inicia com muitas incertezas e insegurança no tocante às políticas públicas no Brasil. O argumento da crise – indissociável do discurso que sustenta a governabilidade neoliberal na atualidade – busca legitimar medidas drásticas de contenção de investimentos públicos por parte do governo federal, a mais grave delas consubstanciada na aprovação da PEC 55, com graves implicações no orçamento público para as gerações presentes e futuras.

Nem mesmo as potentes ocupações estudantis de centenas de escolas, institutos federais e universidades por todo o país foram suficientes para barrar a aprovação da PEC 55. Independente da derrota especificamente quanto à aprovação da proposta de emenda constitucional, as ocupações estudantis serviram para a experimentação de novas formas de resistência positiva, auto-organizadas, e deram um fôlego novo ao movimento estudantil. Deixaram como maior legado o dispositivo de mobilização que julgo ser o mais adequado ao nosso conturbado momento histórico: #ocupatudo.

A palavra de ordem “ocupa tudo” não significou, aqui, tomar assento nas estruturas pseudodemocráticas para fins de tentar influir nos rumos da política institucional.

Diferentemente de outrora, no marco dos programas democráticos populares, a palavra de ordem “ocupa tudo” não significou, aqui, tomar assento nas estruturas pseudodemocráticas para fins de tentar influir – se é que hoje ainda há alguma abertura para isso – nos rumos da política institucional. Os canais de participação que já eram frágeis antes, agora, após o impeachment, ao menos no âmbito federal, tornaram-se completamente inócuos e desacreditados, a exemplo do Conselho Nacional das Cidades, o que também reflete uma crise de representação na qual a esfera instituída não é capaz de dar vazão aos desejos expressos nas lutas e resistências encampadas frente ao Estado-capital. Crise de representação, que já era evidente durante as jornadas de junho de 2013, quando o poder instituído, em todos os níveis, ficou atônita diante da multidão que protestava nas ruas sem saber com quem nem como negociar as pautas reivindicadas nos cartazes e nos corpos dos manifestantes.

As jornadas de junho performaram por contágio político reivindicações caras à cidade e deixaram explícito que as pautas trazidas às ruas estavam em sua maioria implicadas com a vida nas metrópoles. Mas as reivindicações dos(as) manifestantes não cabiam nos mecanismos tradicionais de negociação política e coube ao poder instituído apenas recuar, especialmente quanto ao aumento das tarifas do transporte público. As jornadas de junho e seus desdobramentos trouxeram outras narrativas, outras estéticas e outros modos de resistir que destoavam dos movimentos sociais e sindicais tradicionais, bem como dos movimentos pela reforma urbana, boa parte dos quais presos à institucionalidade e à política pública de provimento habitacional (programa Minha Casa, Minha Vida), tal como descrito por Pedro Arantes no texto “Da (Anti) Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades” (2013).

Ante a complexidade do atual cenário político, envolto numa crise cujo fim ainda parece distante, é preciso reconhecer que nós, enquanto agentes do campo de luta pela reforma urbana, fomos derrotados, muito antes da consumação do impeachment: é preciso que se reconheça isso. As bandeiras da reforma urbana sucumbiram perante o neodesenvolvimentismo atrelado à cartilha do urbanismo neoliberal que privilegia a casa-mercadoria e as parcerias público-privadas a despeito da gestão democrática das cidades.

As bandeiras da reforma urbana sucumbiram perante o neodesenvolvimentismo atrelado à cartilha do urbanismo neoliberal que privilegia a casa-mercadoria e as parcerias público-privadas a despeito da gestão democrática das cidades.

Nossas cidades estão cada vez mais reféns dos carros e não se vislumbra no horizonte próximo nenhuma inflexão em favor de outro paradigma de mobilidade urbana. A grande pauta que gerou a fagulha de junho em 2013 segue latente; ano após ano testemunhamos os aumentos abusivos das tarifas do transporte público. Belo Horizonte ostenta a maior tarifa do país: R$ 4,05 é o valor da tarifa nos ônibus municipais. Por outro lado, o paradigma da mobilidade privada individual motorizada se aprofunda e se comporta como um dos mecanismos de subjetivação individualista mais eficazes em detrimento do espírito de coletividade e da solidariedade: nos congestionamentos que se alastram em todas as metrópoles brasileiras são todos contra todos na batalha fratricida por espaço e locomoção.

O programa democrático popular encampado pelo PT e defendido pelos movimentos e entidades nacionais da Reforma Urbana não apenas não realizou o que prometeu, mas deu no seu contrário, numa antirreforma, como afirma Pedro Arantes no mencionado texto, ou seja, em um aprofundamento da privatização/mercantilização das cidades e do paradigma rodoviarista, da disseminação das parcerias público-privadas na produção do espaço com diversos projetos de expansão e requalificação urbana baseados em dados quantitativos e não qualitativos.

O programa Minha Casa, Minha Vida esteve muito longe de ser uma política habitacional capaz de garantir o direito à moradia adequada aos mais pobres e de avançar na efetivação do direito à cidade. É possível sustentar que o maior programa da história do Brasil de construção de moradias subsidiadas com recursos públicos, operado por instituições financeiras (CAIXA/Banco do Brasil), sequer possa ser designado como política pública habitacional de interesse social, situando-se melhor no terreno das medidas macroeconômicas anticíclicas e de impulso ao setor da construção civil, cada vez mais envolto no sistema financeiro de títulos e créditos.

Nada indica que o governo ilegítimo de Michel Temer mudará o rumo dessa antirreforma urbana, antes pelo contrário, a tendência é um aprofundamento da produção do espaço subordinada aos interesses de mercado. Resta saber qual será a postura dos movimentos nacionais e entidades do campo da reforma urbana frente o novo governo. Os movimentos sociais que conformam o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) sempre estiveram sob influência do programa democrático popular petista e, com a eleição de Lula em 2002, priorizaram travar a luta no campo institucional. Qual será a postura desses movimentos frente ao novo cenário inaugurado com o golpe? Há perspectiva de que a pauta da reforma urbana seja oxigenada e fortalecida sob outras diretrizes, para além do direito à moradia reduzido ao direito de propriedade?

Desde a redemocratização, especialmente com a promulgação da Constituição da República de 1988, os movimentos e entidades do Fórum Nacional de Reforma Urbana lograram inúmeras conquistas com incidência significativa na legislação urbanística. Do ponto de vista estritamente normativo e institucional, o Brasil se situa numa posição da vanguarda quanto à previsão de instrumentos de política urbana que visam assegurar a função social da cidade. Temos, assim, leis e instrumentos urbanísticos avançados, mas que não se traduzem no plano da efetividade, sobretudo na vida dos pobres urbanos cuja segregação é cotidianamente reproduzida e ampliada pela ação do Estado-capital. Em resumo, as tentativas de resolver problemas sociais com legislação e planos foram muitas na história do urbanismo brasileiro. Falta, porém, atrelar esse aparato legal à realidade social brasileira e aliá-lo a um sistema democrático de gestão e controle. Sobretudo, é necessário uma agenda política que vise operacionalizar o que, de fato, promoveria uma reforma urbana estrutural: o controle fundiário e imobiliário, em vias de garantir sua função social.

é necessário uma agenda política que vise operacionalizar o que, de fato, promoveria uma reforma urbana estrutural: o controle fundiário e imobiliário, em vias de garantir sua função social.

A fragilidade do marco legal urbanístico conquistado pela luta dos movimentos da Reforma Urbana ficou evidente com a recente promulgação da Medida Provisória nº. 759/2016, que revogou os capítulos III e IV da Lei nº. 11.977/09, também considerada a lei geral da regularização fundiária. Numa canetada, os importantes capítulos dessa lei, que tratam da regularização fundiária, deixaram de ter vigência por meio de uma medida provisória cujos critérios de urgência e oportunidade são altamente questionáveis. Trata-se do retrocesso de inúmeros avanços conquistados.

Entretanto, apesar do pessimismo relativo ao contexto macropolítico nacional, materializado em medidas antidemocráticas e ameaça aos direitos sociais, embates simbólicos e potentes, bem como conquistas e vitórias contundentes das lutas urbanas no Brasil têm se dado de especial modo em defesa dos bens comuns no enfrentamento direto aos grandes projetos metropolitanos que seguem a lógica da cidade-empresa e atentam contra o direito à cidade. Em Belo Horizonte, temos os exemplos das lutas contra as operações urbanas Nova BH e da Izidora que ainda não saíram do papel anos após terem sido anunciadas pela prefeitura. E Belo Horizonte, apesar das suas singularidades, não é exceção. Outros exemplos de potentes resistências positivas pós-junho contra o urbanismo neoliberal são Estelita, no Recife, Parque Augusta, em São Paulo e Cais Mauá, em Porto Alegre.

Em muitas metrópoles no país se verificam resistências potentes e amplas redes de mobilização que, em alguma medida, têm logrado postergar ou mesmo obstruir projetos e intervenções estruturais, parcerias público-privadas e atos administrativos antidemocráticos que ameaçam os bens comuns. Lutas e resistências positivas que se difundem sob novas narrativas, princípios e formas organizativas, sobretudo a partir das jornadas de junho de 2013, podem ser apreendidas e analisadas sob o prisma do comum.

O comum é compreendido tanto como campo privilegiado de enfrentamento ao Estado-capital, ou seja, através das lutas em defesa dos bens comuns no contexto da cidade-empresa subjugada ao planejamento estratégico, quanto como expressão das novas formas organizativas das resistências na atualidade, cada vez mais conectadas em redes colaborativas, caracterizadas pelo desejo coletivo de democracia real, autonomia, horizontalidade, produção de afetos, novas subjetividades, relações e modos de existência não capitalistas. Vale notar que os movimentos de resistência cada vez mais se apropriam de plataformas e novos dispositivos tecnopolíticos para produzir e disseminar informações, um saber crítico compartilhado, fruto da inteligência de enxame colocada a serviço da transformação social.

Por um lado, o comum está ameaçado pela disseminação das PPPs no contexto da cidade-empresa, por outro, se abre como possibilidade para a propagação de resistências positivas (que já trazem consigo “a cidade que queremos”) e produção de novas subjetividades no seio da metrópole. Acredito que as resistências positivas contra grandes projetos que denotam a lógica da cidade-empresa conformam, na atualidade, importantes trincheiras na ação política dos novos movimentos urbanos.

A análise do fenômeno urbano marcado pelo paradigma do planejamento estratégico e da cidade-empresa, arquétipo do urbanismo neoliberal, está bem avançada. Dessa crítica ao planejamento estratégico não decorre nenhum saudosismo ao planejamento estatal rígido e funcionalista, mas sim a constatação de que as mutações operadas no planejamento urbano nos marcos do neoliberalismo expressam, em última instância, a impossibilidade do Estado, em simbiose com o capital, em responder à problemática urbana orientada pela efetividade da função social da cidade e pela garantia da gestão democrática. Nesse cenário, não nos cabe flertar com o Estado planejador de outrora, nosso papel não é outro senão apostar nas resistências positivas que estão logrando frear grandes projetos do urbanismo neoliberal.

não nos cabe flertar com o Estado planejador de outrora, nosso papel não é outro senão apostar nas resistências positivas que estão logrando frear grandes projetos do urbanismo neoliberal.

Portanto, tanto melhor voltar os olhos e apostar nas múltiplas resistências travadas no seio das metrópoles. É possível extrair grandes aprendizados delas, dos territórios insurgentes onde novas práticas de sociabilidade são experimentadas, a exemplo das ocupações, de todas as espécies, e da cultura viva que emerge das periferias autoconstruídas. Em suma, nunca foi tão necessária a palavra de ordem “nada a temer!”, ou seja, #ocupatudo.

Joviano Mayer

Advogado popular do Coletivo Margarida Alves, militante das Brigadas Populares, mestre e doutorando em arquitetura e urbanismo pela UFMG, pesquisador do grupo Indisciplinar UFMG
mayerjoviano@gmail.com

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