A falsa felicidade do neoliberalismo

A falsa felicidade do neoliberalismo

A falsa felicidade do neoliberalismo

O diagnóstico de depressão na crise da sociedade do consumo.

O neoliberalismo como movimento contemporâneo de ordem simbólica do capitalismo aparece como totalidade que estrutura as dimensões mais subjetivas da vida. A razão neoliberal e sua forma-de-vida decorrente indicam um sistema normativo que se desenvolve no seio do capitalismo, aprofundando-o. Esse princípio foi sintetizado pela própria Margareth Thatcher ao definir o objetivo do neoliberalismo: “mudar a alma e o coração”.

Assim, o neoliberalismo persiste porque é uma norma de vida que impõe um universo de competição generalizada e que cria circunstâncias globais para tal (tanto na escala do planeta como nos aspectos políticos, econômicos, sociais e subjetivos). Com isso, a lógica da concorrência passa a ser a norma de conduta e a empresa opera como o modelo de subjetivação hegemônico[1].

[1] Para mais, ver o livro de Dardot e Laval A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Boitempo, 2016).

O que acontece nessa perspectiva é a conformação da lógica empresarial como uma ‘ordem’ moral que é colada – a partir de vários expedientes – na subjetividade de cada indivíduo. Forma-se um espírito de empresa, que é o que garante o funcionamento da sociedade neoliberal. Como? A relação consigo próprio, a relação com seus familiares e amigos, e com qualquer outro indivíduo passa a ser operacionalizada a partir de uma lógica própria da empresa, como uma forma de ‘governo de si’, que passa a ser balizada a partir das práticas de mercado. O resultado desta óperação é ascensão do mercado como espaço de veridisdição, ou seja, de produção de verdades.[2]

O novo sistema de disciplina é fundamentado pela ideia de que o governo de si e dos outros se realiza a partir da estruturação do campo de ação, controlando o regime de desejo (pela recompensa, punição ou substituição do objeto).

Esse novo sistema de disciplina é fundamentado pela ideia de que o governo de si e dos outros se realiza a partir da estruturação do campo de ação, controlando o regime de desejo (pela recompensa, punição ou substituição do objeto). E toda a estruturação da ideologia serve para aceitar a instituição do mercado como a regra do jogo, capaz de implantar coerções de mercado que forçam o indivíduo a adaptar-se a ele.

A novidade do neoliberalismo é a radicalização e o aprofundamento da lógica capitalista de subjetivação conformada pelo mercado. Muitos situam o começo do neoliberalismo nos primeiros anos da década de 1970, mas cabe dar um passo atrás. Alguns anos antes, o mundo efervescia contra as estruturas disciplinares do capitalismo – o maio de 1968 francês talvez se configure, dentre essas explosões, como a que ganhou maior destaque. Acontece aí talvez o ponto de inflexão com a apresentação de novas demandas por parte do corpo social que foram capturadas dentro do regime do Gozo e da circulação de afetos no capitalismo. Foi talvez nesse momento que a ordem simbólica se reorganizou em uma nova constelação.

[2] Argumento desenvolvido por Foucault em O nascimento da Biopolítica (Martins Fontes, 2008).

Se os séculos XIX e a primeira metade do século XX eram marcados por rígidas estruturas disciplinares pelas quais o superego/supereu[3] interditava os indivíduos, gerando assim a forma clássica do sofrimento que Freud captou por meio da ideia de histeria e de outras neuroses, o neoliberalismo traz consigo uma forma muito específica de organizar os afetos e os sofrimentos da sociedade. Na contemporaneidade, o supereu aparece como um imperativo de gozo. A consequência paradoxal e trágica é uma corrida desenfreada ao gozo que acaba, evidentemente, na impossibilidade de satisfação, pois o supereu ligado ao registro real é uma instância distinta da lei reguladora, referida ao registro simbólico, e exige cada vez mais.  O supereu ligado ao registro real veicula uma lei insana, que não oferece uma medida ao gozo, mas incita a esse mesmo gozo.

O neoliberalismo inaugura uma forma de subjetivação organizada pelo imperativo do gozo, mas um gozo que nunca se realiza plenamente, provocando uma espécie de expropriação do próprio gozo. O que o neoliberalismo promove é uma articulação de sentidos que determina uma forma bem específica de circular os afetos.

A sociedade do consumo, do excesso, do iphone 3 (3G e 3GS), 4, 5, 6, 7 pode ser descrita como A Sociedade do Gozo. O supérfluo, o descartável, o excesso são as marcas dessa relação.

O mundo neoliberal é marcado por uma exigência de satisfação irrestrita. A sociedade do consumo, do excesso, do iphone 3 (3G e 3GS), 4, 5, 6, 7 pode ser descrita como A Sociedade do Gozo. O supérfluo, o descartável, o excesso são as marcas dessa relação, e esses “aparelhinhos mágicos”, os Gadgets, ilustram bem a economia do gozo. Mas, diante das contradições imposta pelo consumo desvairado – tanto no nível material como o simbólico, uma nova constelação para o circuito de subjetivação se forma: o consumo consciente. Biodegrádavel, verde, com doações para os países do terceiro mundo.

[3] Atualmente, os tradutores da obra de Jacques Lacan têm optado pela palavra supereu em detrimento de superego (termo reservado à obra de Freud). O supereu inclui tanto a voz que proíbe, a voz da lei, reguladora, simbólica, quanto a voz do gozo, real, obscena e feroz, que veicula a lei da pulsão de morte.

As mercadorias, diante do vazio que o consumo desvairado proporcionou desde as décadas finais de 1970, permitiu uma reorganização simbólica para que o ato egóico do consumo já contenha o preço do seu oposto – carrega um adicional, uma espécie de caridade. Cabe verificar a lógica circular a que isso acaba levando: o consumo é percebido como o próprio remédio para o consumo – mas no fim, é apenas mais daquilo que causa o próprio problema. Assim, a mercadoria vem marcada com o seu excesso. O imperativo do gozo tenta ser estancado como que por uma sutura artificial – a caridade. E o problema da mercadoria, seu fetichismo fantasmagórico e sua função no circuito da acumulação, passa despercebido e intocável. A saída ideológica para o problema do consumismo é, invariavelmente, o próprio consumismo – mas agora mais excludente, embora cool; agora mais consciente, embora continue profundamente alienado.

A saída ideológica para o problema do consumismo é, invariavelmente, o próprio consumismo – mas agora mais excludente, embora cool.

E talvez sua representação esteja, exatamente – e ironicamente – na capital da moda. Na praça da estação central de Milão, é possível ver uma grande maçã branca – assim como a da Apple, a representação do imperativo consumista do gozo inconsequente – só que ela está suturada por um complexo sistema de grades e ferros que sustentam um implante, uma prótese. Mas o artista, Michelangelo Pistoletto, fez questão de deixar à mostra que ela não completa perfeitamente a fruta, que o material inserido no corpo é artificial e nunca será completo novamente. E o problema não se soluciona.

Fig1. Para uma discussão completa sobre o assunto, ver o vídeo promovido pela RSA Animate em parceria com Slavoj Žižek

Com isso, o capitalismo passa por um reordenamento de sua constelação simbólica ao longo do século XX, que consolidou uma nova forma de subjetivação ligada ao ideal de felicidade. Ela se torna um imperativo para a vida (e para o próprio capitalismo). Assim, a felicidade é lançada como objetivo e passa a ficar evidente em cada espaço – passa a existir uma necessidade de sua afirmação positiva. Todavia, há aí um logro, e a promessa de felicidade a partir dos objetos de consumo (e de se fazer consumível segundo os padrões ditados pelo Capitalismo) não se realiza. Assim, a felicidade nunca é completa, mas sempre falida.

A depressão é o resultado paradoxal do imperativo categórico da contemporaneidade de busca da felicidade.

Fig2. Praça da estação central de Milão.
La Mela Reintegrata, Michelangelo Pistoletto.
Foto: Thiago Canettieri

A consequência disso é o fato – documentado pela própria Organização Mundial da Saúde – de que a depressão é o resultado paradoxal do imperativo categórico da contemporaneidade de busca da felicidade. Assim, não seria errado afirmar que vivemos numa sociedade da insatisfação administrada, na qual “o empuxo de produção e desempenho vem sendo suplementado por ingestão de substâncias, legais[4] e ilegais, em forma de doping tolerado, senão estimulado em nome de resultados.” Dessa forma, para o neoliberalismo, diante da busca incessante da felicidade administrada nunca realizada, há necessidade de regular também o sofrimento, como experiência do sujeito.

[4] Principalmente os psicofármacos, com destaque para os chamados “antidepressivos”.

A arte também oferece diagnósticos desse sentido, como o cineasta, escritor e poeta Paolo Pasolini identificou em seus livros Escritos Corsários e Cartas Luteranas. Nos anos 1970, ele já identificava o que ele chamou de “mutação antropológica” da sociedade italiana em direção ao o que ele chamava de um “novo fascismo” imposto pela globalização. O artista acreditava que esse processo estava criando um influxo semiótico por meio da publicidade de massas e da televisão, criando uma figura que chamou de “os sem futuro”: eram jovens com uma acentuada tendência à infelicidade, com pouca raiz cultural ou territorial, e que assimilavam de maneira automatizada, sem distinção de classe, os valores e a estética promovidos pelos novos tempos de consumo.

O que se tem, portanto, como resultado desse modo de socialização autodepreciativo amarrado a uma ideia de felicidade plasmado pelo consumo é o vertiginoso aumento do quadro de patologias psíquicas, marcadamente a ansiedade, a depressão e até o suicídio. Esse cenário parece ser uma constante em todo o mundo e está estreitamente vinculado às condições de hipercompetição e a precarização promovida pelo ethos neoliberal. Os jovens, impelidos a buscar um emprego que não conseguirão encontrar, exceto em condição de precariedade e subsalário, sofrerão consequências emocionais, como ansiedade, depressão e paralisia do desejo, estabelecendo, muitas vezes, com o outro, uma relação de competição, transformando-os em inimigos.  

Os jovens, impelidos a buscar um emprego que não conseguirão encontrar, sofrerão consequências emocionais, como ansiedade, depressão e paralisia do desejo, estabelecendo, muitas vezes, com o outro, uma relação de competição, transformando-os em inimigos.

Até mesmo uma organização como a OMS alerta para esse cenário. A depressão é uma das doenças que mais cresce (20% na última década), e estima-se que afete 4,5% da população mundial (o Brasil está acima da média, com quase 6%). Ainda, é uma das doenças que mais mata no mundo. Atrás apenas das patologias cardiovasculares, a depressão alcançou o patamar de maior causa de incapacitação no mundo. O suicídio também cresceu, em especial entre os jovens de 15 e 29 anos (10% na última década) e se tornou a principal causa de morte desta faixa etária. Para entender o cenário de epidemia dessas doenças mentais, deve-se levar em conta a forma de sociabilidade que se construiu diante do movimento do capitalismo tardio.

E essa situação só parece aumentar diante da crise estrutural do capital. Frente aos limites de sobreacumulação, a cartilha neoliberal é imprimida com ainda mais força sobre as populações, como no golpe judiciário-parlamentar vivido no Brasil e voltado a passar reformas para atender interesses dos capitalistas em busca de oportunidades de investimentos mais vantajosas que, necessariamente, significam nas entrelinhas retirada de direitos. Por exemplo, a reforma trabalhista que o Brasil se orgulha em apresentar como solução para a crise, inspirada naquela realizada na Espanha, não leva em conta toda a história – ou, perversamente, a esconde. O resultado da reforma na Espanha foi o aumento do desemprego entre os jovens (chegando a quase 60% do grupo etário) e bateu outro recorde – por três anos consecutivos: o do índice de suicídio.

Fig.3 Foto por Lucca Mezzacappa

Este é o retrato do medonho capitalismo tardio contemporâneo que o Brasil pretende copiar. No nível do discurso, é colocada a dimensão da felicidade possível de ser acessada pelo consumo. Ainda que essa felicidade seja fadada ao fracasso, marcada por um imperativo de um ente externo e abstrato, a crise do capital obriga o desmantelamento até do mínimo de consumo, tendo como único resultado possível o aumento, ainda mais vertiginoso, do alcance pandêmico das normalopatias neoliberais.

Fig.4 Foto por Lucca Mezzacappa
Thiago Canettieri

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles.
thiago.canettieri@gmail.com

Textos Relacionados

O neoliberalismo e seus normalopatas

O neoliberalismo e seus normalopatas

Depois dos frankensteins, esquizoides errantes sem fronteiras, e dos fantasmas alienados que vagam da pressão, descompressão e depressão, chegamos finalmente aos zumbis que hoje se tornaram nossa mais próxima normalopatia.

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Entenda como a CPI da PBH Ativos pode ser suspensa por manobras políticas do ex-prefeito Marcio Lacerda, mesmo com relatório apontando irregularidades.

Medida Provisória 759: gestão capitalista das Cidades, Estado de Exceção e o sistema do Golpe de 2016

Medida Provisória 759: gestão capitalista das Cidades, Estado de Exceção e o sistema do Golpe de 2016

Medida Provisória 759: gestão capitalista das Cidades, Estado de Exceção e o sistema do Golpe de 2016

Como a MP 759 de regulamentação fundiária é inconstitucional e visa manter a relação de dominação da Casa Grande sobre as maiorias através do endividamento da população.

No apagar das luzes de 2016, ano em que o Brasil sofreu um Golpe de Estado, Michel Temer, ilegitimamente empossado presidente, aprovou a Medida Provisória 759. A norma de 22 de dezembro de 2016, provoca um desmonte do sistema de regularização fundiária urbana e rural, regula mecanismos de alienação de imóveis da União favorecendo grandes proprietários, dispõe sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, favorecendo grileiros e possibilitando o avanço do capital sobre o meio ambiente, dentre outras providências danosas ao povo brasileiro.

A MP se insere no rol de medidas antidemocráticas que visam aprofundar no país o modelo neoliberal de apropriação dos nossos corpos e territórios. Junto com outras medidas como as reformas da previdência e trabalhista, a limitação dos gastos públicos e a entrega de campos do pré-sal brasileiro, a MP emerge da crise política brasileira e se sustenta nos pilares sagrados da propriedade privada, do sistema financeiro e da desconstitucionalização do pacto político de 1988, colocando fim ao arranjo político da Nova República.

A MP se sustenta nos pilares sagrados da propriedade privada, do sistema financeiro e da desconstitucionalização do pacto político de 1988, colocando fim ao arranjo político da Nova República.

Tal norma surge de um ato inconstitucional, uma vez que contraria o artigo 62 da Constituição Federal de 1988, que prevê que o Presidente da República pode, somente em caso de relevância e urgência, adotar Medidas Provisórias com força de lei. No caso da MP 759, há uma inconstitucionalidade expressa, já que não há relevância e urgência alguma na regulação da matéria a não ser a busca pela facilitação da gestão capitalista do campo e das cidades.

Além disso, a MP foi construída de forma unilateral pelo Governo Federal, que não consultou os principais agentes políticos envolvidos nos processos de regularização fundiária, tais como os movimentos sociais, outros entes da Federação (Estados e Municípios), órgãos institucionais de Política Urbana e Agrária dentre outros atores.

O Governo Golpista, ao fazer isso, aprofundou o Estado de Exceção no âmbito da Questão Urbana, ferindo de morte o princípio da gestão democrática das cidades, transfigurado no princípio da gestão capitalista das cidades.

Todo um processo de décadas de construção minimamente democrática da legislação jurídico-urbanística brasileira e de debate público foi desconsiderado, uma linha temporal que teve um marco importante no processo Constituinte de 1988 e que logrou aprovar o primeiro capítulo de Política Urbana da história constitucional brasileira (Arts. 182 e 183 da CF-88), passando depois pela promulgação do Estatuto das Cidades (Lei 10.257-2001), dentre outras legislações importantes.

A MP revoga uma série de dispositivos legais, tais como parte da Lei 11.977/2009, do Minha Casa, Minha Vida, no que se refere às normas de regularização fundiária de assentamentos urbanos. Além disso, acaba com princípios expressos do Estatuto das Cidades (Lei 10.257-2001),  que regem a Política e o desenvolvimento urbano e paralisa procedimentos de regularização fundiária que já estavam em curso pela lei do Minha Casa, Minha Vida.[2]

Na MP 759, aparece a figura da Regularização Fundiária Urbana – Reurb que prevê, dentre os seus objetivos, a ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, a promoção da integração social e a geração de emprego e renda, a garantia do direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas e o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade de forma a garantir o bem estar de seus habitantes. No entanto, na exposição de motivos da MP 759, aparece o real objetivo de tal espécie normativa: “É que o reconhecimento, pelo Poder Público, dos direitos reais titularizados por aqueles que informalmente ocupam imóveis urbanos, permite que estes imóveis sirvam de base para investimento do capital produtivo brasileiro, à medida que poderão ser oferecidos em garantia de operações financeiras, reduzindo custos de crédito, por exemplo.”[3]

O Senador golpista Romero Jucá, relator da MP 759, deixa claro em entrevista à TV Senado em 25/04/2017 que o objetivo da norma é “(…) No sentido de isso poder representar também um fortalecimento à microeconomia, porque na hora em que você tem uma terra regularizada, essa terra pode ser dada em garantia para que haja produção”[4]. Ou seja, a titularidade da propriedade facilitaria o crédito, mas gera o endividamento das famílias empobrecidas e o enriquecimento dos banqueiros pela movimentação do mercado financeiro, além de facilitar  a expulsão e gentrificação das pessoas de suas casas pela força da especulação imobiliária.

A titularidade da propriedade facilitaria o crédito, mas gera o endividamento das famílias empobrecidas e o enriquecimento dos banqueiros pela movimentação do mercado financeiro

Tal linha política nada mais é que a malfadada tentativa de aplicação no Brasil das ideias de Hernando de Soto, economista peruano, para quem o acesso à ordem fundiária formal com consequente acesso ao crédito pode fomentar o desenvolvimento econômico, combater a pobreza e aquecer a economia. Frisa-se que tal proposição empreende uma gestão financeira da regularização fundiária por via da atribuição de títulos de propriedade individual aos ocupantes que a partir daí se integrariam ao mercado financeiro formal.

A financeirização das terras é um fenômeno que vem se tornando cada vez mais frequente nas cidades brasileiras. Um exemplo que evidencia esse fenômeno são metrópoles como Belo Horizonte, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, onde terrenos municipais, fundos públicos e os Impostos sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) foram transferidos para a gestão de empresas criadas pelas Prefeituras, que movimentam o mercado imobiliário a partir das dívidas e do patrimônio municipal. O mesmo ocorre hoje no nível estadual em Minas Gerais, onde o governador Fernando Pimentel apresentou um Projeto de Lei (PL) 4.135/17 para transferir imóveis públicos estaduais para um fundo e a venda de cotas desse fundo para investidores, possibilitando a captação de recursos e financiamento de investimento e capital de giro.

Desde a Lei de Terras de 1850, é sacramentada a propriedade privada no Brasil favorecendo grileiros e latifundiários e restringido o acesso à terra em um período pós-abolição da escravidão. Em igual sentido, a MP 759 não observa, de fato, as reais necessidades de quem tem o seu direito à moradia sonegado, mas preocupa-se com a engrenagem de reprodução financeira da terra. Assim sendo, sacraliza ainda mais a propriedade privada da terra, reforçando uma injustiça histórica e a readequa às necessidades especulativas do mercado financeiro.

A MP 759 não observa as reais necessidades de quem tem o seu direito à moradia, mas preocupa-se com a engrenagem de reprodução financeira da terra.

E de nada adianta distribuir títulos de propriedade de um lado e, de outro, aprovar a “PEC do fim do mundo”, hoje Emenda Constitucional 95-2016. Qual justiça social se busca ao distribuir títulos de propriedade e, ao mesmo tempo, congelar os investimentos públicos reduzindo recursos para áreas como educação e saúde[5]?

Nesse ponto, é preciso abordar o sistema do golpe de 2016 que busca essencialmente aprofundar a superexploração dos trabalhadores e mitigar a soberania nacional: transformar cidadãos em proprietários e proprietários em consumidores, abrir flanco para a apropriação e financeirização da terra. Esse é o verdadeiro plano dos golpistas. Ele se desdobra em ataques diretos aos direitos trabalhistas e previdenciários e se expressa, também, territorialmente ao sonegar investimentos públicos em serviços essenciais que poderiam reduzir a segregação socioespacial nas periferias brasileiras.

A questão de fundo das disputas territoriais hoje no Brasil é que a concentração fundiária está atrelada à concentração do poder político. A propriedade funciona nesse cenário como relação social de dominação da Casa Grande sobre as maiorias que não irão efetivar seus direitos sociais com essa política de regularização fundiária fundada na gestão capitalista das cidades.

A propriedade funciona como relação social de dominação da Casa Grande sobre as maiorias que não irão efetivar seus direitos sociais.

Titular propriedades sem a garantia de concretização dos direitos fundamentais, notadamente os direitos a educação, saúde, lazer, trabalho, alimentação, transporte público, e com o intuito apenas de fomentar o mercado de créditos é fazer uma anti-Reforma Urbana. Fazer uma regularização fundiária sem enfrentar a apropriação capitalista das cidades e sem recuperar as mais valias fundiárias geradas por investimentos públicos no espaço urbano é manter o sistema de aliança entre capital-Estado na reprodução das cidades.

Diante desse cenário, é preciso afirmar que a luta de classes se expressa espacialmente e ganha relevo nas lutas periféricas enraizadas no cotidiano do povo trabalhador. A resistência dos territórios periféricos aos golpes aliada à luta pelo direito à cidade, nesse cenário, é estratégica.

[5] Leia mais sobre a “PEC do fim do mundo” e a financeirização das cidades no InDebate:

O neoliberalismo determinando a dinâmica escolar
http://indebate.indisciplinar.com/2017/03/28/o-neoliberalismo-determinando-a-dinamica-escolar/

A financeirização das políticas públicas e da gestão nas cidades
http://indebate.indisciplinar.com/2017/02/16/a-financeirizacao-das-politicas-publicas-e-da-gestao-nas-cidades/

Luiz Fernando Vasconcelos

Mestre e doutorando em Direito pela UFMG, advogado popular e militante das Brigadas Populares em Minas Gerais.

Isabella Gonçalves Miranda

Doutoranda em Ciência Política pela UFMG, assessora em co-vereança do mandato das “Muitas: pela Cidade que Queremos” e militante das Brigadas Populares em Minas Gerais.

Textos Relacionados

O neoliberalismo e seus normalopatas

O neoliberalismo e seus normalopatas

Depois dos frankensteins, esquizoides errantes sem fronteiras, e dos fantasmas alienados que vagam da pressão, descompressão e depressão, chegamos finalmente aos zumbis que hoje se tornaram nossa mais próxima normalopatia.

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Entenda como a CPI da PBH Ativos pode ser suspensa por manobras políticas do ex-prefeito Marcio Lacerda, mesmo com relatório apontando irregularidades.

A reforma do ensino médio e a perpetuação do golpe

A reforma do ensino médio e a perpetuação do golpe

A reforma do ensino médio e a perpetuação do golpe

Como a reforma do ensino médio e o projeto de cobranças de mensalidade em Institutos Federais antecipam os movimentos de financeirização da educação

O ensino médio brasileiro é considerado um funil para o sucesso da universalização da educação no país. 39,6% dos jovens entre 15 e 17 anos não estão na escola e 28,2% compõem a taxa de distorção idade-série, calculada pensando que a criança entra no 1º ano do ensino fundamental com 5-6 anos (realidade de quase 98% de nossas crianças) e deveria chegar ao ensino médio entre 14 a 16 anos[1]. Diversos indicadores confirmam que o fracasso do ensino médio se deve à incapacidade do curriculum em lidar com a realidade dos jovens brasileiros, seus interesses e objetivos escolares. O mapa abaixo, retirado do documento do Censo Escolar 2016, demonstra como a distorção idade-série acompanha a realidade socioeconômica do Brasil, confirmando quais jovens são expulsos de nossas escolas.

[1] Dados do Censo Escolar 2016 que podem ser acessados em http://portal.inep.gov.br/censo-escolar

Apesar destes dados alarmantes, a reforma do Ensino Médio, determinada pelo presidente não eleito, foi rejeitada de forma unânime por professores e pedagogos. Para entendermos as razões que fazem o corpo docente brasileiro se posicionar sistematicamente contra o atual governo, é preciso pensarmos nos impactos que a ruptura com a democracia trouxe para o país. Além da falta de clareza sobre o orçamento disponível para a reforma, o governo encerrou a Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio, presidida pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que desde 2013 reunia diversos professores e pesquisadores para pensar os termos da necessária reforma.

A MP do ensino médio é um mecanismo de exceção, anulando, assim, a necessidade de discussão no poder legislativo.

Mapa 1: Taxa de distorção idade-série do ensino médio por municipio / 2016

No site da Câmara dos Deputados, lemos que “A Medida Provisória (MP) é um instrumento com força de lei, adotado pelo presidente da República, em casos de relevância e urgência”[2]. É um mecanismo de exceção usado quando não se pode esperar o debate público para que a ação seja iniciada, cuja competência de apresentação é dada exclusivamente ao poder executivo, anulando, assim, a necessidade de discussão do poder legislativo. Certamente, a organização curricular das escolas brasileiras, proposta pela primeira vez no país, não configura um caso de urgência, e a escolha por pô-la em prática através de medida provisória só confirma o autoritarismo desse governo.

Durante a presidência de Dilma, a Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio tinha uma escala de reuniões e já debatia um Projeto de Lei[3], além de trabalhar na criação de uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC)[4]. Com o golpe parlamentar-jurídico-midiático que a afastou, levou Temer para a presidência e Mendonça Filho para o Ministério da Educação, as atividades da BNCC foram paralisadas e todos os debates sobre os rumos do ensino médio foram decididos arbitrariamente e em meio a medidas que reforçam o desinteresse do governo por uma educação pública de qualidade, como a PEC 241/55. Atualmente, no site da BNCC, constam apenas as atas das últimas reuniões, de agosto de 2016, o que deixa os pesquisadores apreensivos sobre quem está responsável por organizar o curriculum que deveria entrar em vigor no próximo ano. Importante dizer que a BNCC do ensino infantil e fundamental foi aprovada pelo MEC essa semana, e a do ensino médio teve sua data prorrogada por tempo indeterminado.

Junto a isso, o governo golpista segue anulando outros importantes instrumentos para a promoção da escola e a aproximação dos jovens do cotidiano escolar, como a Olimpíada de Matemática e o concurso de redação “Construindo a igualdade de gêneros”, que não têm verba confirmada para este ano. Além disso, uma das primeiras medidas de Temer foi convidar a tucana Maria Ines Fini, que trabalhou com FHC e Serra, para ocupar a presidência do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Um ano depois de sua posse, o banco de dados do ENEM, forma pela qual as questões eram produzidas e avaliadas, foi desconstruído, e a promessa é de drásticas mudanças no exame deste ano. Maria Helena Guimarães de Castro, que tem sido parceira de Fini desde o governo FHC e atualmente ocupa o cargo de secretária executiva do MEC, afirmou em uma reunião realizada no dia 16/02, que as universidades brasileiras precisarão cobrar mensalidade para se adequar ao “mundo real”[5], decisão que provavelmente atingiria também os Institutos Federais, onde estão matriculados 12% dos estudantes de ensino médio e cuja média no ENEM é superior à das escolas particulares[6]. Embora veículos da imprensa tradicional tenham dito que suas falas, publicadas pelo Jornal do Professor, foram deturpadas, Castro se recusou a se pronunciar publicamente sobre o tema.

Ao mesmo tempo em que a educação pública vai sendo desmontada, a iniciativa privada vê nas escolas brasileiras uma ótima oportunidade de investimento

Ao mesmo tempo em que a educação pública vai sendo desmontada, a iniciativa privada vê nas escolas brasileiras uma ótima oportunidade de investimento. Em um artigo publicado em 19 de março no jornal La Vanguardia, de Barcelona[7], Andy Robinson demonstra como o interesse da Fundação Lemann na educação (o grupo, que acaba de inaugurar a Escola Eleva no Rio de Janeiro, mantém a Fundação Estudar, destinada a conceder bolsas para estudantes brasileiros) corre paralelamente a outros investimentos de seu fundador, Paulo Lemann, dono de marcas como a Budweiser e Burger King e considerado atualmente o homem mais rico do Brasil, com um patrimônio de mais de 25.000 milhões de euros. Lemann, que já é acionista de vários institutos de educação superior no país, acaba de direcionar 80 milhões de reais para a educação básica, cujas ações são inauguradas pela Escola Eleva. Como Robinson mostra, ao lado de Lemann, outros grandes grupos, como o Bahema e o SEB, compraram ações de escolas da brasileiras. Vários acionistas dos três grupos são colaboradores do MBL (Movimento Brasil Livre).

A deposição de uma presidenta democraticamente eleita através um processo de impeachment sem crime de responsabilidade e o cotidiano de decisões arbitrárias e contrárias ao desejo popular e ao plano de governo escolhido pela população configuram o fim de um período democrático no Brasil. Certamente não é coincidência que as escolas sejam alvo desse ataque, já que, além de uma oportunidade de investimento quando a política de separação das classes sociais se torna determinante, o espaço representa a abertura da convivência social e do debate político.

Fernanda Dusse

Fernanda Dusse

Professora do CEFET-MG, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFMG, com enfoque em literaturas contemporâneas e a relação entre estética, ética e política.
fernandadusse@gmail.com

Textos Relacionados

O neoliberalismo e seus normalopatas

O neoliberalismo e seus normalopatas

Depois dos frankensteins, esquizoides errantes sem fronteiras, e dos fantasmas alienados que vagam da pressão, descompressão e depressão, chegamos finalmente aos zumbis que hoje se tornaram nossa mais próxima normalopatia.

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Entenda como a CPI da PBH Ativos pode ser suspensa por manobras políticas do ex-prefeito Marcio Lacerda, mesmo com relatório apontando irregularidades.

#Ocupatudo: notas conjunturais em torno da questão urbana

#Ocupatudo: notas conjunturais em torno da questão urbana

#Ocupatudo: notas conjunturais em torno da questão urbana

Por uma reforma urbana popular de resistência positiva contra a cidade-empresa neoliberal.

Imagem ocupações CEFET-MG

O ano 2017 se inicia com muitas incertezas e insegurança no tocante às políticas públicas no Brasil. O argumento da crise – indissociável do discurso que sustenta a governabilidade neoliberal na atualidade – busca legitimar medidas drásticas de contenção de investimentos públicos por parte do governo federal, a mais grave delas consubstanciada na aprovação da PEC 55, com graves implicações no orçamento público para as gerações presentes e futuras.

Nem mesmo as potentes ocupações estudantis de centenas de escolas, institutos federais e universidades por todo o país foram suficientes para barrar a aprovação da PEC 55. Independente da derrota especificamente quanto à aprovação da proposta de emenda constitucional, as ocupações estudantis serviram para a experimentação de novas formas de resistência positiva, auto-organizadas, e deram um fôlego novo ao movimento estudantil. Deixaram como maior legado o dispositivo de mobilização que julgo ser o mais adequado ao nosso conturbado momento histórico: #ocupatudo.

A palavra de ordem “ocupa tudo” não significou, aqui, tomar assento nas estruturas pseudodemocráticas para fins de tentar influir nos rumos da política institucional.

Diferentemente de outrora, no marco dos programas democráticos populares, a palavra de ordem “ocupa tudo” não significou, aqui, tomar assento nas estruturas pseudodemocráticas para fins de tentar influir – se é que hoje ainda há alguma abertura para isso – nos rumos da política institucional. Os canais de participação que já eram frágeis antes, agora, após o impeachment, ao menos no âmbito federal, tornaram-se completamente inócuos e desacreditados, a exemplo do Conselho Nacional das Cidades, o que também reflete uma crise de representação na qual a esfera instituída não é capaz de dar vazão aos desejos expressos nas lutas e resistências encampadas frente ao Estado-capital. Crise de representação, que já era evidente durante as jornadas de junho de 2013, quando o poder instituído, em todos os níveis, ficou atônita diante da multidão que protestava nas ruas sem saber com quem nem como negociar as pautas reivindicadas nos cartazes e nos corpos dos manifestantes.

As jornadas de junho performaram por contágio político reivindicações caras à cidade e deixaram explícito que as pautas trazidas às ruas estavam em sua maioria implicadas com a vida nas metrópoles. Mas as reivindicações dos(as) manifestantes não cabiam nos mecanismos tradicionais de negociação política e coube ao poder instituído apenas recuar, especialmente quanto ao aumento das tarifas do transporte público. As jornadas de junho e seus desdobramentos trouxeram outras narrativas, outras estéticas e outros modos de resistir que destoavam dos movimentos sociais e sindicais tradicionais, bem como dos movimentos pela reforma urbana, boa parte dos quais presos à institucionalidade e à política pública de provimento habitacional (programa Minha Casa, Minha Vida), tal como descrito por Pedro Arantes no texto “Da (Anti) Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades” (2013).

Ante a complexidade do atual cenário político, envolto numa crise cujo fim ainda parece distante, é preciso reconhecer que nós, enquanto agentes do campo de luta pela reforma urbana, fomos derrotados, muito antes da consumação do impeachment: é preciso que se reconheça isso. As bandeiras da reforma urbana sucumbiram perante o neodesenvolvimentismo atrelado à cartilha do urbanismo neoliberal que privilegia a casa-mercadoria e as parcerias público-privadas a despeito da gestão democrática das cidades.

As bandeiras da reforma urbana sucumbiram perante o neodesenvolvimentismo atrelado à cartilha do urbanismo neoliberal que privilegia a casa-mercadoria e as parcerias público-privadas a despeito da gestão democrática das cidades.

Nossas cidades estão cada vez mais reféns dos carros e não se vislumbra no horizonte próximo nenhuma inflexão em favor de outro paradigma de mobilidade urbana. A grande pauta que gerou a fagulha de junho em 2013 segue latente; ano após ano testemunhamos os aumentos abusivos das tarifas do transporte público. Belo Horizonte ostenta a maior tarifa do país: R$ 4,05 é o valor da tarifa nos ônibus municipais. Por outro lado, o paradigma da mobilidade privada individual motorizada se aprofunda e se comporta como um dos mecanismos de subjetivação individualista mais eficazes em detrimento do espírito de coletividade e da solidariedade: nos congestionamentos que se alastram em todas as metrópoles brasileiras são todos contra todos na batalha fratricida por espaço e locomoção.

O programa democrático popular encampado pelo PT e defendido pelos movimentos e entidades nacionais da Reforma Urbana não apenas não realizou o que prometeu, mas deu no seu contrário, numa antirreforma, como afirma Pedro Arantes no mencionado texto, ou seja, em um aprofundamento da privatização/mercantilização das cidades e do paradigma rodoviarista, da disseminação das parcerias público-privadas na produção do espaço com diversos projetos de expansão e requalificação urbana baseados em dados quantitativos e não qualitativos.

O programa Minha Casa, Minha Vida esteve muito longe de ser uma política habitacional capaz de garantir o direito à moradia adequada aos mais pobres e de avançar na efetivação do direito à cidade. É possível sustentar que o maior programa da história do Brasil de construção de moradias subsidiadas com recursos públicos, operado por instituições financeiras (CAIXA/Banco do Brasil), sequer possa ser designado como política pública habitacional de interesse social, situando-se melhor no terreno das medidas macroeconômicas anticíclicas e de impulso ao setor da construção civil, cada vez mais envolto no sistema financeiro de títulos e créditos.

Nada indica que o governo ilegítimo de Michel Temer mudará o rumo dessa antirreforma urbana, antes pelo contrário, a tendência é um aprofundamento da produção do espaço subordinada aos interesses de mercado. Resta saber qual será a postura dos movimentos nacionais e entidades do campo da reforma urbana frente o novo governo. Os movimentos sociais que conformam o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) sempre estiveram sob influência do programa democrático popular petista e, com a eleição de Lula em 2002, priorizaram travar a luta no campo institucional. Qual será a postura desses movimentos frente ao novo cenário inaugurado com o golpe? Há perspectiva de que a pauta da reforma urbana seja oxigenada e fortalecida sob outras diretrizes, para além do direito à moradia reduzido ao direito de propriedade?

Desde a redemocratização, especialmente com a promulgação da Constituição da República de 1988, os movimentos e entidades do Fórum Nacional de Reforma Urbana lograram inúmeras conquistas com incidência significativa na legislação urbanística. Do ponto de vista estritamente normativo e institucional, o Brasil se situa numa posição da vanguarda quanto à previsão de instrumentos de política urbana que visam assegurar a função social da cidade. Temos, assim, leis e instrumentos urbanísticos avançados, mas que não se traduzem no plano da efetividade, sobretudo na vida dos pobres urbanos cuja segregação é cotidianamente reproduzida e ampliada pela ação do Estado-capital. Em resumo, as tentativas de resolver problemas sociais com legislação e planos foram muitas na história do urbanismo brasileiro. Falta, porém, atrelar esse aparato legal à realidade social brasileira e aliá-lo a um sistema democrático de gestão e controle. Sobretudo, é necessário uma agenda política que vise operacionalizar o que, de fato, promoveria uma reforma urbana estrutural: o controle fundiário e imobiliário, em vias de garantir sua função social.

é necessário uma agenda política que vise operacionalizar o que, de fato, promoveria uma reforma urbana estrutural: o controle fundiário e imobiliário, em vias de garantir sua função social.

A fragilidade do marco legal urbanístico conquistado pela luta dos movimentos da Reforma Urbana ficou evidente com a recente promulgação da Medida Provisória nº. 759/2016, que revogou os capítulos III e IV da Lei nº. 11.977/09, também considerada a lei geral da regularização fundiária. Numa canetada, os importantes capítulos dessa lei, que tratam da regularização fundiária, deixaram de ter vigência por meio de uma medida provisória cujos critérios de urgência e oportunidade são altamente questionáveis. Trata-se do retrocesso de inúmeros avanços conquistados.

Entretanto, apesar do pessimismo relativo ao contexto macropolítico nacional, materializado em medidas antidemocráticas e ameaça aos direitos sociais, embates simbólicos e potentes, bem como conquistas e vitórias contundentes das lutas urbanas no Brasil têm se dado de especial modo em defesa dos bens comuns no enfrentamento direto aos grandes projetos metropolitanos que seguem a lógica da cidade-empresa e atentam contra o direito à cidade. Em Belo Horizonte, temos os exemplos das lutas contra as operações urbanas Nova BH e da Izidora que ainda não saíram do papel anos após terem sido anunciadas pela prefeitura. E Belo Horizonte, apesar das suas singularidades, não é exceção. Outros exemplos de potentes resistências positivas pós-junho contra o urbanismo neoliberal são Estelita, no Recife, Parque Augusta, em São Paulo e Cais Mauá, em Porto Alegre.

Em muitas metrópoles no país se verificam resistências potentes e amplas redes de mobilização que, em alguma medida, têm logrado postergar ou mesmo obstruir projetos e intervenções estruturais, parcerias público-privadas e atos administrativos antidemocráticos que ameaçam os bens comuns. Lutas e resistências positivas que se difundem sob novas narrativas, princípios e formas organizativas, sobretudo a partir das jornadas de junho de 2013, podem ser apreendidas e analisadas sob o prisma do comum.

O comum é compreendido tanto como campo privilegiado de enfrentamento ao Estado-capital, ou seja, através das lutas em defesa dos bens comuns no contexto da cidade-empresa subjugada ao planejamento estratégico, quanto como expressão das novas formas organizativas das resistências na atualidade, cada vez mais conectadas em redes colaborativas, caracterizadas pelo desejo coletivo de democracia real, autonomia, horizontalidade, produção de afetos, novas subjetividades, relações e modos de existência não capitalistas. Vale notar que os movimentos de resistência cada vez mais se apropriam de plataformas e novos dispositivos tecnopolíticos para produzir e disseminar informações, um saber crítico compartilhado, fruto da inteligência de enxame colocada a serviço da transformação social.

Por um lado, o comum está ameaçado pela disseminação das PPPs no contexto da cidade-empresa, por outro, se abre como possibilidade para a propagação de resistências positivas (que já trazem consigo “a cidade que queremos”) e produção de novas subjetividades no seio da metrópole. Acredito que as resistências positivas contra grandes projetos que denotam a lógica da cidade-empresa conformam, na atualidade, importantes trincheiras na ação política dos novos movimentos urbanos.

A análise do fenômeno urbano marcado pelo paradigma do planejamento estratégico e da cidade-empresa, arquétipo do urbanismo neoliberal, está bem avançada. Dessa crítica ao planejamento estratégico não decorre nenhum saudosismo ao planejamento estatal rígido e funcionalista, mas sim a constatação de que as mutações operadas no planejamento urbano nos marcos do neoliberalismo expressam, em última instância, a impossibilidade do Estado, em simbiose com o capital, em responder à problemática urbana orientada pela efetividade da função social da cidade e pela garantia da gestão democrática. Nesse cenário, não nos cabe flertar com o Estado planejador de outrora, nosso papel não é outro senão apostar nas resistências positivas que estão logrando frear grandes projetos do urbanismo neoliberal.

não nos cabe flertar com o Estado planejador de outrora, nosso papel não é outro senão apostar nas resistências positivas que estão logrando frear grandes projetos do urbanismo neoliberal.

Portanto, tanto melhor voltar os olhos e apostar nas múltiplas resistências travadas no seio das metrópoles. É possível extrair grandes aprendizados delas, dos territórios insurgentes onde novas práticas de sociabilidade são experimentadas, a exemplo das ocupações, de todas as espécies, e da cultura viva que emerge das periferias autoconstruídas. Em suma, nunca foi tão necessária a palavra de ordem “nada a temer!”, ou seja, #ocupatudo.

Joviano Mayer

Advogado popular do Coletivo Margarida Alves, militante das Brigadas Populares, mestre e doutorando em arquitetura e urbanismo pela UFMG, pesquisador do grupo Indisciplinar UFMG
mayerjoviano@gmail.com

Textos Relacionados

O neoliberalismo e seus normalopatas

O neoliberalismo e seus normalopatas

Depois dos frankensteins, esquizoides errantes sem fronteiras, e dos fantasmas alienados que vagam da pressão, descompressão e depressão, chegamos finalmente aos zumbis que hoje se tornaram nossa mais próxima normalopatia.

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Entenda como a CPI da PBH Ativos pode ser suspensa por manobras políticas do ex-prefeito Marcio Lacerda, mesmo com relatório apontando irregularidades.

Crise, Golpe e Acumulação

Crise, Golpe e Acumulação

Crise, Golpe e Acumulação


10 tópicos da conjuntura do capitalismo desde a América Latina

Imagem de capa
Bill Viola, The Raft, 2004

Neste 1° de Abril de 2017, relembrando os 53 anos do Golpe Militar que afastou Jango, a conjuntura diante de nós carrega algumas semelhanças. Os movimentos em torno da garantia de acumulação do capital, vez e outra, culminam em crises e golpes. Se em 1964 a situação econômica do país na distribuição de renda e nas reformas populares amedrontou as oligarquias nacionais e consolidou a entrada de capitais internacionais, hoje, capitalistas de todo o mundo, mais unidos do que imaginamos, empreendem um golpe de estado contra a presidenta eleita para aprovar reformas ‘impopulares’. A única certeza é que a política é a linha de frente da acumulação. E hoje, tal qual foi com o Golpe Militar, sentiremos na pele e nos ossos esse choque.

Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado.

Kafka

1

O sistema de produção de valor em vigor desde o século XIX opera sobre a lógica da cidade como mais-valor[1] ou do processo de urbanização como destino seguro para os excedentes de produção industrial[2]. Em um mundo finito, chegaria o tempo em que tal tática se esgotaria. O avançado estágio de urbanização mundial[3], somado à queda das taxas de natalidade, são os fatores constituintes da gradativa queda das taxas de urbanização (embora forçosamente empurrada a limites que beiram o surrealismo, como produção de cidades totalmente vazias na China[4] e a construção de ilhas artificiais com casas de veraneios para super-ricos), proporcionalmente acompanhadas da queda das taxas de crescimento econômico. Se não há urbanização, não há grande indústria, consequentemente não há empregos, pelo menos não como os que conhecemos.

 

[1] Categoria fundacional na obra de Marx em sua teoria do valor. O termo denota a diferença entre o valor final de uma mercadoria e o salário que o trabalhador receberia para produzi-la. E não seria errado afirmar que as cidades, no capitalismo, são elas próprias mercadorias.

[2] Até pouco tempo atrás impulsionado no Brasil pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (2007) e pelo Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV (2009).

[3] 2007 foi o ano em que a população mundial passou a ser majoritariamente urbana. No Brasil a maioria urbana é uma realidade desde os anos 1960, e conta hoje com 85% da população vivendo em cidades.

 

[4] Ver Distrito de Chenggong: archdaily.com/425651/how-to-bring-china-s-ghost-towns-back-to-life

2

Isso significa uma profunda crise do capital. Suas contradições internas, marcadas pela lei da concorrência, levaram a uma forma de organizar a produção que solapa a própria base de sua existência: a criação de mais-valor. Com isso, é preciso criar estratagemas, nada além de espelhos e fumaças, cheias de sutileza metafísica e manhas teológicas, para que o capital continue a circular – mesmo que de maneira fetichista[5]. A aparente valorização automatizada do capital financeiro não passa de uma ficção e, portanto, faz parte do movimento de crise.


3

Já há algum tempo a acumulação atingiu proporções contraprodutivas, gerando o que se conhece como ‘crise de sobreacumulação’. Se durante a era industrial-proletária os capitais driblaram os efeitos contraprodutivos com o estado de bem estar social, oferecendo ao proletariado adequações às reivindicações de melhores condições da reprodução da força de trabalho, com o declínio industrial os capitais substituíram a seguridade social por linhas de crédito, estágio intermediário entre a era industrial-proletária e a era da austeridade-precariada. O capitalismo sem crescimento nada mais é que o devir de um novo tempo.

 

[5] Para Marx, o verdadeiro valor (quantidade de trabalho materializado no objeto construído) só pode ser obtido durante o processo de produção, logo, o excedente da produção (mercadoria) ao ser comercializado, assume sua forma fetichista (ausência da relação com processo produtivo) de valor irreal. Freud formula o fetichismo como a dualidade de um sujeito diante de seu objeto de fetiche (comumente vinculações entre pulsões sexuais e objetos triviais como toucas de banho e sapatos), em parte, o sujeito encontra no objeto fetichizado um mais-de-gozar, e em parte reconhece que ali não há gozo, produzindo uma simultaneidade entre gozo e frustração. Interessa-nos, na intercessão das duas formulações, o seguinte: há no fetiche uma dimensão fantasmagórica e irreal, mas que encontra no comportamento uma via de prazer que impulsiona sua reprodução.

4

Diagnósticos equivocados ou de má-fé acompanham as falsas esperanças dadas pelo emprego forçado da cartilha neoliberal. Banco Mundial, FMI e outras instituições financeiras se esforçam em colar o ideário do sistema da dívida às periferias do capitalismo. E, claro, as linhas de crédito que oferecem são acompanhadas de uma série de condições que obrigam esses países a ficarem de joelhos diante da acumulação de papéis, ações e dinheiro sem valor[6] nos países do centro.

 

[6] Ideia desenvolvida por Robert Kurz em sua obra teórica. É a manifestação da contemporânea desvinculação entre o dinheiro e a substância abstrata do trabalho, o valor. A multiplicação do dinheiro ocorre de maneira automatizada e independente, muito mais rápida que a cristalização de trabalho sob a forma social de valor.

5

A solução que a racionalidade abstrata do capital encontra é, como sempre, o aumento sistemático da exploração como garantia de remuneração dos capitais. A acumulação há de ser salva, à custa do prolongamento da jornada de trabalho da mão de obra remanescente, de um crescente aumento de sua intensidade e da drástica redução da proteção ao trabalho. A reestruturação trabalhista[7], que protege os capitais em detrimento dos trabalhadores, redireciona o horizonte do trabalho a uma estética e política escravagista, principalmente em países periféricos que, devido a sua condição de dependência e subalternidade, se encontram, na divisão do trabalho, como responsáveis pela transferência de valor para os capitais sediados nos países centrais.

[7] No dia 31/03/2017 foi sancionada a PL 4302/1998 que flexibiliza a terceirização.

6

Isso indica que a condição da classe trabalhadora na periferia global é muito mais precária. O sistema de superexploração coloca homens, mulheres e, não raro, idosos[8] e crianças[9] num regime exaustivo de subemprego precário para garantir a manutenção da produção de mais-valor. É essa a interpretação que temos que ter quando levamos em conta as paisagens precárias e expansivas das favelas, os gigantescos e especulados deslocamentos até o trabalho, a violência estrutural e outras mazelas sociais que assolam historicamente esses países. Com a crise do capital, a tendência não pode ser outra que não o aumento estratosférico da expressão dessa condição, bem como da acumulação.

 

[8] Em disputa de regularização pela legislação golpista junto à PEC 287/16 – Reforma da Previdência.

 

[9] Mais de cinco milhões de crianças entre 5 e 13 anos trabalhavam, em 2016, de maneira ilegal no Brasil. A grande maioria submetida a trabalhos precários e de alto risco, como catadores de material reciclado em lixões.
 

7

O golpe anuncia a retomada da agenda da privatização com intensidade não vista desde os Fernandos (Collor de Melo e Henrique Cardoso), lançando, especificamente com a entrega do pré-sal, uma pá de cal sobre o que restava da soberania nacional. Parte das novas privatizações vêm acompanhadas de certas sofisticações[10], destaque para o modelo de seguridade das concessões em Parceria Público-Privada, em que os lucros ficam com as empresas e os prejuízos com o Estado, conferindo ao envelhecido sistema capitalista a virilidade que exige de si no mercado financeiro. Talvez, o maior prejuízo vinculado às privatizações sejam as alterações nos eixos de rigor no interior das relações de produção. Casos como o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana-MG (2015), a crise hídrica no Estado de São Paulo (2014), os apagões em escala nacional (2001), estão diretamente ligados à avidez financeira acampada na operação de serviços vitais ao povo brasileiro. Não é diferente a situação da Argentina, com a eleição de Maurício Macri, que tomou como uma de suas primeiras medidas um acordo com os fundos abutres, mantidos por investidores internacionais que esperam ganhar cerca de 1600% com o investimento realizado[11].

 

[10] O que inclui operações que hibridam mídia, STF e Polícia Federal, no ataque direto ao agronegócio, às construtoras e oligarquias nacionais.

[11] Esses investidores operam da seguinte maneira: 1) comprando títulos de dívida desvalorizados no mercado secundário, a um preço muito mais baixo que o do seu valor real; 2) recusa-se a participar em acordos de reestruturação com o Estado endividado; 3) e, por fim, passa exigir pela via judicial, incluindo embargos e outras penalidades, o pagamento total da dívida, o que pode implicar na soma do valor nominal mais juros e eventuais multas.

8

À vida cotidiana e popular, o golpe anuncia o achatamento das possibilidades de trabalho. Esse estreito horizonte revela apenas a patológica combinação de empreendedorismo, terceirização e austeridade, claramente nociva à saúde da classe trabalhadora, acompanhado da intensificação de acidentes, doenças do trabalho e depressão, que, simultâneos ao declínio do Sistema Único de Saúde[12], configuram o cenário de um desastre. A acumulação por espoliação[13], ou seja, o saque da renda das populações mais vulneráveis, seguirá com a alta dos juros, dos aluguéis e das passagens que subirão (como já o fazem) mais que do a inflação, enquanto os salários reais irão encolher ano após ano. O desemprego, cada vez mais, se tornará o fôlego para que, diante de um sistema de assistência social rarefeito, a população precarizada possa se mobilizar e cuidar de si mesma, e quem sabe, de quando em vez, ser financiada pelos mesmos bancos (travestidos de fundações caridosas) responsáveis pelo legado da precarização.


9

O golpe, enquanto inflexão econômica e social no Brasil, cumpre algumas funções: 1) econômica, diante da crise nos regimes de acumulação e a passagem para sua forma fictícia, a saída é a intensificação das explorações sistemática como forma de continuar extraindo e acumulando mais-valor; 2) legislativa, de reformular o Estado como anteparo entreguista e colonial para a estância confortável dos capitais internacionais na nova ordem de acumulação de valor, não mais por produção, mas por espoliação; 3) geopolítica, agravando o processo de recolonização da América Latina, o golpe leva à falência ou à privatização dos setores produtivos nacionais, cumprindo seu papel de posicionar no globo os países falidos e aqueles que ainda serão os remanescentes do setor produtivo, enquanto China e Rússia (potências bélicas), mantêm as atividades industriais, o Brasil, junto a todo o Sul Global, protagonizarão a falência do setor produtivo; 4) moral, ao solver as estruturas nacionais pela via de uma política reacionária, sexista, racista e violenta, o golpe veste o Estado como frágil e passivo, condiciona a população ao lugar da vergonha e da culpa, produzindo uma nova condição de mal estar na sociedade.

Imagem por Rafael Lage/Divulgação – Carta Capital
[12] Aprovada e em andamento, a PEC 55, que prevê 20 anos de recessão dos investimentos em saúde e educação.

[13] Ideia formulada por David Harvey na obra O Novo Imperialismo. Ed. Loyola, 2004


Bem-vindo ao deserto do real. Estamos navegando no veleiro destroçado de Kafka

10

Bem-vindo ao deserto do real. Estamos navegando no veleiro destroçado de Kafka. O capitalismo como conhecemos, em estado terminal, já apresenta suas convulsões e abre as portas de um novo tempo do mundo. Se há uma única vantagem nessa conjuntura é que ela coloca às claras o Real, duro e cru. Isso nos localiza mais próximos do colapso total da nossa modernidade tardia. Um naufrágio certamente nos oferece aberturas e novas linhas de fuga, mas que não vêm acompanhados de qualquer garantia de melhora. Se vivermos este fim da história ele não será um final feliz. Afinal, nada não é tão ruim que não possa piorar e, no caso do capitalismo, essa parece ser a formulação mais verdadeira.

 

Imagem por Rafael Lage/Divulgação – Carta Capital

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles.
thiago.canettieri@gmail.com

Bernardo Neves

Mestrando em arquitetura e urbanismo no NPGAU-UFMG, com enfoque em movimentos sociais e planejamento urbano insurgente, pesquisador do Indisciplinar-UFMG.
bnp.arquiteto@gmail.com

Textos Relacionados

O neoliberalismo e seus normalopatas

O neoliberalismo e seus normalopatas

Depois dos frankensteins, esquizoides errantes sem fronteiras, e dos fantasmas alienados que vagam da pressão, descompressão e depressão, chegamos finalmente aos zumbis que hoje se tornaram nossa mais próxima normalopatia.

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Entenda como a CPI da PBH Ativos pode ser suspensa por manobras políticas do ex-prefeito Marcio Lacerda, mesmo com relatório apontando irregularidades.

O neoliberalismo determinando a dinâmica escolar

O neoliberalismo determinando a dinâmica escolar

O neoliberalismo determinando a dinâmica escolar

Governo que congela investimentos em educação por 20 anos pode propor uma reforma que exija o dobro de investimentos no Ensino Médio?

Somado à exclusão de disciplinas, a Medida Provisória 746/16, que propõe a reforma do ensino médio, abre caminho para a mudança no Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e o financiamento da educação. Enquanto a primeira questão, a proposta de flexibilização do curriculum[1], está sendo minimamente discutida na sociedade, as perguntas sobre o financiamento da educação seguem como um ponto oculto na medida. Para tratar dele, é preciso questionar como a MP propõe o aumento gradativo da carga horária, de 800 para 1400 horas, mesmo tendo sido escrita pelo mesmo grupo que propôs a PEC 241/55, que congela os investimentos em educação por 20 anos.

É fácil perceber o crescimento nos gastos que a mudança de carga horária traria, afinal, somado ao investimento demandado por manutenção e operação (um corpo docente maior, a preparação de mais refeições e as demandas de funcionamento da escola), seria necessário um enorme gasto com infraestrutura, já que o número de escolas estaduais de ensino médio dobraria, pois a maioria delas funciona com um número amplo de alunos nos três turnos. Os repasses de verba da união para os estados são geridos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), atualmente presidido por Silvio Pinheiro, o advogado afiliado de ACM Neto, que ficou famoso em 2015 por liberar o alvará para a construção do edifício de Geddel Vieira Lima em Salvador. Ele será o responsável por gerir os 67 milhões de reais destinados ao fundo em 2017.

Apesar de o orçamento previsto para o ano indicar um repasse de recursos maior para a implementação do programa, a MP afirma que “Os recursos financeiros correspondentes ao apoio financeiro de que trata o parágrafo único do art. 5º correrão à conta de dotação consignada nos orçamentos do FNDE e do Ministério da Educação, observados os limites de movimentação, de empenho e de pagamento da programação orçamentária e financeira anual”. Ou seja: a nova escola terá que se ajustar ao congelamento de investimentos estipulado pela PEC 241/55. Mesmo a Política de Fomento estipulada pela MP expira em um prazo de quatro anos, como fica claro no artigo 12:

“A Política de Fomento de que trata o caput prevê o repasse de recursos do Ministério da Educação para os Estados e para o Distrito Federal pelo prazo máximo de quatro anos por escola, contado da data do início de sua implementação”.

Isso significa que os gastos constantes que o aumento da carga horária trarão não serão mais supridos após quatro anos, período em que a medida deve ter sido estendida para todo o país.

Um governo que se recusa ao diálogo e tem a seu lado veículos da imprensa coniventes com suas ações não precisa explicar como medidas tão contraditórias podem estar sendo tomadas ao mesmo tempo.

Na página do Novo Ensino Médio, destinada a responder perguntas frequentes, não há nenhuma menção ao financiamento da proposta. Especialistas em políticas públicas para a educação acreditam, contudo, que a MP marca uma mudança na distribuição do Fundeb e o início de um processo de privatização da escola pública.

Em entrevista para a Carta Capital, Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que a MP sugere uma concentração de recursos no ensino médio em detrimento do ensino fundamental. Isso significa que a união deve repassar mais verbas para o estado porque reduzirá os repasses dos municípios, responsáveis por um número muito maior de alunos. Se isso acontecer, veremos o fim do projeto de universalização de creches, previsto pela Lei 13005/2014. Mas, mesmo assim, é improvável que os gastos do Fundep dêem conta do impactante aumento no orçamento que a reforma do ensino médio exigiria.

Por isso, diversos pesquisadores chamam atenção para a possibilidade de formação de parcerias público-privadas entre escolas e empresas. O artigo 15 da MP afirma:

“Para efeito de cumprimento de exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer, mediante regulamentação própria, conhecimentos, saberes, habilidades e competências, mediante diferentes formas de comprovação, como:

I – demonstração prática;
II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
III – atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino;
IV – cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; e
VI – educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.”

É fácil perceber como as condições estipuladas pela MP abrem caminho para que instituições privadas de educação passem a vender para os estados formações técnicas ou mesmo cursos livres e que podem ser realizados à distância. Além disso, empresas poderão contratar os estudantes sob o argumento de realizarem a formação técnica. Para fortalecer essa possibilidade, o governo retirou dos professores responsáveis pela formação técnica a obrigatoriedade de formação acadêmica especializada, autorizando a contratação por “notório saber”.

O sucateamento das escolas públicas expandirá ainda mais a distância entre a escola pública e a privada, determinando de forma ainda mais injusta o destino de nossos jovens.

Isso confirma como a MP se aproxima da agenda neoliberal em voga no Brasil. O sucateamento das escolas públicas, com a baixa oferta de disciplinas e a pequena importância dada ao corpo docente, expandirá ainda mais a distância entre a escola pública e a privada, determinando de forma ainda mais injusta o destino de nossos jovens. A alternativa para a população pobre será frequentar escolas abandonadas combinadas a modelos educativos planejados e geridos por empresas sem nenhum interesse na área e incapazes de acompanhar um debate pedagógico sério. Para os estudantes, será oferecido um modelo educacional que se volta para o mercado de trabalho, pensando em adequá-lo às demandas do mesmo e, de forma alguma, propor possibilidades de emancipação.

Fernanda Dusse

Professora do CEFET-MG, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFMG, com enfoque em literaturas contemporâneas e a relação entre estética, ética e política.
fernandadusse@gmail.com

Textos Relacionados

O neoliberalismo e seus normalopatas

O neoliberalismo e seus normalopatas

Depois dos frankensteins, esquizoides errantes sem fronteiras, e dos fantasmas alienados que vagam da pressão, descompressão e depressão, chegamos finalmente aos zumbis que hoje se tornaram nossa mais próxima normalopatia.

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Relato – oitiva Marcio Lacerda

Entenda como a CPI da PBH Ativos pode ser suspensa por manobras políticas do ex-prefeito Marcio Lacerda, mesmo com relatório apontando irregularidades.