Caso Rio Doce: propostas de reparação levam ao avanço neoliberal sobre a bacia

Caso Rio Doce: propostas de reparação levam ao avanço neoliberal sobre a bacia

Caso Rio Doce: propostas de reparação levam ao avanço neoliberal sobre a bacia

O avanço da racionalidade neoliberal propicia uma diversidade de ONG’s ambientalistas articuladas com uma rede internacional de interesses controversos e uma atuação tecnicista e afastada dos reais problemas das comunidades do Rio Doce.

Os encaminhamentos institucionais dados ao rompimento da barragem da Samarco, Vale e BHP Billiton no vale do Rio Doce sinalizam que as fragmentações impostas transcendem a esfera socioespacial e atingem as estruturas institucionais, a partir da deslegitimação do aparelho Estatal e da concomitante emergência do terceiro setor como saída viável para gestão dos processos de reparação do desastre-crime.

Pautada em tais argumentos justifica-se a criação da Fundação Renova,  sob o empenho intensivo de condicionar a saída para os entraves gerados através do próprio mercado, garantindo às empresas culpadas pelo desastre-crime e mantenedoras da fundação, não só o controle sobre os processos de reparação e compensação, como também a acumulação de capital em meio ao desastre-crime que segue em curso.

O discurso que coloca o Estado como instituição incapaz de gerir os recursos ganha forças em meio a crise política em voga em nosso país, acentuando a mentalidade de que a corrupção é imanente ao setor público e passível de ser superada no meio empresarial a partir de mecanismos de gestão. No seio das boas práticas que pretendem convalidar as entidades  “não governamentais”, ressalta-se o setor de Compliance (transparência), presente na linha de frente do arranjo de governança da Fundação Renova, alimentando a crítica à alardeada corrupção estatal. No entanto, se o embate é por legitimidade, o arranjo de governança do qual emerge a Fundação Renova e o Comitê Interfederativo (CIF) não é legítimo nem judicialmente, nem pelos atingidos. Pois, é preciso retomar que o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta que embasa a criação deste arranjo, não foi homologado pela justiça e também não conta com a anuência dos atingidos.

Recentemente o arranjo institucional foi colocado em xeque por mais uma questão[1]: a falta de um posicionamento efetivo do CIF frente às empresas e à fundação renova, para garantir o cumprimento da deliberação Nº 58 elaborada pelo próprio comitê. A medida exige o reconhecimento das comunidades do Norte e Sul da Foz do Rio Doce como atingidas, que implica o cadastramento imediato e, posteriormente, a concessão do auxílio emergencial. Após quatro meses de descumprimento da deliberação pela fundação, o CIF, em benefício dos  interesses empresariais, se restringe a apenas notificar a entidade, para uma ação que demandaria multa, em respeito às comunidades até agora desassistidas. Com isso, esta deliberação que gerou grandes expectativas nas comunidades do norte e sul da foz serviu exclusivamente para conter os processos de resistência até então efervescentes.  Tal experiência comprova que os encaminhamentos assertivos para o reconhecimento de direitos e reparações não virão nem pelos direcionamentos do Comitê Interfederativo, nem pela Fundação Renova e suas mantenedoras Samarco, Vale e Bhp Billiton. A saída é clara: militância e ação direta.

O reconhecimento de direitos e reparações não virão do Comitê Interfederativo, nem pela Fundação Renova e suas mantenedoras Samarco, Vale e Bhp Billiton. A saída é clara: militância e ação direta. 

[1] O processo de cadastramento nas comunidades atingidas de São Mateus foi iniciado em setembro/2017

Na contramão, o recorrente esforço de concatenar as saídas pelo terceiro setor – leia-se ONGs e fundações – é central para o avanço do ambientalismo neoliberal, estimulado pelo Banco Mundial através da adoção de diretrizes para a concessão de recursos direcionados às questões ambientais no sul global, que prezam pela substituição do Estado por organizações não governamentais. Nesse sentido, o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves nos alerta para a colonialidade implícita nestas políticas ambientais, pois implicam em manter os recursos naturais salvaguardados por organizações em sua maioria internacionais, com uma agenda submetida aos interesses do Banco Mundial, isto é, sob o controle do grande capital internacional.

Está implícita a colonialidade nestas políticas ambientais, pois mantem os recursos naturais salvaguardados por organizações internacionais como o Banco Mundial, isto é, sob o controle do grande capital internacional.

No caso do rio Doce, a relação entre entidades do terceiro setor e as empresas vai muito além de uma mera aproximação de vocabulário, constituindo um modelo de gestão empresarial com roupagem verde, a exemplo da parceria com o Instituto Terra. O fotógrafo Sebastião Salgado há bastante tempo, tem alguns de seus projetos profissionais financiados pela Vale, além de manter a ONG ambientalista focada em projetos de recuperação das nascentes do Rio Doce também financiados pela empresa e atualmente em parceria com a Fundação Renova. Entretanto, o que antes era apenas mais um investimento empresarial em publicidade verde, após o crime, se converteu em uma grande jogada de sorte, em benefício da reputação das empresas. Logo após o crime, o fotógrafo deu uma série de declarações polêmicas em defesa das empresas, dizendo que “essas empresas primam pela preocupação ecológica” e que a degradação do Rio Doce é anterior ao desastre, argumento enfatizado pela Renova na denominação desastre silencioso.

No entanto, considerar que o processo prévio de degradação, causado inclusive pela mineração, ofusca a morte instantânea de mais de 11 toneladas de peixes de 98 espécies, sendo várias delas endêmicas do rio, além da ameaça à fonte de sobrevivência das várias comunidades ao longo da bacia é corroborar com a desresponsabilização das empresas. Neste mesmo caminho, o advento da Fundação Renova, enquanto entidade da sociedade civil – ainda que permeada em todos os escalões por antigos funcionários das empresas criminosas – para tratar questões relativas aos atingidos foi um dos primeiros artifícios para preservar a imagem das empresas culpadas pelo crime, retirando-se em grande parte dos holofotes. Em meio às comunidades, é a apreensão quanto à dependência econômica da atividade minerária que muitas vezes encobrem a responsabilização das empresas mineradoras. De modo mais alarmante, a desresponsabilização atinge até mesmo os desdobramentos judiciais, culminando na suspensão recente, pela Justiça Federal, do processo criminal contra a Samarco, Vale e a BHP e alguns de seus representantes.

Fig.2 Atingidos pelo rompimento de Fundão e MAB protestam em frente à Justiça Federal. Foto Jornal a Sirene

O avanço da racionalidade neoliberal propicia não só a emergência de uma diversidade de ONG’s ambientalistas articuladas por uma rede de interesses controversos, como também abre espaço para uma atuação tecnicista sobre os problemas ambientais engendrada por um protagonismo do técnico-especialista. Esta ascendência ocorre a despeito da atuação militante que resiste aos golpes de supressão explícitos nas políticas adotadas por empresas e pelo terceiro setor a elas ligadas, como nos mapeamentos de stakeholders (pessoas interessadas ou impactadas), componentes do estudo de “risco social corporativo”. Muito comuns às práticas empresariais, estes estudos visam a estabilização das resistências, a fim de legitimar a atuação das empresas, a partir da “acumulação de capital social”, que se realiza por meio da ruptura entre comunidade e capacidade crítica[1]. Não obstante, a adoção deste léxico e estratégia de gestão pela Samarco (Vale-BHP Billiton), precedem o desastre-crime e também perfazem o escopo de trabalho da Fundação Renova.

Seguindo esta lógica, a organização e mobilização da sociedade recebem atenção central no gerenciamento dos riscos sociais. Visando lidar com esses “riscos”, as empresas, por canais próprios ou articulados a outras entidades do terceiro setor, buscam aproximar-se e incentivar as organizações, apropriando-se de conceitos como “mobilização” e “engajamento”, quando na verdade estas adequações se limitam ao campo discursivo.

Na atual conjuntura, não só os movimentos de resistência encontram-se em risco diante do avanço neoliberal e das estratégias empresariais, como também a produção de conhecimento comprometida com a dimensão ético-política.

Na atual conjuntura, não só os movimentos de resistência encontram-se em risco diante do avanço neoliberal e das estratégias empresariais, como também a produção de conhecimento comprometida com a dimensão ético-política. O desmantelamento das estruturas estatais e dentre elas a Universidade, abriu uma fissura estratégica para o entranhamento das empresas culpadas na produção de conhecimento, através dos financiamentos de pesquisa. É neste cenário propício que cresce o assédio da Fundação Renova sobre os grupos de pesquisa e universidades, visando legitimar suas ações. Processo que se concretiza na parceria entre Fundação Renova e os Fundos de Apoio à Pesquisa e Ensino de Minas Gerais e do Espírito Santo (FAPEMIG e FAPES).

Confluindo com as práticas empresariais, o mito da neutralidade científica é a racionalidade na qual se recostam os interesses hegemônicos, em detrimento da concepção de Universidade em prol daqueles desfavorecidos socialmente. Diante disso, a recusa ao financiamento empresarial e da Fundação Renova é a única forma de garantir que as nossas críticas não sejam neutralizadas.

[2] ACSELRAD, H. PINTO, R. A gestão empresarial do “risco social” e a neutralização da crítica. Revista PRAIA VERMELHA, Rio de Janeiro, v. 19 nº 2, p. 51-64, Jul-Dez 2009 2009.

De modo análogo à ruptura socioespacial explícita na divisão entre os atingidos “com cartão e sem cartão”[2], o ambiente acadêmico afetado pelas estratégias empresariais é posto à ruptura entre os financiados e os não financiados pela fundação. Tal segmentação ultrapassa a questão dos recursos, para compreender de que lado a universidade se coloca, a legitimar as estruturas postas ou a desestabilizar o campo de forças em prol da luta dos atingidos. Mediante este acinte à produção de conhecimento, não nos resta dúvidas: somos todos atingidos pelo crime da Samarco, Vale e BHP Billiton.

É com o mote “somos todos atingidos” que O Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens convocou a todos a construir coletivamente o 8º Encontro Nacional do Atingidos por Barragens com lema “Água e energia com soberania, distribuição da riqueza e controle popular”, que ocorreu entre os dia 1 e 5 de outubro, no Rio de Janeiro-RJ. O encontro teve a pretensão de debater a criação de um modelo energético popular para o Brasil, fortalecer a luta pela aprovação da Política de Direitos para as Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e denunciar a desresponsabilização das empresas culpadas pelo crime no Rio Doce.

[3] Leia mais no InDebate:
Com cartão, sem cartão: as fragmentações como estratégia de controle do território pela Samarco (Vale-BHP)
https://goo.gl/NpxXZ4

Paula Guimarães

Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, pesquisadora do Indisciplinar na frente ação Cartografias frente ao desastre-crime no Rio Doce, vinculado ao projeto extensionista Cartografias Emergentes.

Raul Lemos dos Santos

graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG,  pesquisador do Indisciplinar na frente ação Cartografias frente ao desastre-crime no Rio Doce, vinculado ao projeto extensionista Cartografias Emergentes.

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O que professores universitários aposentados de Nova York tem a ver com a expropriação de terras de pequenos agricultores no nordeste brasileiro?

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Das pontes e enraizamentos do capital financeiro na vida contemporânea.

Img 1 Área de planalto desmatada para produção de soja, Alto Parnaíba, Maranhão, julho de 2015. Foto Vicente Alves

No dia 16 de nov/2015 o jornal The New York Times publica uma matéria de página inteira sobre o TIAA-CREF (Teachers Insurance and Annuity Association – College Retirement Equities Fund). Um fundo que reúne investimentos de diversos fundos de pensão dos Estados Unidos e de outros países. Na matéria citada o TIAA-CREF foi acusado de transacionar terras com um empresário brasileiro – o Sr. Euclides de Carli, um típico grileiro – que empregava violência e fraudes para expropriar terras de agricultores familiares,bem como para burlar leis brasileiras que limitam a presença de investimentos estrangeiros nas terras do país. Na carteira de investimentos do TIAA-CREF constam, dentre outros, recursos de fundos de pensão dos professores universitários aposentados de Nova York; de aposentados públicos suecos (Second Swedish National Pension Fund); e canadeneses (Caisse de dépôt et placement du Québec e British Columbia Investment Management Corporation of Canada).

Conforme apontado no Relatório produzido por entidades da sociedade civil sobre o caso, as opções de investimentos em terras (TIAA-CREF Global Agriculture I e II) lançadas pelo Fundo em 2012 e 2015 somavam recursos na ordem de US$ 2 e US$ 3 bilhões, respectivamente, voltados para a aquisição de terras e o estabelecimento de fazendas agroindustriais por meio de empresas subsidiárias em países como Brasil, Austrália, Polônia, Romênia, Estados Unidos, Chile, Nova Zelândia e países da Europa Central e do Leste. O mesmo relatório aponta que a violação da legislação brasileira é somente um dos aspectos em questão. Somam-se a elas uma série de outras violações, tais como: processos de especulação de terras; land grabbing[1] (seja por compra ou grilagem de terras); destruição do meio ambiente; e superexploração do trabalho.

[1]  SAUER, Sergio; LEITE, Sergio. Expansão agrícola, preços e apropriação de terras por estrangeiros no Brasil. Piracicaba: Revista de Economia e Sociologia Rural, Vol. 50, N. 03, Jul/Set, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/resr/v50n3/a07v50n3.pdf

O que está por detrás do caso do TIAA-CREF?

O caso do TIAA-CREF é emblemático na medida em que nos informa sobre a dinâmica mais geral de acumulação na agricultura e no capitalismo contemporâneo. Nem mesmo a terra, historicamente tida como o ativo mais comumente associado à noção de imobilidade e baixa liquidez, está fora dos circuitos financeiros que vem ditando os rumos e o ritmo global da economia nos dias de hoje.

Img 2 Sede TIAA-CREF em BenefitsPRO

Sabe-se que a internacionalização da agricultura não é novidade. A literatura mostra que já na década de 1870 estruturou-se o primeiro regime agroalimentar mundial[2]. Além de ter nascido como um sistema global, de lá para cá tal internacionalização só fez crescer. A esse fenômeno alia-se outro: o processo de oligopolização dos chamados complexos agroindustriais, que abrange desde o processamento até a distribuição dos produtos pelas redes de mercados e supermercados. Da mesma forma, não é de hoje que o capitalismo faz uso da expansão das fronteiras territoriais como forma de conter crises e aumentar os lucros, se aproveitando sobretudo das barreiras ambientais e laborais geralmente mais frouxas nas regiões localizadas na fronteira do desenvolvimento.

Se é certo que este é um processo de longa duração, podemos nos perguntar: quais as especificidades e novidades deste início de século XXI?

Pelo menos duas características o particularizam. De um lado o boom de investimentos em terras em diferentes partes do mundo, de outro, vê-se que ele ocorre associado à multiplicidade de instrumentos (financeiros) disponíveis para sua realização e de agentes envolvidos nas transações. Como efetivamente isso se dá?

[2] FRIEDMANN, Harriet. The political economy of food: The rise and fall of the postwar food order. American Journal of Sociology, jan, 1982.

Global land grabbing: compras, vendas e grilagens de terra ao redor do mundo

Já no início dos anos 2000, diversos países lançaram ou atualizaram metas relativas à produção e ao consumo de biocombustíveis, como forma de fortalecer as agendas ambientais locais e mundiais e de atenuar os efeitos do aumento do preço do petróleo. Em 2003, por exemplo, o Brasil tornou-se um importante ator no cenário de biocombustíveis, em função do lançamento do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel. A aposta nos biocombustíveis provocou um aumento no preço das commodities agrícolas, que, por sua vez, fez despertar o interesse a nível global por terras agricultáveis. Vale lembrar: este cenário acontece junto com as crises hídrica, energética e climática e as crescentes preocupações com a segurança e a soberania alimentar das nações, questões cada vez mais presentes nos noticiários, nas agendas nacionais e na vida cotidiana das populações. Por fim, temos os desdobramentos da enorme instabilidade provocada pela crise de 2008. Dentre eles, destaca-se a reorientação de parte dos investimentos financeiros em direção a mercados e opções mais seguras, mais transparentes, menos alavancadas e mais associadas a ativos reais e efetivamente produtivos.

Img 3 Uma fazenda no estado de Mato Grosso no cerrado e a vasta savana à beira da floresta tropical amazônica que está sendo destruida para expansão agrícola. Imagem Marizilda Cruppe para The New York Times

Dados do estudo publicado em 2010 pelo Banco Mundial[3] – e as motivações para o envolvimento do Banco no assunto merecem destaque em si – a respeito da recente corrida global por terras (global land rush) nos permitem dimensionar o fenômeno. Antes de 2008, a comercialização de terras crescia em média 4 milhões de hectares por ano; entre 2008 e 2009, a demanda cresceu e mais de 56 milhões de hectares agrícolas foram comercializados, sendo mais de 70% concentrados na África.

[3]  BANCO Mundial. Rising global interest in farmland: Can it yield sustainable and equitable benefits? Washington D.C., 2010. Disponível em http://siteresources.worldbank.org/DEC/Resources/Rising-Global-Interest-in-Farmland.pdf

Na realidade os números e as estatísticas relativas ao que alguns chamam de global land rush e outros de land grabbing são controversos. Eles espelham tanto a falta de precisão e de domínio das nações sobre seus territórios, quanto os próprios interesses em jogo no sentido de inflar os mercados de terras, com a consequente geração de maiores lucros para os investidores.

A conjugação desses acontecimentos teve influência sobre o preço das commodities e, consequentemente, das terras pela perspectiva da relação entre oferta e demanda. Contudo, alterações na estrutura de regulação das economias – em especial dos Estados Unidos – desde os anos 1980 também tiveram papel decisivo nesse processo. A complexidade da formação dos preços das commodities hoje reflete as condições e os custos de transporte, armazenagem, financiamento, a atuação de grandes empresas no processamento e na comercialização, bem como as oscilações presentes nos mercados de precificação futuros.

Questão fundiária em tempos de desregulamentação do capital

A entrada do mega investidor inglês George Soros no mercado agrícola é talvez o exemplo mais emblemático da relação capital financeiro-terras. Dentre sua enorme carteira de participações, Soros é o principal acionista da empresa AdecoAgro, produtora de alimentos e de energia renovável, nascida em 2002 na Argentina e presente no Brasil desde 2004.

As informações acerca dos riscos e retornos das opções de investimento são decisivas para a montagem das carteiras, que hoje são como verdadeiros mosaicos de ativos financeiros. É aí que se apresenta uma distinção fundamental entre a dimensão especulativa fundiária urbana e rural. Na medida em que é fator de produção, mas também atua como reserva de valor, a terra cria riqueza por meio de um processo de apreciação passiva (especulativo). Isto lhe confere, simultaneamente, características de ativo produtivo e financeiro. Diferentemente das propriedades fundiárias urbanas, que respondem pelas localidades das atividades produtivas, o caso dos imóveis rurais dificulta separação entre o valor de uso e o valor de troca.

Img 4 George Soros, por Marcellus Drilling 

Por tudo isso, ao invés de contrariar a lógica de curto prazo – dos retornos trimestrais aos acionistas que vem ditando o ritmo da economia global desde os anos 1980 –  os investimentos em terra foram incorporados a ela e devem ser vistos como parte desse processo[4]. Isto é, não há evidências de que a financeirização esteja sendo freada pelos investimentos em terra, mas, ao contrário, de que os mercados de terras estejam sendo incorporadas à sua órbita. Os mercados de futuros, operações de securitizações (hedgings) já são o cotidiano do comércio das safras de commodities agrícolas a nível global.

[4]  Fairbairn, Madeleine. ‘“Like Gold with Yield”: Evolving Intersections between Farmland and Finance’. The Journal of  Peasant Studies, 41 (5): 777–95, 2014.

Cabe ainda destacar que a movimentação do mercado de terras transcende a produção agrícola stricto senso. A interrelação dos cultivos agrícolas com as demais atividades da cadeia agroalimentar atrai atores, interessados, por exemplo, na produção de maquinário agrícola, agrotóxicos, bem como no desenvolvimento de infraestrutura em geral, como as estradas, hidrovias, os galpões de armazenagem, etc. Cada vez mais são atraídos para o campo investidores ligados aos a) capitais do próprio setor do agronegócio; b) capitais de setores sinérgicos e convergentes no agronegócio; c) capitais não tradicionais no agronegócio como empresas de petroquímica, automobilística, logística e construção; d) capital imobiliário em resposta à valorização das terras; e) Estados ricos em capital, mas pobres em recursos naturais; f) fundos de investimento; g) empresas de promoção de serviços ambientais; h) empresas de mineração e prospecção de petróleo[5].

[5]  WILKINSON, John, REYDON, Bastiaan e Di SABBATO, Alberto. Concentration and foreign ownership of land in Brazil in the context of global land grabbing. Canadian Journal of Development Studies/Revue canadienne d’études du développement. Vol. 33, no. 4, 2012, p. 417-438.

Diante de tudo isso, mais do que especular se o mercado de terras está superaquecido, nos importa saber que ele está aquecido. A relação cada vez mais consolidada e dependente entre mercado de terras, agricultura e capital financeiro tem produzido, por um lado, consequências dramáticas para as populações camponesas e para as condições de segurança e soberania alimentar das nações; e por outro, tem contribuído para a geração de lucros exorbitantes com operações especulativas que alimentam o moinho satânico de acionistas e agentes do mercado nas grandes praças financeiras mundiais.

Img 5 Infográfico produzido pelo Indisciplinar. Fonte FAIRBAIRN

Luiza Dulci

Economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ). Conselheira da Fundação Perseu Abramo.

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Câmara Municipal de Belo Horizonte ouve a população e instala CPI

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Comissão Parlarmentar de Inquérito apura possíveis irregularidades nas atividades da PBH Ativos.

por Eulália Alvarenga

Economista, Militante do movimento Auditoria Cidadã da Dívida


 

Desde 2014 vimos denunciando aos órgãos de controle (MP, TCE dentre outros) a transferência de patrimônio público do Município de Belo Horizonte para a sociedade anônima PBH Ativos e a total falta de transparência nas suas operações, ferindo a Constituição Federal-CF, a Lei de Responsabilidade Fiscal-LRF e mesmo a sua Lei de criação. Essa empresa foi estruturada para operacionalizar as Parcerias Público-Privadas-PPP’s ( das UMEI’s, Hospital do Barreiro, parques, cemitérios, estacionamento, etc.) Felizmente, no mês de maio de 2017, foi instalada na Câmara Municipal de Belo Horizonte uma CPI para investigar as atividades da PBH Ativos S/A. Essa empresa, criada na administração Lacerda, se diz independente do Tesouro Municipal e um dos nossos questionamentos diz respeito a essa afirmação.

O capital inicial em 2011, bancado pelo Município, foi de R$ 100 mil. No final de 2014 estava em quase R$ 282 milhões, aumentou em 2.810 vezes em pouco mais 3 anos. Isso deveu a transferência de patrimônio público para essa S/A.

Foram transferidos créditos “carimbados” do Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte – DRENURBS, cujo objetivo é despoluição dos cursos de água, combate a riscos de inundação, entre outros, em flagrante desvio e finalidade de recursos. Este repasse (vai até 2031) vem das negociações com a COPASA, no início dos anos 2000. Os valores corrigidos, em 2013, eram de R$ 224 milhões e foram principalmente para a PPP do Hospital do Barreiro, segundo documentos preliminares. Outro aporte foi a transferência de 53 imóveis – apesar de Lei autorizativa da Câmara Municipal – sem  nenhuma transparência e discussão com a sociedade. Consta da Lei que os imóveis foram transferidos pelo valor mínimo. Por que valor mínimo? Como se chegou ao valor tão abaixo do preço de mercado? Esses imóveis seriam necessários para algum equipamento municipal como escola, parque, posto de saúde, etc.? E por último “cessão” de créditos tributários parcelados (R$ 880 milhões)  para lastrear emissão de debêntures  (R$230 milhões) em parceria com o Banco BTG Pactual S/A. O Município dá garantia total a PBH Ativos S/A, ao Banco BTG Pactual e aos debenturistas. Essa “cessão” está em desacordo com a CF, a  LRF e onera gestões e  gerações futuras. O que se vê é uma estrutura paralela que visa LUCRO – desestrutura a administração direta, não controlada pelos cidadãos mas por um pequeno número de pessoas com seus interesses particulares. Esperamos que a CPI instalada na Câmara Municipal de Belo Horizonte possa trazer para toda a sociedade de Belo Horizonte respostas aos questionamentos já postos em todos documentos produzidos.

Nota editorial

No dia 28/07 foi concedida uma decisão liminar, ou seja, provisória, que suspende a CPI que investiga a PBH Ativos S/A. A decisão foi concedida a partir de um pedido do ex-Prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, alegando não ser “possível permitir que dois vereadores que já têm pré-julgamento formado acerca da questão e que têm interesse particular da investigação dos fatos relacionados à PBH Ativos estejam entre os membros da CPI”.

Ambos Vereadores Gilson Reis e Pedro Patrus compartilharam em suas páginas notas à imprensa a respeito da suspensão e da ação do ex-Prefeito. O coletivo Somos Todos Contra a PBH Ativos apurou, a partir de um áudio publicado pelo Vereador Mateus Simões, que em uma reunião Márcio Lacerda estaria disposto a criar um “fato político” para atacar os vereadores que comandam a CPI.

Saiba Mais:
nota patrusnota gilsonáudio Lacerdasomos todos contra | Frente de Ação Financeirização do Indisciplinar

CONVIDAMOS TODAS E TODOS A COMPARECEREM A CÂMARA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE NA PRÓXIMA SEXTA-FEIRA PARA COBRAR DE NOSSOS VEREADORES UM POSICIONAMENTO SOBRE A SUSPENSÃO DA CPI DA PBH ATIVOS S/A!

A pedido do ex-Prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) suspendeu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tem, ao longo dos últimos meses, apurado potenciais irregularidades envolvendo a PBH Ativos.
A decisão, de caráter limiar, ou seja, provisório, foi concedida no dia 28/07, gerando grande controvérsia e inquietação popular.

NÃO PODEMOS ACEITAR DE BRAÇOS CRUZADOS UMA AÇÃO POLÍTICA DO MÁRCIO LACERDA CONTRA A TRANSPARÊNCIA DE INFORMAÇÕES E A AUTONOMIA DA CÂMARA!

#QuemTemMedoDaCPI?
#PBHAtivosPraQue?
#PBHAtivosPraQuem?

CONCENTRAÇÃO: 14h
LOCAL: Câmara Municipal de BH
(Av. dos Andradas, 3100 – Santa Efigênia)

https://www.facebook.com/events/1131623403648979/?ti=icl

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Os corpos que aqui queimam, também queimam como lá: a emblemática tragédia da Grenfell Tower em Londres

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Os incêndios como forma de expulsão criminosa de populações vulneráveis em áreas de interesse financeiro.

Imagem London News Pictures

O Indebate tem a enorme satisfação de publicar uma série de reportagens do professor Edésio Fernandes, produzidas especialmente para o Blog, analisando as políticas habitacionais e o direito à cidade a partir de Londres, onde reside atualmente, e sua relação inquietante com os processos de mercantilização da moradia no Brasil e demais países do Sul-global. Curta nossa página no facebook e acompanhe a série.

No primeiro texto, o professor Edésio Fernandes denuncia as causas do incêndio na torre Grenfell Tower que levou mais de 80 pessoas a morte, em sua maioria negros e imigrantes. Essa tragédia-crime, que gerou enorme comoção na população londrina, evidencia a crise da moradia social na Inglaterra e o tratamento perverso dado aos imigrantes e aos mais pobres. O artigo nos oferece o contexto histórico da política habitacional em Londres a partir da década de 1960 até sua crescente financeirização iniciada no governo Thatcher, que resultou no aumento dos alugueis e a diminuição das oferta de moradia social que agrava as desigualdades socioeconômicas até os dias de hoje.

Edésio Fernandes é jurista e urbanista, professor, pesquisador e consultor internacional especializado nas dimensões jurídicas dos processos de desenvolvimento urbano. É membro da DPU Associates e da Teaching Faculty do Lincoln Institute of Land Policy, professor associado com Tulane University, NYU e outras universidades, além de trabalhar regularmente para UN-Habitat e organizações governamentais e não-governamentais em diversos países. Fundou e coordena o IRGLUS-International Research Group on Law and Urban Space.

Era tarde da noite do dia 14 de junho de 2017 quando um incêndio começou em um dos apartamentos do conjunto habitacional Grenfell Tower, no distrito de Kensington and Chelsea, no oeste de Londres. Aparentemente causado por uma falha elétrica em um freezer doméstico, o incêndio logo se espalhou por toda a torre de 24 andares e 129 apartamentos, causando, de acordo com os primeiros relatórios, a morte de pelo menos 80 pessoas e ferimentos em outras 70. As matérias de TV e reportagens de jornais sobre o incêndio têm mostrado claramente quem eram os residentes: na sua maioria, negros, muçulmanos, estrangeiros, pobres… Em especial, havia há décadas no edifício uma sólida comunidade de imigrantes marroquinos.

De acordo com dados mais recentes da polícia, cerca de 350 pessoas estariam na torre nessa noite trágica e pelo menos 255 teriam escapado. As autoridades dizem que os números são incertos especialmente porque muitos dos residentes estariam em condição de imigração ilegal e os sobreviventes têm receio de se identificarem, embora o governo nacional tenha prometido uma anistia de um ano; muitos dos apartamentos estariam superlotados, diversos teriam sido sublocados e, portanto, não haveria maior controle sobre seus ocupantes; e a violência do incêndio estaria impossibilitando a identificação precisa dos restos humanos encontrados.

A intensidade e a rapidez com que o fogo se propagou chocaram a todos: o que normalmente seria um incêndio controlado, confinado e repercutindo somente em um ou dois apartamentos do edifício, logo consumiu toda a torre de 67 metros, com enormes labaredas se espalhando lateral e verticalmente. Muitos dos residentes estavam dormindo e quando perceberam o incêndio já mais não conseguiram sair; outros morreram porque obedeceram as instruções iniciais dos bombeiros de ficarem em suas casas, o que seria o procedimento normal se o fogo não tivesse sido tão absurdamente voraz.

As ações dos bombeiros, ainda que verdadeiramente heróicas, mostraram as limitações desse serviço público, que tem sido especialmente afetado pelos cortes de despesas resultantes dos anos de política de austeridade: os equipamentos levaram cerca de meia hora para chegar, as escadas somente chegavam ao décimo andar, faltou água, etc.

As investigações logo determinaram que o edifício não obedecia uma série de normas de segurança contra incêndio, sendo que as reportagens também têm mostrado que os moradores há anos têm reclamado do descaso do governo local e da agência que administra o conjunto, especialmente quanto à falta de manutenção adequada da torre. Ficou logo evidente, contudo, que a principal razão para a violência do incêndio foi a utilização de um tipo de material de revestimento no ano passado, como parte de um projeto de “regeneração” desse e outros conjuntos habitacionais, em Londres e em outras cidades inglesas, com o duplo objetivo de garantir maior eficiência ambiental aos edifícios e embelezar as construções. Em boa medida, as torres foram repaginadas, reformadas e embelezadas, para atender à demanda dos moradores mais privilegiados da vizinhança, que há tempos reclamavam do impacto das torres feias e malcuidadas – e sua população pobre – na vida dos bairros e especialmente nos preços dos seus imóveis. Esse foi certamente o caso em Kensington and Chelsea, distrito que concentra os grupos socioecônomicos mais ricos do país – e os imóveis mais caros.

a principal razão para a violência do incêndio foi a utilização de um tipo de material de revestimento no ano passado, como parte de um projeto de “regeneração” desse e outros conjuntos habitacionais

Contudo, sabe-se agora que o material usado para tal revestimento era altamente inflamável, sendo que, dentre os materiais semelhantes considerados, o que foi escolhido era o mais barato e o de pior qualidade. As primeiras análises indicaram também que os construtores e empreiteiros envolvidos nos projetos de regeneração ignoraram uma série de outras medidas de precaução contra incêndio. Desde então, testes de segurança contra incêndio foram realizados nesses conjuntos que tinham recentemente sido modernizados com esse mesmo tipo de revestimento, em Londres e outras cidades inglesas – e todos falharam. Em um distrito do norte de Londres, Camden, cerca de 4.000 pessoas foram evacuadas de seus apartamentos sem aviso no final da tarde para a execução de obras de remoção desse revestimento, tendo sido levadas para precários centros comunitários ou hotéis.

Até o momento, ninguém assumiu responsabilidade pelo incêndio. Os arquitetos das empresas contratadas dizem que sugeriram outro material não inflamável, mas que não são eles que decidem, sendo que há dúvidas quanto à legalidade ou não do material utilizado. Os planejadores urbanos do governo local dizem que não têm nada com isso porque os serviços são terceirizados. Os peritos encarregados de monitorar as obras – e que foram 16 vezes na Grenfell Tower durante a reforma – dizem que não podem garantir que o que eles viram é o que de fato foi colocado pelas construtoras. Os empreiteiros dizem que são forçados a escolher o material mais barato por conta das pressões da agência, resultado de PPP, que cuida dos imóveis do poder público. Arquitetos, engenheiros, peritos, burocratas…ninguém é responsável. Contudo, pelo menos neste primeiro momento, a pressão social tem sido no sentido de que a tragédia seja tratada como um homicídio coletivo culposo.

Fig.1 Natalie Oxford – Wikipedia

A busca pela identificação de causas e restos mortais continua, mas já são muitos os elementos que indicam que, para além de ser um evento trágico e/ou crime isolado, o incêndio da Grenfell Tower em Londres é a expressão muito concreta, e profundamente dolorosa, das mudanças sociopolíticas na Inglaterra nas ultimas três décadas, especialmente no que diz respeito ao tratamento das necessidades e direitos de moradia social dos mais pobres e mais vulneráveis. Tanto abandono, descaso, negligência, imperícia e incompetência se dão e se explicam no contexto mais amplo da questão da moradia no país – e da profunda crise da moradia social que tem afetado esses grupos sociais.

A Grenfell Tower era uma das muitas torres semelhantes, além de outros conjuntos habitacionais de menor porte, construídas no bojo das ações do Estado de Bem-Estar Social constituído no período pós-guerra nessa região de Londres – Notting Hill Gate/Lancaster Road -, que até os anos 1980 passou por um processo de declínio econômico. O mesmo aconteceu em outras partes mais pobres da cidade, especialmente no Sul e no Sudeste. Nesse período, além dos ingleses desempregados/mães solteiras/pessoas vulneráveis/idosos desamparados, o governo também precisava solucionar a questão da moradia dos imigrantes, cujos números estavam crescendo. No primeiro momento, o governo facilitou especialmente a vinda dos negros caribenhos para que pudessem trabalhar principalmente nos serviços públicos de saúde e transporte, e muitos se localizaram nesse bairro – razão da criação em 1966 do hoje internacionalmente famoso Notting Hill Carnival. Muitos dos conjuntos habitacionais na região foram construídos em lotes vazios, ao longo de vias férreas e estradas, ou então em lugares onde as bombas alemãs tinham destruído as casas originais. Para uma cidade que não tinha até recentemente a tradição da construção verticalizada, as torres se destacavam no horizonte – e incomodavam muita gente.

A Grenfell Tower foi projetada no final dos anos 1960 e construída no começo dos anos 1970, inicialmente com 120 apartamentos. Com o tempo, novos grupos de imigrantes chegaram, vindos especialmente das antigas colônias inglesas, e o bairro se tornou cada vez mais multicultural – ao mesmo tempo em que passou por um processo acentuado de gentrificação, atraindo famílias mais ricas e determinando o aumento vertiginoso dos preços de imóveis. Começaram a surgir as tensões entre grupos de moradores, inclusive quanto aos impactos socioambientais, urbanísticos e de vizinhança do Notting Hill Carnival.


Nos anos 1980, como parte do crescente movimento neoliberal que propunha a redução do aparato estatal, a ênfase na propriedade privada e o reconhecimento de direitos individuais, Mrs. Thatcher lançou a política de privatização do estoque habitacional público, permitindo que moradores que pagavam aluguel social pudessem comprar os imóveis em que moravam. Muitos os fizeram, e grande parte desses apartamentos construídos nas décadas anteriores passaram para o mercado imobiliário, sendo que muitos desses apartamentos foram alugados e/ou sublocados. Contudo, parece que a Grenfell Tower não passou por processo significativo de privatização, o que significa que seus moradores ainda são sobretudo “inquilinos sociais” do governo local.

Por um lado, com a crescente financeirização do mercado imobiliário londrino e sua plena integração no mercado global, o número de imóveis vazios em áreas centrais tem crescido rapidamente, muitos deles de propriedade de fundos de investimento e/ou companhias baseadas em paraísos fiscais. A pressão por novas construções tem tido diversas expressões, dentre elas um movimento impressionante de verticalização, com mais de 400 torres sendo construídas em Londres no momento; ampliação da oferta dos imóveis de luxo; redução do tamanho dos apartamentos para a classe média; pressão por desregulação da ordem urbanística e ambiental, inclusive para construção nos cinturões verdes da cidade.

Por outro lado, com o crescimento recorde do mercado de aluguéis, a superlotação de imóveis tem convivido com o aumento das práticas ilegais de conversão em quartos de unidades precárias como garagens, além das novas construções ilegais nos quintais das casas. Ao mesmo tempo, o investimento na construção de novos conjuntos habitacionais caiu drasticamente nesse bairro, em Londres e no resto do país. Por toda parte, aumentaram as desigualdades socioeconomicas, aumentou a demanda por moradia social, aumentou a imigração – e diminuiu a oferta de moradia social, juntamente com uma série de outros serviços públicos e benefícios sociais. Governos locais como os dessa região têm há anos colocado famílias em pensões e/ou pequenos hotéis, na expectativa de que elas se mudem para outras partes da cidade – ou mesmo para outras cidades. O valor do aluguel dos imóveis tem aumentado sistematicamente, e os benefícios estatais têm caído na mesma proporção.

Por toda parte, aumentaram as desigualdades socioeconomicas, aumentou a demanda por moradia social, aumentou a imigração – e diminuiu a oferta de moradia social, juntamente com uma série de outros serviços públicos e benefícios sociais.

Fig.2 Getty images

Para piorar, há alguns anos o governo Conservador lançou a infame “bedroom tax”, a cobrança pelo uso de espaço físico nos apartamentos dos conjuntos habitacionais, sinalizando claramente que, diferentemente do que se pensava, o direito de moradia não era por prazo indeterminado e nem era para ser necessariamente exercido no mesmo local, assim obrigando famílias a saírem de seus apartamentos – com frequência, para outras cidades. Nos últimos anos, muitas das torres do pós-guerra, semiprivatizadas ou totalmente privatizadas, foram demolidas e substituídas por edifícios modernos e caros. Uma pesquisa ainda está para ser feita sobre o que aconteceu com os antigos moradores: para onde foram?

A tragédia-crime da Grenfell Tower doeu fundo nos londrinos e as manifestações de apoio e ajuda certamente foram muito comoventes; dentre outras iniciativas coletivas, a gravação dos artistas famosos em prol dos sobreviventes logo foi para o primeiro lugar da lista das músicas mais vendidas. Nesse clima de enorme emoção, muitos acreditaram que esse episódio tão lamentável seria um marco-divisor para a promoção de mudanças profundas das políticas públicas no país, especialmente as políticas de moradia social. Passada a comoção inicial, contudo, tem ficado evidente que a solidariedade humana tem prazo de validade curto. Poucos dias depois, os moradores do edifício luxuoso onde o governo local tinha comprado alguns apartamentos – que estavam vazios há meses – para neles abrigar dezenas das famílias de sobreviventes começaram a protestar, alegando que os valores de seus imóveis estariam sendo depreciados. O hotel onde algumas famílias tinham sido alojadas as despejou dizendo que não tinha mais vagas.  Cerca de 15 famílias de sobreviventes, apenas, aceitaram as ofertas de relocalização feitas pelo governo local, porque não são na mesma região e não são adequadas, sendo que elas temem que essas soluções temporárias se tornem definitivas – com a tragédia sendo usada para remover de vez os moradores indesejados, já que, a julgar pelo que tem acontecido por toda parte, o novo edifício a ser construído no lugar da torre destruída estará além de suas possibilidades econômicas. Nos últimos dias, um influente politico do Partido Conservador tem tentado usar da tragédia para forçar a mudança da rota do Notting Hill Carnival, assim satisfazendo o desejo antigo da comunidade rica que mora no bairro.

A carcaça da torre queimada continua dominando o horizonte do oeste de Londres e chocando quem a vê, revelando de forma escancarada a natureza cruel da sociedade inglesa contemporânea que tem negligenciado e cada vez mais abandonado seus pobres e vulneráveis, condenados a viverem de maneira cada vez mais precária – e a morrerem nessa horrível fogueira humana.

De fato, têm sido muitas as comparações com as condições encontradas por Engels nos seus estudos durante a Revolução Industrial no país. Se tantas mortes servirão pelo menos para mudar o rumo do tratamento da questão da moradia, só o tempo dirá – mas, infelizmente os sinais não são muito animadores. O risco é de que, uma vez demolida a torre, a memória dos mortos fique ainda mais difusa, e a lembrança da tragédia se torne algo remoto e abstrato para muitos, um sonho ruim que passou.  

Fig.3 European Pressphoto Agency

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Entrevista Julia Valente

Entrevista Julia Valente

UPPs: Governo Militarizado e a Ideia de Pacificação

Uma entrevista com Julia Valente, mestre em Direito Penal, sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) implantadas no Rio de Janeiro.

Foto Ricardo Moraes

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) implantadas no Rio de Janeiro, em 2008, são comumente vistas apenas pelo viés da segurança pública, do combate ao tráfico de drogas e ao “crime organizado”. Por outro lado, há inúmeras denúncias contra as muitas ações arbitrárias e ilegais cometidas por agentes estatais contra os moradores das favelas em que esse programa foi instalado. Denuncia-se ainda a falta de implementação de outros programas sociais nesses territórios, que acabam submetidos tão somente à lógica da segurança pública. Ampliando esse debate, a advogada e mestre em Direito Penal pela UERJ, Júlia Valente, nos mostra como o programa das UPPs está alinhado aos interesses do mercado e às tendências globais do urbanismo neoliberal. Júlia lançou, em 2016, pela editora Revan, o livro “UPPs: Governo Militarizado e a Ideia de Pacificação”.

Em seu trabalho, fica clara a relação entre a implementação do programa das UPPs e os megaeventos (Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e Olímpiadas do Rio de 2016). Qual a relação entre os territórios em que foram instaladas as UPPs e os megaeventos?

As UPPs, como os megaeventos, fazem parte de um mesmo projeto militarista-empresarial de cidade em curso no Rio de Janeiro. A ocupação militarizada dos territórios de pobreza serviam à estratégia de segurança desses eventos, então os territórios em que foram instaladas eram estrategicamente localizados: comunidades no entorno dos locais em que esses eventos iriam acontecer, na Zona Sul carioca e nos corredores de trânsito do turismo. Era necessário manter a aparência de controle e segurança nos locais que estavam à vista do público.

Fig1 Capa do livro “UPPs: Governo Militarizado e a Ideia de Pacificação”, de Julia Valente

Terminados os megaeventos, com a queda dos investimentos privados na cidade do Rio de Janeiro e a situação calamitosa das finanças do Estado do Rio de Janeiro, qual sua expectativa para as UPPs?

Para os críticos do projeto, a expectativa desde o início era que as UPPs não seriam viáveis a longo prazo, o projeto era insustentável por demandar vultuosos e crescentes investimentos e os ambiciosos planos de expansão simplesmente irreais. A crise afeta o Estado do Rio de Janeiro de forma estrutural e já vemos as consequências no campo da segurança pública. O Estado procura defender as UPPs a todo custo, afirma que não vai retroceder, mas manter o projeto “com ajustes”, o que significa realocar policiais, cortar gastos e colocar os policiais (com salários atrasados) em situações cada vez mais precárias e vulneráveis. Ele está tentando sustentar a imagem e o discurso criado em torno do projeto, mas a falência já foi decretada de antemão, pois as UPPs não representaram uma transformação profunda com a forma de lidar com as favelas. Com o incremento da violência, o Estado vai lidar da forma com que sempre lidou: com a repressão militarizada. Hoje temos operações mais ostensivas, com maior aparato bélico, que remete às incursões anteriores às ocupações. A lógica da guerra nunca foi de fato abandonada. Se em algum momento a violência letal diminuiu, hoje temos mortes dia sim dia não em conflitos armados em favelas com UPPs, de acordo com os dados coletados pelo aplicativo Fogo Cruzado da Anistia Internacional.

Fig1 Vista da favela e da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no Complexo do Alemão no Rio – Foto: Daniel Marenco

Em quais experiências anteriores o programa das UPPs foi inspirado?

As UPPs se inspiram diretamente no modelo dos Proyectos Urbanos Integrales implantados na cidade de Medellín, na Colômbia. No início de 2007, o então governador Sérgio Cabral e seu Secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame visitaram Medellín e de lá voltaram como o modelo de “retomada de território” com o apoio das forças militares seguida de ocupação permanente acompanhada de iniciativas sociais. Mesmo os teleféricos nos morros do Rio foram inspirados no colombiano. Entretanto, embora Medellín seja uma cidade comparável ao Rio de Janeiro, a situação do tráfico de drogas lá é ainda mais complexa, pois envolve também guerrilhas. Além disso, quando as UPPs foram implementadas aqui, o modelo de lá já estava em crise, com um novo aumento das taxas de criminalidade, particularmente do número de homicídios. O que houve na Colômbia foi uma reconfiguração dos poderes dos diferentes atores: as guerrilhas foram contidas, mas os grupos paramilitares se fortaleceram. No Rio de Janeiro também houve um rearranjo de poderes, mas não sabemos ainda avaliar a extensão de suas consequências.

Dentro de um contexto de “reestruturação urbana”, em que o capital imobiliário e financeiro buscam cada vez mais novos territórios para se reproduzir nas cidades, qual é o papel das UPPs ?

David Harvey explica que o capital passa por crises cíclicas de superacumulação e então precisa encontrar formas de se expandir para que o excedente seja absorvido e não se desvalorize. Umas das formas de fazê-lo é buscar novos territórios, novos mercados consumidores. Na política da “pacificação” o Estado usa seu poder militar para abrir caminho para a exteriorização no território das favelas da atividade econômica baseada no mercado, permitindo a continuidade da acumulação de capital no contexto de um projeto empresarialista de cidade. Nesse sentido, as UPPs buscam “incluir” a população das favelas através de uma cidadania mediada pelo consumo. Querem que os pobres tenham poder de consumo e paguem pelos serviços fornecidos pelas empresas e pelo Estado. Além disso, há uma valorização do território ligada à especulação imobiliária o que leva à “remoção branca” de muitas famílias. Qual o impacto das UPPs na vida cotidiana das pessoas que habitam os territórios atingidos? Nesses territórios o traficante fortemente armado dá lugar ao policial fortemente armado. O policiamento ostensivo se torna uma constante, não sendo realizado por uma “polícia de proximidade”, mais cidadã, como se prometia. A presença constante da polícia, que não é adequadamente preparada, leva a uma série de violações como as frequentes abordagens. A vida das pessoas passa a ser mais regulamentada e direitos são restringidos. Além disso, o custo de vida sobe com os custos dos serviços regularizados e a especulação imobiliária e as alternativas informais desenvolvidas pelos moradores à falta de serviços são desarticuladas.