A gestão empresarial da política municipal de Belo Horizonte: o caso da PBH Ativos

A gestão empresarial da política municipal de Belo Horizonte: o caso da PBH Ativos

A gestão empresarial da política municipal de Belo Horizonte: o caso da PBH Ativos

Como o modelo empresarial de gestão urbana leva a transferência de riquezas do setor público para o privado e afeta a experiência democrática nas cidades.

Imagem projeto Nova BH / 2013
Prefeitura de Belo Horizonte
Datada de 25 de novembro de 2010, a lei nº 10.003 “autoriza a criação de sociedade sob o controle acionário do município de Belo Horizonte (…), sob forma de sociedade anônima, a qual funcionará por tempo indeterminado” e, em 09 de junho do ano seguinte, institui pelo decreto 14.444 o estatuto social da PBH Ativo. A empresa, conforme descrito em sua página de internet, tem por missão auxiliar a Prefeitura Municipal na articulação e operacionalização de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico e social do município, por meio i) da gestão de obra de infraestrutura; ii) da instituição de parcerias públicos-privadas; iii) da captação de recursos financeiros; iv) da administração patrimonial; v) da gestão de ativos e de imóveis.

O descrito no decreto 14.444 demonstra quais os limites que a empresa PBH Ativos vai atuar e o que se constata é a violenta entrada na prática pública do município. Ao titular, administrar e explorar economicamente os ativos da prefeitura, primeiro ‘objeto social’, a empresa irá gerar riqueza a partir de recursos públicos, investindo ou deixando de investir orientada apenas pelas necessidades impostas pela lógica do lucro. Quando se descreve seu “auxílio” para gerenciar ou realizar obras licitadas ou de infraestrutura e de serviços urbanos, a própria lei complementa que a empresa deverá “sempre que possível obter ganho econômico”. Fica ainda claro o movimento contemporâneo de articulação do capital financeiro com a prática da política municipal quando se delimita o auxílio à captação de recursos financeiros no mercado[1], gerando assim o sistema de dívida, sendo que o setor público assume todos os riscos – em moldes fadados ao fracasso, como o caso da Grécia.

Assim, deixa-se evidente a intenção da política urbana mimética ao modelo do mercado: seu objetivo é garantir lucro para remunerar os investidores.

Esta empresa, que objetiva dar lucro acima de tudo, é criada sob a forma de uma Sociedade Anônima, incluindo a participação não apenas de empresas da prefeitura, como a BH-TRANS e a PRODABEL como sócio-minoritárias, mas também de pessoas físicas, como demonstra a tabela a seguir da Lei 10.003:

TABELA 01: DISTRIBUIÇÃO ACIONÁRIA DESCRITA NA LEI 10.003

Isso significa que parte dos lucros das empresas é compartilhado com pessoas físicas. Ainda deve ser destacado que a distribuição acionária apenas aparece como documento público na lei de criação da empresa, sendo que, desde então, não foram encontrados documentos que demonstrassem sua atualização[2]. Depois que foi baixado o decreto de número 14.444, de 9 de junho de 2011, que, no seu artigo quinto, aumenta para o limite de 20% do capital social a presença de pessoas físicas e jurídicas do direito privado na empresa, é improvável que a lista não tenha tido mudanças. Ou seja, não é de conhecimento do público de Belo Horizonte aqueles responsáveis por aplicar e coordenar grande parte das novas políticas urbanas para a capital mineira, muito menos sabemos dos seus vínculos com empresas ou seus interesses por detrás desta estrutura financeira construída.

Não é de conhecimento do público de Belo Horizonte aqueles responsáveis por aplicar e coordenar grande parte das novas políticas urbanas para a capital mineira

Dessa forma, o capital social da empresa, criado sobretudo a partir do orçamento público, vai remunerar acionistas desconhecidos como pessoas físicas e jurídicas privadas e que podem usar a PBH Ativos S/A para enriquecimento próprio, às custas do poder público. Além disso, nada garante que decretos futuros não possam aumentar ainda mais a participação de entes privados na empresa pública, radicalizando o empresariamento da esfera pública de Belo Horizonte.

[2] Deve ser ressaltado que o grupo de pesquisa da UFMG Indisciplinar e o movimento Auditoria Cidadã da Dívida acompanham esse processo e não encontraram também qualquer informação referente a esses dados mais atualizados, em especial depois do decreto 14.444.

Isso é ainda mais evidente quando considerado o aumento do capital da empresa. Como escrito na lei de criação, o capital da empresa era de R$ 254.974.385,83. Mas, ao longo de cinco anos, aconteceu um crescimento de mais de 300%, como consta no relatório financeiro de 2015, que coloca como capital da empresa o valor de R$ 1.180.207.000,00. Esse valor chegou a essa dimensão a partir de investimentos diretos da prefeitura, como aportes em direito, concessão de créditos a receber e transferências de terrenos públicos, como observado na tabela a seguir[3].

TABELA 02: INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL PELA PREFEITURA

A prefeitura transferiu créditos do Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte (DRENURBS) para a PBH Ativos S/A. Esses créditos provêm de negociações com a COPASA pela cessão de exploração de água e esgoto no município. Parte desses recursos deveriam ser usados em ações de saneamento. Outro aporte à companhia veio por meio de créditos tributários (como o IPTU, ITBI e ISS) em atraso e que foram parcelados. Assim, as parcelas referentes aos créditos cedidos, que são pagos pelos contribuintes, em vez de irem para o caixa da prefeitura, vão para o caixa da PBH Ativos.

[3] O grupo do Núcleo de Minas Gerais da Auditoria Cidadã da Dívida atuou diretamente na judicialização da criação da PBH Ativos denunciando que as receitas repassadas para a PBH Ativos S/A ocorrem sem nenhuma transparência dos valores e formatos utilizados. Para mais, ver: http://www.auditoriacidada.org.br/blog/meta_slider/pbh-ativos-s-a-a-quem-serve-o-governo-do-municipio-de-belo-horizonte/

Esses aportes de recursos diretamente dos cofres públicos oneram o orçamento do município exatamente na mesma medida em que fortalecem a movimentação de capital da empresa. Quanto maior o volume de recursos injetados na empresa, maior será o rombo do orçamento do município. Negando o processo, os responsáveis pela empresa indicam, como aconteceu na audiência pública no dia 15 de julho de 2016 na Câmara dos Vereadores, em ocasião de apresentação dos relatórios financeiros, que a transferência de recursos públicos para uma S/A é “uma pequena mudança”[4] já que a empresa também seria “pública”.

[4] Expressão utilizada pelo diretor executivo da PBH Ativos, Francisco Rodrigues do Santos, durante a audiência pública quando questionado sobre a transferência de recursos públicos para a empresa.

Uma das expressões mais flagrantes deste processo de dilapidação do patrimônio público é a aplicação de um mecanismo de transferência de terrenos públicos para a PBH Ativos, o que merece um desenvolvimento maior. Com a lei 10.699 de 2014, a prefeitura municipal autorizou a transferência de 53 terrenos públicos, a maioria deles recebidos via lei de parcelamento[5], para a PBH Ativos. A transferência desses terrenos, de acordo com a lei aplicada, fica condicionada a uma contrapartida financeira da PBH Ativos estipulada como ‘valor mínimo’ que deveria ser repassada aos cofres públicos. Todavia, esse valor está muito abaixo do valor praticado pelo mercado, sendo esse o principal mecanismo que permite à PBH Ativos abocanhar a riqueza pública para fins privados.

No mapa a seguir, apresenta-se a localização destes terrenos, com informação sobre o valor do metro quadrado no mercado do bairro em que se localiza e a diferença percentual entre o valor mínimo da transferência e o valor praticado no mercado imobiliário. Observa-se que o valor que a PBH Ativos se compromete a repassar para a prefeitura representa, em média, 18,03% do valor de mercado. Ou seja, mais de 80% do valor destes terrenos fica nas mãos da empresa privada.

[5] A lei de parcelamento prevê que todo parcelamento de glebas deve destinar 15% da área para o poder público a fim de realizar o desenvolvimento de equipamentos urbanos e comunitários.

Estes imóveis foram utilizados de duas maneiras: 1) vinte terrenos usados para integralizar o capital da empresa através de leilão[6] que poderiam chegar à faixa de 170 milhões de reais[7]; 2) os trinta e três terrenos restantes usados como garantia para as parcerias público-privadas que a PBH Ativos está articulando.

Como se não bastasse, foi emitida, também por força de decreto, de número 15.534 de 2014, a definição de que a PBH Ativos vai atuar junto à secretaria de Desenvolvimento, auxiliando a prefeitura em investimentos de infraestrutura, serviços públicos municipais, dentre outros. O decreto aumentou as prerrogativas da PBH Ativos S/A na administração municipal. Os custos financeiros das operações de debêntures de pagamento de juros e a remuneração dos seus investidores são cobertos pela PBH Ativos. Mas, para isso, seu ‘negócio’ deve dar lucro. Assim, o objetivo da política pública urbana é pervertido para a remuneração de investidores privados, mesmo sabendo, a partir de vasta literatura, que a intenção entre o lucro e o “bem-estar da população” (como deveria ser uma política pública) pode ser bem diversa.

O objetivo da política pública urbana é pervertido para a remuneração de investidores privados, mesmo sabendo que a intenção entre o lucro e o “bem-estar da população” (como deveria ser uma política pública) pode ser bem diversa.

Segundo o texto que institui a empresa, a PBH Ativos S/A deverá atuar em todas as PPPs que o município solicitar por meio do seu Conselho Gestor das Parcerias Públicos-Privadas. São previstos PPPs para o Mercado Distrital do Cruzeiro, para o Centro de Convenções de Belo Horizonte, para o Terminal Rodoviário Municipal, para iluminação pública, vilas produtivas e supermercado, estacionamentos e gestão dos rotativos, para o futuro Centro Administrativo Municipal, para cemitérios, para o Novo Sistema de Mobilidade Urbana Compartilhada, e para parques como o Parque Mangabeiras, o Jardim Zoológico, o Jardim Botânico, o Parque Ecológico e o Parque Barragem Santa Lúcia. Além desses, o comunicado existente no site da empresa afirma que ela já vinha atuando nas PPPs do município, oferecendo garantias a empreendimentos como o Projeto Inova (construção de escolas municipais, em parceria público-privada com Odebrecht) e o Projeto do Novo Hospital Metropolitano.

Com isso, a questão da política urbana municipal de Belo Horizonte fica condicionada aos lucros dessa empresa. Nesta forma de desenvolvimento, que ocorre a partir da integração entre capital financeiro e as políticas públicas, acaba-se, por fim, voltando-se para uma orientação que segue a lógica do lucro e prioriza os mecanismos de valorização do capital e não necessariamente o atendimento dos serviços e políticas públicas

O aumento de poder econômico da PBH Ativos não altera a condição de que, para exercer esta prática, o principal capital mobilizado pela empresa seja o capital político, baseado em informações privilegiadas e livre trânsito nos setores decisórios sobre investimentos diversos em infraestrutura.

O aumento de poder econômico da PBH Ativos não altera a condição de que, para exercer esta prática, o principal capital mobilizado pela empresa seja o capital político, baseado em informações privilegiadas e livre trânsito nos setores decisórios sobre investimentos diversos em infraestrutura. Esse capital político inclui ainda o controle sobre processos de parceria e, mais recentemente, sobre a administração de conjunto expressivo de terrenos da PBH. Sobre o poder da PBH Ativos, cabe resgatar que sua criação está relacionada a uma inflexão na gestão urbana: a transferência dos setores de planejamento urbano, que deixaram o setor de obras, planejamento e infraestrutura (antiga SMURBE) e passaram a fazer parte do setor de desenvolvimento econômico (atual Secretaria de Desenvolvimento) e, finalmente, tiveram seus produtos de maior interesse transportados para a empresa de viés financeiro. Esta transferência do setor de planejamento para o setor financeiro, quase sempre acompanhada de transferência da pessoa responsável pelo setor, detentor de informações privilegiadas e expertise na produção do espaço, não se trata de ocorrência isolada e ocorre em outras capitais, o que, mais uma vez, coloca as decisões relacionadas ao planejamento sob o critério da rentabilidade dos capitais investidos.

[6] O leilão foi barrado por decisão judicial perpetrada por movimentos sociais de Belo Horizonte, como Brigadas Populares, MLB e o Núcleo de Minas Gerais da Auditoria Cidadã da Dívida.

 

[7] Baseado na pesquisa do grupo de pesquisa Indisciplinar sobre a diferença entre os valores mínimos e os de mercado dos terrenos transferidos para a PBH Ativos.

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles.
thiago.canettieri@gmail.com

Daniel Medeiros

Arquiteto Urbanista, professor adjunto do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura e Design da UFMG.
danielmedeirosdefreitas@gmail.com

Lucca Mezzacappa

graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e pesquisador nos projetos de extensão Urbanismo Biopolítico e BH S/A do Grupo de Pesquisa Indisciplinar.
luccamezz@gmail.com

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Por que as favelas de São Paulo queimam?

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Uma leitura territorial das últimas operações urbanas em São Paulo é uma dica para entendermos os incendios nas favelas?

Favela Naval, na Vila São José, em Diadema
foto Ricardo Trida/Agência Estado

São Paulo, como já disseram, é uma das capitais do capital. Sua reprodução é voltada para atender a certos imperativos que se opõem diametralmente às necessidades das classes populares, escancarando a contradição inerente à reprodução ampliada do capital no contexto da produção capitalista do espaço. Na periferia do capitalismo, vale lembrar, esse processo está calcado numa intrínseca violência contra as classes baixas, formando o que o geógrafo David Harvey[1] chamou de Acumulação por Despossessão. Essa é uma das facetas violentas do capital.

[1] David Harvey é um geógrafo britânico que vem se dedicando ao estudo sistemático da obra de Marx e sua atualização para o mundo contemporâneo, tendo publicado várias obras de referência sobre o assunto como: Os limites do capital; Condição Pós-Moderna; Neoliberalismo: história e implicações; O enigma do capital.

Junto com a criação do ambiente construído e de toda infraestrutura necessária para tal, que parecem ser a forma que o capital sobreacumulado[2] de várias esferas encontra para se reproduzir de maneira lucrativa, existe um fenômeno primordial descrito como destruição criativa. Esse processo significa a abertura de espaços no meio da cidade para que possam receber novas rodadas de investimento do capital. Ou seja, implica em destruir o que já está constituído para que o capital possa atuar naquele espaço e, dessa forma, garantir sua valorização.

Na verdade, essa é uma lógica que já era identificada por Engels, parceiro de Marx, em 1845 ao narrar A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Em suas palavras:

“O crescimento das grandes cidades modernas dá a terra em certas áreas, em particular as de localização central, um valor que aumenta de maneira artificial e colossal. Os edifícios já construídos nessas áreas lhes diminuem o valor, em vez de aumentá-lo, porque já não pertencem às novas circunstâncias. Eles são derrubados e substituídos por outros. Isso acontece, sobretudo, com as casas dos trabalhadores que têm uma localização central e cujo aluguel, mesmo com o máximo de superlotação, não poderá jamais, ou apenas muito lentamente, aumentar acima de um certo limite. Elas são derrubadas e no seu lugar são construídas lojas, armazéns e edifícios públicos.”

Tal processo insiste em se perpetuar. Mesmo dois séculos e meio mais tarde, a urbanização contemporânea segue os mesmos imperativos daqueles encontrados por Engels. O processo de destruição criativa se tornou essencial para a sobrevivência do sistema capitalista.

O processo de destruição criativa se tornou essencial para a sobrevivência do sistema capitalista.

No caso da produção do espaço metropolitano de São Paulo, a situação não é diferente da lógica hegemônica da urbanização capitalista assentada no mecanismo de acumulação por despossessão. Observa-se, nesse processo, uma constante presença da violência física contra as populações de baixa renda no sentido de abrir áreas para que ocorra o investimento e assim a acumulação de capital. Violência essa que é exercida tanto pelas vias legais, como pelos despejos, quanto também por vias, muitas vezes, que chegam pela ilegalidade. E essa, talvez, seja a chave de interpretação necessária para entender os incêndios nas favelas de São Paulo, que insistem em se manter recorrentes.

Apenas nos três primeiros meses de 2017, foram notificados 44 incêndios em favelas de São Paulo. No ano passado, foram 325 ocorrências. Fenômeno esse que, por coincidência ou não, parece ser correspondido pela gestão de Kassab em São Paulo, período (entre 2009 e 2013) no qual aconteceu uma série de incêndios nas favelas de São Paulo. Esse parece ser uma constante da vida nas periferias paulistas, onde acaba sendo recorrente lidar com incêndios devastadores que queimam os barracos de madeiras espalhados pela cidade.

Mas por qual razão as favelas queimam em São Paulo?

Se eliminarmos a hipótese de que as favelas paulistas são um composto químico de combustão espontânea, nos restam duas hipóteses: 1) devido à precariedade e à falta de assistência do Estado nas ligações de energias – condição básica para a vida hoje – as ligações feitas pelos próprios moradores estão sujeitas a falhas que poderiam iniciar incêndios. Ou 2) são estes incêndios criminosos, como demonstra o documentário “Limpam com Fogo” e uma série de análises espaciais, feita pelo Observatório das Remoções, ao longo de 2008 e 2013, que resultou no mapa abaixo.

 

Localização de incêndios em favelas de 2008 a 2012 e área das Operações Urbanas

[2] Aqui vale lembrar a contribuição marxista para uma teoria das crises no capitalismo. Segundo essa tradição, as crises seriam de sobreacumulação, ou seja, os regimes de acumulação chegam a níveis em que reinvestimento é impossível. Portanto, acaba existindo um excedente de capital que não encontra oportunidade de investimento e desencadeia uma crise, já que o capital é, seguindo o próprio Marx, um “valor que se valoriza” e mantendo-o parado, ele não cumpre sua função.

O mapa revela uma correspondência espacial clara entre os incêndios e as áreas de operações urbanas – mecanismo sabidamente usado para valorização dos capitais imobiliários e financeiros que atuam na cidade[3].

Com esses novos incêndios de 2016 e de 2017, ainda persiste o sentimento de desconfiança em relação às localizações das ocorrências de incêndio, que podem estar relacionadas a possíveis interesses imobiliários, evidenciando uma geografia do fenômeno nada aleatória, mas, pelo contrário, altamente seletiva.

Várias perguntas ainda restam não respondidas: quantas famílias são deslocadas em função do fogo? Quantos moradores são atingidos? Qual o destino das famílias atingidas por esses incêndios? O que vieram a ser dos terrenos das favelas que sofreram com incêndio desde 2008?

Essas perguntas parecem ser o indicativo para entender a causa, a função e as consequências que os incêndios em São Paulo possuem. A hipótese, mais uma vez, é que esses incêndios atuais indicam o interesse de limpar, com fogo, áreas que podem abrir oportunidades de investimento aos capitais.

Esses incêndios atuais indicam o interesse de limpar, com fogo, áreas que podem abrir oportunidades de investimento aos capitais.

Neste artigo, tentei articular essas evidências ao argumento de que a expansão do ambiente construído – como mecanismo de sobrevivência do capital – e a metropolização são resultado de uma série de violências, direta e indireta, contra a classe mais pobre da população: http://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/11810/9603

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles, com enfoque em crítica da economia política, teoria crítica e urbanismo neoliberal.
thiago.canettieri@gmail.com

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Crise, Golpe e Acumulação

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10 tópicos da conjuntura do capitalismo desde a América Latina

Imagem de capa
Bill Viola, The Raft, 2004

Neste 1° de Abril de 2017, relembrando os 53 anos do Golpe Militar que afastou Jango, a conjuntura diante de nós carrega algumas semelhanças. Os movimentos em torno da garantia de acumulação do capital, vez e outra, culminam em crises e golpes. Se em 1964 a situação econômica do país na distribuição de renda e nas reformas populares amedrontou as oligarquias nacionais e consolidou a entrada de capitais internacionais, hoje, capitalistas de todo o mundo, mais unidos do que imaginamos, empreendem um golpe de estado contra a presidenta eleita para aprovar reformas ‘impopulares’. A única certeza é que a política é a linha de frente da acumulação. E hoje, tal qual foi com o Golpe Militar, sentiremos na pele e nos ossos esse choque.

Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado.

Kafka

1

O sistema de produção de valor em vigor desde o século XIX opera sobre a lógica da cidade como mais-valor[1] ou do processo de urbanização como destino seguro para os excedentes de produção industrial[2]. Em um mundo finito, chegaria o tempo em que tal tática se esgotaria. O avançado estágio de urbanização mundial[3], somado à queda das taxas de natalidade, são os fatores constituintes da gradativa queda das taxas de urbanização (embora forçosamente empurrada a limites que beiram o surrealismo, como produção de cidades totalmente vazias na China[4] e a construção de ilhas artificiais com casas de veraneios para super-ricos), proporcionalmente acompanhadas da queda das taxas de crescimento econômico. Se não há urbanização, não há grande indústria, consequentemente não há empregos, pelo menos não como os que conhecemos.

 

[1] Categoria fundacional na obra de Marx em sua teoria do valor. O termo denota a diferença entre o valor final de uma mercadoria e o salário que o trabalhador receberia para produzi-la. E não seria errado afirmar que as cidades, no capitalismo, são elas próprias mercadorias.

[2] Até pouco tempo atrás impulsionado no Brasil pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (2007) e pelo Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV (2009).

[3] 2007 foi o ano em que a população mundial passou a ser majoritariamente urbana. No Brasil a maioria urbana é uma realidade desde os anos 1960, e conta hoje com 85% da população vivendo em cidades.

 

[4] Ver Distrito de Chenggong: archdaily.com/425651/how-to-bring-china-s-ghost-towns-back-to-life

2

Isso significa uma profunda crise do capital. Suas contradições internas, marcadas pela lei da concorrência, levaram a uma forma de organizar a produção que solapa a própria base de sua existência: a criação de mais-valor. Com isso, é preciso criar estratagemas, nada além de espelhos e fumaças, cheias de sutileza metafísica e manhas teológicas, para que o capital continue a circular – mesmo que de maneira fetichista[5]. A aparente valorização automatizada do capital financeiro não passa de uma ficção e, portanto, faz parte do movimento de crise.


3

Já há algum tempo a acumulação atingiu proporções contraprodutivas, gerando o que se conhece como ‘crise de sobreacumulação’. Se durante a era industrial-proletária os capitais driblaram os efeitos contraprodutivos com o estado de bem estar social, oferecendo ao proletariado adequações às reivindicações de melhores condições da reprodução da força de trabalho, com o declínio industrial os capitais substituíram a seguridade social por linhas de crédito, estágio intermediário entre a era industrial-proletária e a era da austeridade-precariada. O capitalismo sem crescimento nada mais é que o devir de um novo tempo.

 

[5] Para Marx, o verdadeiro valor (quantidade de trabalho materializado no objeto construído) só pode ser obtido durante o processo de produção, logo, o excedente da produção (mercadoria) ao ser comercializado, assume sua forma fetichista (ausência da relação com processo produtivo) de valor irreal. Freud formula o fetichismo como a dualidade de um sujeito diante de seu objeto de fetiche (comumente vinculações entre pulsões sexuais e objetos triviais como toucas de banho e sapatos), em parte, o sujeito encontra no objeto fetichizado um mais-de-gozar, e em parte reconhece que ali não há gozo, produzindo uma simultaneidade entre gozo e frustração. Interessa-nos, na intercessão das duas formulações, o seguinte: há no fetiche uma dimensão fantasmagórica e irreal, mas que encontra no comportamento uma via de prazer que impulsiona sua reprodução.

4

Diagnósticos equivocados ou de má-fé acompanham as falsas esperanças dadas pelo emprego forçado da cartilha neoliberal. Banco Mundial, FMI e outras instituições financeiras se esforçam em colar o ideário do sistema da dívida às periferias do capitalismo. E, claro, as linhas de crédito que oferecem são acompanhadas de uma série de condições que obrigam esses países a ficarem de joelhos diante da acumulação de papéis, ações e dinheiro sem valor[6] nos países do centro.

 

[6] Ideia desenvolvida por Robert Kurz em sua obra teórica. É a manifestação da contemporânea desvinculação entre o dinheiro e a substância abstrata do trabalho, o valor. A multiplicação do dinheiro ocorre de maneira automatizada e independente, muito mais rápida que a cristalização de trabalho sob a forma social de valor.

5

A solução que a racionalidade abstrata do capital encontra é, como sempre, o aumento sistemático da exploração como garantia de remuneração dos capitais. A acumulação há de ser salva, à custa do prolongamento da jornada de trabalho da mão de obra remanescente, de um crescente aumento de sua intensidade e da drástica redução da proteção ao trabalho. A reestruturação trabalhista[7], que protege os capitais em detrimento dos trabalhadores, redireciona o horizonte do trabalho a uma estética e política escravagista, principalmente em países periféricos que, devido a sua condição de dependência e subalternidade, se encontram, na divisão do trabalho, como responsáveis pela transferência de valor para os capitais sediados nos países centrais.

[7] No dia 31/03/2017 foi sancionada a PL 4302/1998 que flexibiliza a terceirização.

6

Isso indica que a condição da classe trabalhadora na periferia global é muito mais precária. O sistema de superexploração coloca homens, mulheres e, não raro, idosos[8] e crianças[9] num regime exaustivo de subemprego precário para garantir a manutenção da produção de mais-valor. É essa a interpretação que temos que ter quando levamos em conta as paisagens precárias e expansivas das favelas, os gigantescos e especulados deslocamentos até o trabalho, a violência estrutural e outras mazelas sociais que assolam historicamente esses países. Com a crise do capital, a tendência não pode ser outra que não o aumento estratosférico da expressão dessa condição, bem como da acumulação.

 

[8] Em disputa de regularização pela legislação golpista junto à PEC 287/16 – Reforma da Previdência.

 

[9] Mais de cinco milhões de crianças entre 5 e 13 anos trabalhavam, em 2016, de maneira ilegal no Brasil. A grande maioria submetida a trabalhos precários e de alto risco, como catadores de material reciclado em lixões.
 

7

O golpe anuncia a retomada da agenda da privatização com intensidade não vista desde os Fernandos (Collor de Melo e Henrique Cardoso), lançando, especificamente com a entrega do pré-sal, uma pá de cal sobre o que restava da soberania nacional. Parte das novas privatizações vêm acompanhadas de certas sofisticações[10], destaque para o modelo de seguridade das concessões em Parceria Público-Privada, em que os lucros ficam com as empresas e os prejuízos com o Estado, conferindo ao envelhecido sistema capitalista a virilidade que exige de si no mercado financeiro. Talvez, o maior prejuízo vinculado às privatizações sejam as alterações nos eixos de rigor no interior das relações de produção. Casos como o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana-MG (2015), a crise hídrica no Estado de São Paulo (2014), os apagões em escala nacional (2001), estão diretamente ligados à avidez financeira acampada na operação de serviços vitais ao povo brasileiro. Não é diferente a situação da Argentina, com a eleição de Maurício Macri, que tomou como uma de suas primeiras medidas um acordo com os fundos abutres, mantidos por investidores internacionais que esperam ganhar cerca de 1600% com o investimento realizado[11].

 

[10] O que inclui operações que hibridam mídia, STF e Polícia Federal, no ataque direto ao agronegócio, às construtoras e oligarquias nacionais.

[11] Esses investidores operam da seguinte maneira: 1) comprando títulos de dívida desvalorizados no mercado secundário, a um preço muito mais baixo que o do seu valor real; 2) recusa-se a participar em acordos de reestruturação com o Estado endividado; 3) e, por fim, passa exigir pela via judicial, incluindo embargos e outras penalidades, o pagamento total da dívida, o que pode implicar na soma do valor nominal mais juros e eventuais multas.

8

À vida cotidiana e popular, o golpe anuncia o achatamento das possibilidades de trabalho. Esse estreito horizonte revela apenas a patológica combinação de empreendedorismo, terceirização e austeridade, claramente nociva à saúde da classe trabalhadora, acompanhado da intensificação de acidentes, doenças do trabalho e depressão, que, simultâneos ao declínio do Sistema Único de Saúde[12], configuram o cenário de um desastre. A acumulação por espoliação[13], ou seja, o saque da renda das populações mais vulneráveis, seguirá com a alta dos juros, dos aluguéis e das passagens que subirão (como já o fazem) mais que do a inflação, enquanto os salários reais irão encolher ano após ano. O desemprego, cada vez mais, se tornará o fôlego para que, diante de um sistema de assistência social rarefeito, a população precarizada possa se mobilizar e cuidar de si mesma, e quem sabe, de quando em vez, ser financiada pelos mesmos bancos (travestidos de fundações caridosas) responsáveis pelo legado da precarização.


9

O golpe, enquanto inflexão econômica e social no Brasil, cumpre algumas funções: 1) econômica, diante da crise nos regimes de acumulação e a passagem para sua forma fictícia, a saída é a intensificação das explorações sistemática como forma de continuar extraindo e acumulando mais-valor; 2) legislativa, de reformular o Estado como anteparo entreguista e colonial para a estância confortável dos capitais internacionais na nova ordem de acumulação de valor, não mais por produção, mas por espoliação; 3) geopolítica, agravando o processo de recolonização da América Latina, o golpe leva à falência ou à privatização dos setores produtivos nacionais, cumprindo seu papel de posicionar no globo os países falidos e aqueles que ainda serão os remanescentes do setor produtivo, enquanto China e Rússia (potências bélicas), mantêm as atividades industriais, o Brasil, junto a todo o Sul Global, protagonizarão a falência do setor produtivo; 4) moral, ao solver as estruturas nacionais pela via de uma política reacionária, sexista, racista e violenta, o golpe veste o Estado como frágil e passivo, condiciona a população ao lugar da vergonha e da culpa, produzindo uma nova condição de mal estar na sociedade.

Imagem por Rafael Lage/Divulgação – Carta Capital
[12] Aprovada e em andamento, a PEC 55, que prevê 20 anos de recessão dos investimentos em saúde e educação.

[13] Ideia formulada por David Harvey na obra O Novo Imperialismo. Ed. Loyola, 2004


Bem-vindo ao deserto do real. Estamos navegando no veleiro destroçado de Kafka

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Bem-vindo ao deserto do real. Estamos navegando no veleiro destroçado de Kafka. O capitalismo como conhecemos, em estado terminal, já apresenta suas convulsões e abre as portas de um novo tempo do mundo. Se há uma única vantagem nessa conjuntura é que ela coloca às claras o Real, duro e cru. Isso nos localiza mais próximos do colapso total da nossa modernidade tardia. Um naufrágio certamente nos oferece aberturas e novas linhas de fuga, mas que não vêm acompanhados de qualquer garantia de melhora. Se vivermos este fim da história ele não será um final feliz. Afinal, nada não é tão ruim que não possa piorar e, no caso do capitalismo, essa parece ser a formulação mais verdadeira.

 

Imagem por Rafael Lage/Divulgação – Carta Capital

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles.
thiago.canettieri@gmail.com

Bernardo Neves

Mestrando em arquitetura e urbanismo no NPGAU-UFMG, com enfoque em movimentos sociais e planejamento urbano insurgente, pesquisador do Indisciplinar-UFMG.
bnp.arquiteto@gmail.com

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A financeirização das políticas públicas e da gestão nas cidades

O aprofundamento do neoliberalismo no mundo atinge as cidades e governo local.

O arranjo territorial de nossas cidades e os modelos de governança local estão, ambos, diretamente relacionados à intensificação de processos de neoliberalização em escala global[1]. A hegemonia do empresariamento urbano[2], ao mesmo tempo em que estrutura as condições de acumulação do capital, reproduz modelos de desenvolvimento econômico e modelos de urbanização cada vez mais excludentes. A financeirização, prática central entre as frentes de neoliberalização na política urbana, se caracteriza pela capacidade de transformar qualquer fluxo de rendimento em título para negociação e especulação[3].

Quando defrontado com o momento de profunda crise do início dos anos de 1970, o ideário da neoliberalização promoveu, de modo surpreendente, a derrubada de barreiras para a absorção dos excedentes de capital, inventando as novas formas de especulação, em especial aquelas ligadas à produção do espaço. Com isso, a produção do espaço nas cidades e a sua gestão pelo poder municipal passaram a ter destacada importância dentro do modelo neoliberal de política econômica. Desse modo, cidades, regiões e até países inteiros passaram a construir sua gestão a partir de uma ótica empresarial, buscando associar todos os setores de gestão e de serviços, até então relativamente públicas, à esfera privada – abrindo espaço para investimentos, atraindo o máximo de capitais e abrindo concessões e vantagens para grupos empresariais.

Algumas das muitas frentes de articulação entre as práticas de financeirização e a produção do espaço podem ser elencadas: i) Operações Urbanas; ii) revitalizações de áreas consideradas degradadas; iii) conversão de patrimônio público em ativos financeiros; iv) financiamentos através de fundos de pensão; v) incentivos fiscais para capitais investidores; vi) novas modalidades de parceria com o capital privado; vii) estruturação de empresas de administração indireta de capital aberto.

No Brasil, o interesse do capital financeiro nas cidades aumentou consideravelmente diante da abundância de crédito no setor habitacional e do modo como isso impulsionou o setor de construção civil; da pressão dos investidores internacionais para que as empreiteiras diversificassem seu mercado; e da máxima apropriação de renda através de projetos de larga escala, cada vez mais priorizados pela política urbana. Por exemplo, o interesse estratégico das maiores empreiteiras nacionais em ampliar sua atuação se traduz em novas frentes de investimentos imobiliários e aquisição de terras; participação na incorporação de grandes empreendimentos privados; parcerias na construção de equipamentos públicos; e interesse na concessão de serviços públicos relacionados a esses projetos, tais como, manutenção e gestão de estruturas viárias, modais de transporte, saneamento, coleta de lixo e equipamentos públicos.

[1] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: crítica da razão neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
[2] HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço e debates, São Paulo, n.39, p.48-64, 1996.
[3] Como argumento Daniel Sanfelici em sua tese de doutorado “A metrópole no ritmo das finanças” defendida em 2013 no programa de pós-graduação em Geografia da USP.

Nesse contexto, o Estado possui uma atuação determinante na transposição de tal prática para a política econômica, uma vez que é ele quem cria as condições propícias para sua infiltração na esfera pública, visando atrair maiores investimentos, sobretudo através da reconfiguração do aparato regulatório e seu pleno desenvolvimento na esfera privada. Para além do papel de (re) regulador, o Estado arca, ainda, com os principais custos, financiando a maior parte dos projetos. Como exemplo, podemos destacar a crescente importância dos fundos de pensão nas PPPs, nos grandes projetos de infraestrutura e empreendimentos imobiliários[4], e o modo como, além de funcionar como fluxo de capital para estes setores, a rentabilidade dos fundos pode ser ampliada quando combinada à canalização de investimentos públicos e consequente valorização do solo urbano onde é aplicado.

Em diferentes cidades, o poder público altera organogramas institucionais para criar instâncias capazes de abrigar a financeirização com menores entraves à ação do capital. Entre tantos, pode-se citar a experiência de São Paulo com a Cia Paulista de Securitização (CPSEC), ou a abertura do capital da SABESP. A prefeitura de Belo Horizonte, sob a gestão de Márcio Lacerda, criou em 2014 a empresa PBH Ativos, fundamentada na antecipação de fluxo financeiro através de parcelamento de créditos tributários. Também em Porto Alegre, medida semelhante foi tomada com a criação da Empresa de Gestão de Ativos do Município de Porto Alegre, a INVESTE POA.

[4] ROLNIK, Raquel. Guerra de lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.

Um exemplo pode ser bem ilustrativo. Em 1994, a SABESP[5] deixou de ser 100% estatal, tornando-se uma empresa de economia mista e capital aberto. Em 1997, suas ações foram transferidas à Bovespa e, em 2002, passaram a ser negociadas na Bolsa de Valores de Nova York. O governo de São Paulo detém hoje 50,3% das ações enquanto o restante é negociado e especulado nos mercados financeiros internacionais. Assim, os acionistas privados acabam pressionando a forma como é gerido o serviço de distribuição de água e tratamento de esgoto de São Paulo tendo como única orientação a busca por uma maior rentabilidade, que o permite receber dividendos dos lucros e negociar a ação da empresa. O que se observou desde então foi a maximização dos lucros dos acionistas – em 2013, tiveram um lucro líquido de R$ 1,9 bilhões – ao passo que os investimentos que poderiam ter evitado a crise hídrica que assolou o estado de São Paulo em 2014, como a ampliação da rede de captação e saneamento, foram minimizados. O interesse dos acionistas – que muitas vezes sequer sabem que tipo de empresa estão decidindo os rumos com suas especulações e remuneração de capital – é apenas o lucro.

[5] http://ponte.cartacapital.com.br/sao-pedro-nao-tem-acoes-da-sabesp/

E é nessa mesma direção que a prestação de serviços municipais de Belo Horizonte e Porto Alegre está indo. A regulamentação de cada uma dessas empresas de economia mista na forma de sociedade anônima passa a ser responsável por orçar e contratar a prestação de vários serviços urbanos. A partir do decreto 15.534 de 2014, a PBH Ativos vai atuar junto à secretaria de Desenvolvimento, auxiliando a prefeitura em investimentos de infraestrutura, serviços públicos municipais, dentre outros. O decreto aumentou as prerrogativas da PBH Ativos S/A na administração municipal. Os custos financeiros das operações de debêntures[6] de pagamento de juros e a remuneração dos seus investidores são cobertos pela PBH Ativos. Mas, para isso, seu ‘negócio’ deve dar lucro[7]. Assim, o objetivo da política pública urbana é pervertido para a remuneração de investidores privados, mesmo sabendo, a partir de vasta literatura, que a intenção entre o lucro e o “bem-estar da população” (como deveria ser uma política pública) pode ser bem diversa.

[6] A debênture é um valor mobiliário emitido por sociedades por ações, representativo de dívida, que assegura a seus detentores o direito de crédito contra a companhia emissora. Consiste em um instrumento de captação de recursos no mercado de capitais, que as empresas utilizam para financiar seus projetos. É uma forma também de melhor gerenciar suas dívidas.
[7] http://www.sinfisco.com.br/artigo-pbh-ativos-s-a-a-quem-serve-o-governo-do-municipio-de-belo-horizonte/

Segundo o texto que institui a empresa, a PBH Ativos S/A[8] deverá atuar em todas as PPPs que o município solicitar por meio do seu Conselho Gestor das Parcerias Públicos Privadas. São previstos PPPs para vários serviços públicos prestados, como para o Mercado Distrital do Cruzeiro, o Centro de Convenções de Belo Horizonte, o terminal rodoviário municipal, serviços de iluminação pública, vilas produtivas e supermercado, de estacionamentos e gestão dos rotativos, do futuro centro administrativo municipal, de cemitérios, do Novo Sistema de Mobilidade Urbana Compartilhada, e de parques como o Parque Mangabeiras, o Jardim Zoológico, o Jardim Botânico, o Parque Ecológico e o Parque Barragem Santa Lúcia. Além dos previstos, o comunicado existente no site da empresa afirma que ela já vinha atuando nas PPPs do município, oferecendo garantias a empreendimentos como o Projeto Inova (construção de escolas municipais, em parceria público-privada com Odebrecht) e o Projeto do Novo Hospital Metropolitano.

[8] http://www.pbhativos.com.br/leis-decretos

Em Porto Alegre, a empresa está autorizada a usar todos os terrenos e imóveis de que a cidade é proprietária, como o Araújo Viana, o Mercado Público, o Gasômetro, além do capital de todas as empresas públicas da cidade como garantia para a emissão de títulos de dívida que são feitos sob a forma de debenture – que tem uma capacidade de liquidação muito mais atrativa aos investidores privados do que os títulos de dívida pública. Até mesmo os créditos e impostos que a cidade tenha por receber poderão ser “penhorados” como garantia para esses títulos. O projeto ainda autoriza que o fundo formado por esses recursos seja investido pelo conselho dos acionistas na empresa – e não pela própria prefeitura.

Quando essa lógica chega ao governo do município e se consolida, várias questões se desdobram: i) redução da experiência da democracia na construção da cidade, já que políticas públicas serão decididas e gestadas por um grupo de acionistas e diretores que a população não elegeu e desconhece; ii) política pública sendo pensada e realizada para gerar lucro e remunerar investidores; iii) transferência de patrimônio público para os cofres da empresa que possui dinâmica baseada na rentabilidade de suas práticas econômicas; iv) redução de receita do município por meio das estratégias de formação de capital da empresa; v) riscos do negócio assumidos pelo poder público e ganhos pela iniciativa privada.

Por fim, vale destacar que a gestão empresarial da cidade é uma estratégia de remunerar capitais privados às custas do orçamento público, transformando a cidade em um grande negócio, a ser gerido como uma empresa privada. Portanto, a tendência é que se observa, cada vez mais, é dessas práticas e racionalidades neoliberais tomando conta dos investimentos e gestões públicas em um intenso processo de privatização, em que o capital privado sai sempre ganhando às custas do poder público. Assim, o capital tem encontrado variadas formas de garantir sua reprodução: através de vários malabarismos jurídicos, legislativos e financeiros.

[9] http://www.ceapetce.org.br/noticias/quando-porto-alegre-deixou-de-ser-nossa-/

Texto por:

Daniel Medeiros

Thiago Canettieri

Lucca Mezzacappa