Por que as favelas de São Paulo queimam?

Por que as favelas de São Paulo queimam?

Por que as favelas de São Paulo queimam?

Uma leitura territorial das últimas operações urbanas em São Paulo é uma dica para entendermos os incendios nas favelas?

Favela Naval, na Vila São José, em Diadema
foto Ricardo Trida/Agência Estado

São Paulo, como já disseram, é uma das capitais do capital. Sua reprodução é voltada para atender a certos imperativos que se opõem diametralmente às necessidades das classes populares, escancarando a contradição inerente à reprodução ampliada do capital no contexto da produção capitalista do espaço. Na periferia do capitalismo, vale lembrar, esse processo está calcado numa intrínseca violência contra as classes baixas, formando o que o geógrafo David Harvey[1] chamou de Acumulação por Despossessão. Essa é uma das facetas violentas do capital.

[1] David Harvey é um geógrafo britânico que vem se dedicando ao estudo sistemático da obra de Marx e sua atualização para o mundo contemporâneo, tendo publicado várias obras de referência sobre o assunto como: Os limites do capital; Condição Pós-Moderna; Neoliberalismo: história e implicações; O enigma do capital.

Junto com a criação do ambiente construído e de toda infraestrutura necessária para tal, que parecem ser a forma que o capital sobreacumulado[2] de várias esferas encontra para se reproduzir de maneira lucrativa, existe um fenômeno primordial descrito como destruição criativa. Esse processo significa a abertura de espaços no meio da cidade para que possam receber novas rodadas de investimento do capital. Ou seja, implica em destruir o que já está constituído para que o capital possa atuar naquele espaço e, dessa forma, garantir sua valorização.

Na verdade, essa é uma lógica que já era identificada por Engels, parceiro de Marx, em 1845 ao narrar A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Em suas palavras:

“O crescimento das grandes cidades modernas dá a terra em certas áreas, em particular as de localização central, um valor que aumenta de maneira artificial e colossal. Os edifícios já construídos nessas áreas lhes diminuem o valor, em vez de aumentá-lo, porque já não pertencem às novas circunstâncias. Eles são derrubados e substituídos por outros. Isso acontece, sobretudo, com as casas dos trabalhadores que têm uma localização central e cujo aluguel, mesmo com o máximo de superlotação, não poderá jamais, ou apenas muito lentamente, aumentar acima de um certo limite. Elas são derrubadas e no seu lugar são construídas lojas, armazéns e edifícios públicos.”

Tal processo insiste em se perpetuar. Mesmo dois séculos e meio mais tarde, a urbanização contemporânea segue os mesmos imperativos daqueles encontrados por Engels. O processo de destruição criativa se tornou essencial para a sobrevivência do sistema capitalista.

O processo de destruição criativa se tornou essencial para a sobrevivência do sistema capitalista.

No caso da produção do espaço metropolitano de São Paulo, a situação não é diferente da lógica hegemônica da urbanização capitalista assentada no mecanismo de acumulação por despossessão. Observa-se, nesse processo, uma constante presença da violência física contra as populações de baixa renda no sentido de abrir áreas para que ocorra o investimento e assim a acumulação de capital. Violência essa que é exercida tanto pelas vias legais, como pelos despejos, quanto também por vias, muitas vezes, que chegam pela ilegalidade. E essa, talvez, seja a chave de interpretação necessária para entender os incêndios nas favelas de São Paulo, que insistem em se manter recorrentes.

Apenas nos três primeiros meses de 2017, foram notificados 44 incêndios em favelas de São Paulo. No ano passado, foram 325 ocorrências. Fenômeno esse que, por coincidência ou não, parece ser correspondido pela gestão de Kassab em São Paulo, período (entre 2009 e 2013) no qual aconteceu uma série de incêndios nas favelas de São Paulo. Esse parece ser uma constante da vida nas periferias paulistas, onde acaba sendo recorrente lidar com incêndios devastadores que queimam os barracos de madeiras espalhados pela cidade.

Mas por qual razão as favelas queimam em São Paulo?

Se eliminarmos a hipótese de que as favelas paulistas são um composto químico de combustão espontânea, nos restam duas hipóteses: 1) devido à precariedade e à falta de assistência do Estado nas ligações de energias – condição básica para a vida hoje – as ligações feitas pelos próprios moradores estão sujeitas a falhas que poderiam iniciar incêndios. Ou 2) são estes incêndios criminosos, como demonstra o documentário “Limpam com Fogo” e uma série de análises espaciais, feita pelo Observatório das Remoções, ao longo de 2008 e 2013, que resultou no mapa abaixo.

 

Localização de incêndios em favelas de 2008 a 2012 e área das Operações Urbanas

[2] Aqui vale lembrar a contribuição marxista para uma teoria das crises no capitalismo. Segundo essa tradição, as crises seriam de sobreacumulação, ou seja, os regimes de acumulação chegam a níveis em que reinvestimento é impossível. Portanto, acaba existindo um excedente de capital que não encontra oportunidade de investimento e desencadeia uma crise, já que o capital é, seguindo o próprio Marx, um “valor que se valoriza” e mantendo-o parado, ele não cumpre sua função.

O mapa revela uma correspondência espacial clara entre os incêndios e as áreas de operações urbanas – mecanismo sabidamente usado para valorização dos capitais imobiliários e financeiros que atuam na cidade[3].

Com esses novos incêndios de 2016 e de 2017, ainda persiste o sentimento de desconfiança em relação às localizações das ocorrências de incêndio, que podem estar relacionadas a possíveis interesses imobiliários, evidenciando uma geografia do fenômeno nada aleatória, mas, pelo contrário, altamente seletiva.

Várias perguntas ainda restam não respondidas: quantas famílias são deslocadas em função do fogo? Quantos moradores são atingidos? Qual o destino das famílias atingidas por esses incêndios? O que vieram a ser dos terrenos das favelas que sofreram com incêndio desde 2008?

Essas perguntas parecem ser o indicativo para entender a causa, a função e as consequências que os incêndios em São Paulo possuem. A hipótese, mais uma vez, é que esses incêndios atuais indicam o interesse de limpar, com fogo, áreas que podem abrir oportunidades de investimento aos capitais.

Esses incêndios atuais indicam o interesse de limpar, com fogo, áreas que podem abrir oportunidades de investimento aos capitais.

Neste artigo, tentei articular essas evidências ao argumento de que a expansão do ambiente construído – como mecanismo de sobrevivência do capital – e a metropolização são resultado de uma série de violências, direta e indireta, contra a classe mais pobre da população: http://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/11810/9603

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles, com enfoque em crítica da economia política, teoria crítica e urbanismo neoliberal.
thiago.canettieri@gmail.com

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Por uma reforma urbana popular de resistência positiva contra a cidade-empresa neoliberal.

Imagem ocupações CEFET-MG

O ano 2017 se inicia com muitas incertezas e insegurança no tocante às políticas públicas no Brasil. O argumento da crise – indissociável do discurso que sustenta a governabilidade neoliberal na atualidade – busca legitimar medidas drásticas de contenção de investimentos públicos por parte do governo federal, a mais grave delas consubstanciada na aprovação da PEC 55, com graves implicações no orçamento público para as gerações presentes e futuras.

Nem mesmo as potentes ocupações estudantis de centenas de escolas, institutos federais e universidades por todo o país foram suficientes para barrar a aprovação da PEC 55. Independente da derrota especificamente quanto à aprovação da proposta de emenda constitucional, as ocupações estudantis serviram para a experimentação de novas formas de resistência positiva, auto-organizadas, e deram um fôlego novo ao movimento estudantil. Deixaram como maior legado o dispositivo de mobilização que julgo ser o mais adequado ao nosso conturbado momento histórico: #ocupatudo.

A palavra de ordem “ocupa tudo” não significou, aqui, tomar assento nas estruturas pseudodemocráticas para fins de tentar influir nos rumos da política institucional.

Diferentemente de outrora, no marco dos programas democráticos populares, a palavra de ordem “ocupa tudo” não significou, aqui, tomar assento nas estruturas pseudodemocráticas para fins de tentar influir – se é que hoje ainda há alguma abertura para isso – nos rumos da política institucional. Os canais de participação que já eram frágeis antes, agora, após o impeachment, ao menos no âmbito federal, tornaram-se completamente inócuos e desacreditados, a exemplo do Conselho Nacional das Cidades, o que também reflete uma crise de representação na qual a esfera instituída não é capaz de dar vazão aos desejos expressos nas lutas e resistências encampadas frente ao Estado-capital. Crise de representação, que já era evidente durante as jornadas de junho de 2013, quando o poder instituído, em todos os níveis, ficou atônita diante da multidão que protestava nas ruas sem saber com quem nem como negociar as pautas reivindicadas nos cartazes e nos corpos dos manifestantes.

As jornadas de junho performaram por contágio político reivindicações caras à cidade e deixaram explícito que as pautas trazidas às ruas estavam em sua maioria implicadas com a vida nas metrópoles. Mas as reivindicações dos(as) manifestantes não cabiam nos mecanismos tradicionais de negociação política e coube ao poder instituído apenas recuar, especialmente quanto ao aumento das tarifas do transporte público. As jornadas de junho e seus desdobramentos trouxeram outras narrativas, outras estéticas e outros modos de resistir que destoavam dos movimentos sociais e sindicais tradicionais, bem como dos movimentos pela reforma urbana, boa parte dos quais presos à institucionalidade e à política pública de provimento habitacional (programa Minha Casa, Minha Vida), tal como descrito por Pedro Arantes no texto “Da (Anti) Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades” (2013).

Ante a complexidade do atual cenário político, envolto numa crise cujo fim ainda parece distante, é preciso reconhecer que nós, enquanto agentes do campo de luta pela reforma urbana, fomos derrotados, muito antes da consumação do impeachment: é preciso que se reconheça isso. As bandeiras da reforma urbana sucumbiram perante o neodesenvolvimentismo atrelado à cartilha do urbanismo neoliberal que privilegia a casa-mercadoria e as parcerias público-privadas a despeito da gestão democrática das cidades.

As bandeiras da reforma urbana sucumbiram perante o neodesenvolvimentismo atrelado à cartilha do urbanismo neoliberal que privilegia a casa-mercadoria e as parcerias público-privadas a despeito da gestão democrática das cidades.

Nossas cidades estão cada vez mais reféns dos carros e não se vislumbra no horizonte próximo nenhuma inflexão em favor de outro paradigma de mobilidade urbana. A grande pauta que gerou a fagulha de junho em 2013 segue latente; ano após ano testemunhamos os aumentos abusivos das tarifas do transporte público. Belo Horizonte ostenta a maior tarifa do país: R$ 4,05 é o valor da tarifa nos ônibus municipais. Por outro lado, o paradigma da mobilidade privada individual motorizada se aprofunda e se comporta como um dos mecanismos de subjetivação individualista mais eficazes em detrimento do espírito de coletividade e da solidariedade: nos congestionamentos que se alastram em todas as metrópoles brasileiras são todos contra todos na batalha fratricida por espaço e locomoção.

O programa democrático popular encampado pelo PT e defendido pelos movimentos e entidades nacionais da Reforma Urbana não apenas não realizou o que prometeu, mas deu no seu contrário, numa antirreforma, como afirma Pedro Arantes no mencionado texto, ou seja, em um aprofundamento da privatização/mercantilização das cidades e do paradigma rodoviarista, da disseminação das parcerias público-privadas na produção do espaço com diversos projetos de expansão e requalificação urbana baseados em dados quantitativos e não qualitativos.

O programa Minha Casa, Minha Vida esteve muito longe de ser uma política habitacional capaz de garantir o direito à moradia adequada aos mais pobres e de avançar na efetivação do direito à cidade. É possível sustentar que o maior programa da história do Brasil de construção de moradias subsidiadas com recursos públicos, operado por instituições financeiras (CAIXA/Banco do Brasil), sequer possa ser designado como política pública habitacional de interesse social, situando-se melhor no terreno das medidas macroeconômicas anticíclicas e de impulso ao setor da construção civil, cada vez mais envolto no sistema financeiro de títulos e créditos.

Nada indica que o governo ilegítimo de Michel Temer mudará o rumo dessa antirreforma urbana, antes pelo contrário, a tendência é um aprofundamento da produção do espaço subordinada aos interesses de mercado. Resta saber qual será a postura dos movimentos nacionais e entidades do campo da reforma urbana frente o novo governo. Os movimentos sociais que conformam o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) sempre estiveram sob influência do programa democrático popular petista e, com a eleição de Lula em 2002, priorizaram travar a luta no campo institucional. Qual será a postura desses movimentos frente ao novo cenário inaugurado com o golpe? Há perspectiva de que a pauta da reforma urbana seja oxigenada e fortalecida sob outras diretrizes, para além do direito à moradia reduzido ao direito de propriedade?

Desde a redemocratização, especialmente com a promulgação da Constituição da República de 1988, os movimentos e entidades do Fórum Nacional de Reforma Urbana lograram inúmeras conquistas com incidência significativa na legislação urbanística. Do ponto de vista estritamente normativo e institucional, o Brasil se situa numa posição da vanguarda quanto à previsão de instrumentos de política urbana que visam assegurar a função social da cidade. Temos, assim, leis e instrumentos urbanísticos avançados, mas que não se traduzem no plano da efetividade, sobretudo na vida dos pobres urbanos cuja segregação é cotidianamente reproduzida e ampliada pela ação do Estado-capital. Em resumo, as tentativas de resolver problemas sociais com legislação e planos foram muitas na história do urbanismo brasileiro. Falta, porém, atrelar esse aparato legal à realidade social brasileira e aliá-lo a um sistema democrático de gestão e controle. Sobretudo, é necessário uma agenda política que vise operacionalizar o que, de fato, promoveria uma reforma urbana estrutural: o controle fundiário e imobiliário, em vias de garantir sua função social.

é necessário uma agenda política que vise operacionalizar o que, de fato, promoveria uma reforma urbana estrutural: o controle fundiário e imobiliário, em vias de garantir sua função social.

A fragilidade do marco legal urbanístico conquistado pela luta dos movimentos da Reforma Urbana ficou evidente com a recente promulgação da Medida Provisória nº. 759/2016, que revogou os capítulos III e IV da Lei nº. 11.977/09, também considerada a lei geral da regularização fundiária. Numa canetada, os importantes capítulos dessa lei, que tratam da regularização fundiária, deixaram de ter vigência por meio de uma medida provisória cujos critérios de urgência e oportunidade são altamente questionáveis. Trata-se do retrocesso de inúmeros avanços conquistados.

Entretanto, apesar do pessimismo relativo ao contexto macropolítico nacional, materializado em medidas antidemocráticas e ameaça aos direitos sociais, embates simbólicos e potentes, bem como conquistas e vitórias contundentes das lutas urbanas no Brasil têm se dado de especial modo em defesa dos bens comuns no enfrentamento direto aos grandes projetos metropolitanos que seguem a lógica da cidade-empresa e atentam contra o direito à cidade. Em Belo Horizonte, temos os exemplos das lutas contra as operações urbanas Nova BH e da Izidora que ainda não saíram do papel anos após terem sido anunciadas pela prefeitura. E Belo Horizonte, apesar das suas singularidades, não é exceção. Outros exemplos de potentes resistências positivas pós-junho contra o urbanismo neoliberal são Estelita, no Recife, Parque Augusta, em São Paulo e Cais Mauá, em Porto Alegre.

Em muitas metrópoles no país se verificam resistências potentes e amplas redes de mobilização que, em alguma medida, têm logrado postergar ou mesmo obstruir projetos e intervenções estruturais, parcerias público-privadas e atos administrativos antidemocráticos que ameaçam os bens comuns. Lutas e resistências positivas que se difundem sob novas narrativas, princípios e formas organizativas, sobretudo a partir das jornadas de junho de 2013, podem ser apreendidas e analisadas sob o prisma do comum.

O comum é compreendido tanto como campo privilegiado de enfrentamento ao Estado-capital, ou seja, através das lutas em defesa dos bens comuns no contexto da cidade-empresa subjugada ao planejamento estratégico, quanto como expressão das novas formas organizativas das resistências na atualidade, cada vez mais conectadas em redes colaborativas, caracterizadas pelo desejo coletivo de democracia real, autonomia, horizontalidade, produção de afetos, novas subjetividades, relações e modos de existência não capitalistas. Vale notar que os movimentos de resistência cada vez mais se apropriam de plataformas e novos dispositivos tecnopolíticos para produzir e disseminar informações, um saber crítico compartilhado, fruto da inteligência de enxame colocada a serviço da transformação social.

Por um lado, o comum está ameaçado pela disseminação das PPPs no contexto da cidade-empresa, por outro, se abre como possibilidade para a propagação de resistências positivas (que já trazem consigo “a cidade que queremos”) e produção de novas subjetividades no seio da metrópole. Acredito que as resistências positivas contra grandes projetos que denotam a lógica da cidade-empresa conformam, na atualidade, importantes trincheiras na ação política dos novos movimentos urbanos.

A análise do fenômeno urbano marcado pelo paradigma do planejamento estratégico e da cidade-empresa, arquétipo do urbanismo neoliberal, está bem avançada. Dessa crítica ao planejamento estratégico não decorre nenhum saudosismo ao planejamento estatal rígido e funcionalista, mas sim a constatação de que as mutações operadas no planejamento urbano nos marcos do neoliberalismo expressam, em última instância, a impossibilidade do Estado, em simbiose com o capital, em responder à problemática urbana orientada pela efetividade da função social da cidade e pela garantia da gestão democrática. Nesse cenário, não nos cabe flertar com o Estado planejador de outrora, nosso papel não é outro senão apostar nas resistências positivas que estão logrando frear grandes projetos do urbanismo neoliberal.

não nos cabe flertar com o Estado planejador de outrora, nosso papel não é outro senão apostar nas resistências positivas que estão logrando frear grandes projetos do urbanismo neoliberal.

Portanto, tanto melhor voltar os olhos e apostar nas múltiplas resistências travadas no seio das metrópoles. É possível extrair grandes aprendizados delas, dos territórios insurgentes onde novas práticas de sociabilidade são experimentadas, a exemplo das ocupações, de todas as espécies, e da cultura viva que emerge das periferias autoconstruídas. Em suma, nunca foi tão necessária a palavra de ordem “nada a temer!”, ou seja, #ocupatudo.

Joviano Mayer

Advogado popular do Coletivo Margarida Alves, militante das Brigadas Populares, mestre e doutorando em arquitetura e urbanismo pela UFMG, pesquisador do grupo Indisciplinar UFMG
mayerjoviano@gmail.com

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Crise, Golpe e Acumulação

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10 tópicos da conjuntura do capitalismo desde a América Latina

Imagem de capa
Bill Viola, The Raft, 2004

Neste 1° de Abril de 2017, relembrando os 53 anos do Golpe Militar que afastou Jango, a conjuntura diante de nós carrega algumas semelhanças. Os movimentos em torno da garantia de acumulação do capital, vez e outra, culminam em crises e golpes. Se em 1964 a situação econômica do país na distribuição de renda e nas reformas populares amedrontou as oligarquias nacionais e consolidou a entrada de capitais internacionais, hoje, capitalistas de todo o mundo, mais unidos do que imaginamos, empreendem um golpe de estado contra a presidenta eleita para aprovar reformas ‘impopulares’. A única certeza é que a política é a linha de frente da acumulação. E hoje, tal qual foi com o Golpe Militar, sentiremos na pele e nos ossos esse choque.

Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado.

Kafka

1

O sistema de produção de valor em vigor desde o século XIX opera sobre a lógica da cidade como mais-valor[1] ou do processo de urbanização como destino seguro para os excedentes de produção industrial[2]. Em um mundo finito, chegaria o tempo em que tal tática se esgotaria. O avançado estágio de urbanização mundial[3], somado à queda das taxas de natalidade, são os fatores constituintes da gradativa queda das taxas de urbanização (embora forçosamente empurrada a limites que beiram o surrealismo, como produção de cidades totalmente vazias na China[4] e a construção de ilhas artificiais com casas de veraneios para super-ricos), proporcionalmente acompanhadas da queda das taxas de crescimento econômico. Se não há urbanização, não há grande indústria, consequentemente não há empregos, pelo menos não como os que conhecemos.

 

[1] Categoria fundacional na obra de Marx em sua teoria do valor. O termo denota a diferença entre o valor final de uma mercadoria e o salário que o trabalhador receberia para produzi-la. E não seria errado afirmar que as cidades, no capitalismo, são elas próprias mercadorias.

[2] Até pouco tempo atrás impulsionado no Brasil pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (2007) e pelo Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV (2009).

[3] 2007 foi o ano em que a população mundial passou a ser majoritariamente urbana. No Brasil a maioria urbana é uma realidade desde os anos 1960, e conta hoje com 85% da população vivendo em cidades.

 

[4] Ver Distrito de Chenggong: archdaily.com/425651/how-to-bring-china-s-ghost-towns-back-to-life

2

Isso significa uma profunda crise do capital. Suas contradições internas, marcadas pela lei da concorrência, levaram a uma forma de organizar a produção que solapa a própria base de sua existência: a criação de mais-valor. Com isso, é preciso criar estratagemas, nada além de espelhos e fumaças, cheias de sutileza metafísica e manhas teológicas, para que o capital continue a circular – mesmo que de maneira fetichista[5]. A aparente valorização automatizada do capital financeiro não passa de uma ficção e, portanto, faz parte do movimento de crise.


3

Já há algum tempo a acumulação atingiu proporções contraprodutivas, gerando o que se conhece como ‘crise de sobreacumulação’. Se durante a era industrial-proletária os capitais driblaram os efeitos contraprodutivos com o estado de bem estar social, oferecendo ao proletariado adequações às reivindicações de melhores condições da reprodução da força de trabalho, com o declínio industrial os capitais substituíram a seguridade social por linhas de crédito, estágio intermediário entre a era industrial-proletária e a era da austeridade-precariada. O capitalismo sem crescimento nada mais é que o devir de um novo tempo.

 

[5] Para Marx, o verdadeiro valor (quantidade de trabalho materializado no objeto construído) só pode ser obtido durante o processo de produção, logo, o excedente da produção (mercadoria) ao ser comercializado, assume sua forma fetichista (ausência da relação com processo produtivo) de valor irreal. Freud formula o fetichismo como a dualidade de um sujeito diante de seu objeto de fetiche (comumente vinculações entre pulsões sexuais e objetos triviais como toucas de banho e sapatos), em parte, o sujeito encontra no objeto fetichizado um mais-de-gozar, e em parte reconhece que ali não há gozo, produzindo uma simultaneidade entre gozo e frustração. Interessa-nos, na intercessão das duas formulações, o seguinte: há no fetiche uma dimensão fantasmagórica e irreal, mas que encontra no comportamento uma via de prazer que impulsiona sua reprodução.

4

Diagnósticos equivocados ou de má-fé acompanham as falsas esperanças dadas pelo emprego forçado da cartilha neoliberal. Banco Mundial, FMI e outras instituições financeiras se esforçam em colar o ideário do sistema da dívida às periferias do capitalismo. E, claro, as linhas de crédito que oferecem são acompanhadas de uma série de condições que obrigam esses países a ficarem de joelhos diante da acumulação de papéis, ações e dinheiro sem valor[6] nos países do centro.

 

[6] Ideia desenvolvida por Robert Kurz em sua obra teórica. É a manifestação da contemporânea desvinculação entre o dinheiro e a substância abstrata do trabalho, o valor. A multiplicação do dinheiro ocorre de maneira automatizada e independente, muito mais rápida que a cristalização de trabalho sob a forma social de valor.

5

A solução que a racionalidade abstrata do capital encontra é, como sempre, o aumento sistemático da exploração como garantia de remuneração dos capitais. A acumulação há de ser salva, à custa do prolongamento da jornada de trabalho da mão de obra remanescente, de um crescente aumento de sua intensidade e da drástica redução da proteção ao trabalho. A reestruturação trabalhista[7], que protege os capitais em detrimento dos trabalhadores, redireciona o horizonte do trabalho a uma estética e política escravagista, principalmente em países periféricos que, devido a sua condição de dependência e subalternidade, se encontram, na divisão do trabalho, como responsáveis pela transferência de valor para os capitais sediados nos países centrais.

[7] No dia 31/03/2017 foi sancionada a PL 4302/1998 que flexibiliza a terceirização.

6

Isso indica que a condição da classe trabalhadora na periferia global é muito mais precária. O sistema de superexploração coloca homens, mulheres e, não raro, idosos[8] e crianças[9] num regime exaustivo de subemprego precário para garantir a manutenção da produção de mais-valor. É essa a interpretação que temos que ter quando levamos em conta as paisagens precárias e expansivas das favelas, os gigantescos e especulados deslocamentos até o trabalho, a violência estrutural e outras mazelas sociais que assolam historicamente esses países. Com a crise do capital, a tendência não pode ser outra que não o aumento estratosférico da expressão dessa condição, bem como da acumulação.

 

[8] Em disputa de regularização pela legislação golpista junto à PEC 287/16 – Reforma da Previdência.

 

[9] Mais de cinco milhões de crianças entre 5 e 13 anos trabalhavam, em 2016, de maneira ilegal no Brasil. A grande maioria submetida a trabalhos precários e de alto risco, como catadores de material reciclado em lixões.
 

7

O golpe anuncia a retomada da agenda da privatização com intensidade não vista desde os Fernandos (Collor de Melo e Henrique Cardoso), lançando, especificamente com a entrega do pré-sal, uma pá de cal sobre o que restava da soberania nacional. Parte das novas privatizações vêm acompanhadas de certas sofisticações[10], destaque para o modelo de seguridade das concessões em Parceria Público-Privada, em que os lucros ficam com as empresas e os prejuízos com o Estado, conferindo ao envelhecido sistema capitalista a virilidade que exige de si no mercado financeiro. Talvez, o maior prejuízo vinculado às privatizações sejam as alterações nos eixos de rigor no interior das relações de produção. Casos como o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana-MG (2015), a crise hídrica no Estado de São Paulo (2014), os apagões em escala nacional (2001), estão diretamente ligados à avidez financeira acampada na operação de serviços vitais ao povo brasileiro. Não é diferente a situação da Argentina, com a eleição de Maurício Macri, que tomou como uma de suas primeiras medidas um acordo com os fundos abutres, mantidos por investidores internacionais que esperam ganhar cerca de 1600% com o investimento realizado[11].

 

[10] O que inclui operações que hibridam mídia, STF e Polícia Federal, no ataque direto ao agronegócio, às construtoras e oligarquias nacionais.

[11] Esses investidores operam da seguinte maneira: 1) comprando títulos de dívida desvalorizados no mercado secundário, a um preço muito mais baixo que o do seu valor real; 2) recusa-se a participar em acordos de reestruturação com o Estado endividado; 3) e, por fim, passa exigir pela via judicial, incluindo embargos e outras penalidades, o pagamento total da dívida, o que pode implicar na soma do valor nominal mais juros e eventuais multas.

8

À vida cotidiana e popular, o golpe anuncia o achatamento das possibilidades de trabalho. Esse estreito horizonte revela apenas a patológica combinação de empreendedorismo, terceirização e austeridade, claramente nociva à saúde da classe trabalhadora, acompanhado da intensificação de acidentes, doenças do trabalho e depressão, que, simultâneos ao declínio do Sistema Único de Saúde[12], configuram o cenário de um desastre. A acumulação por espoliação[13], ou seja, o saque da renda das populações mais vulneráveis, seguirá com a alta dos juros, dos aluguéis e das passagens que subirão (como já o fazem) mais que do a inflação, enquanto os salários reais irão encolher ano após ano. O desemprego, cada vez mais, se tornará o fôlego para que, diante de um sistema de assistência social rarefeito, a população precarizada possa se mobilizar e cuidar de si mesma, e quem sabe, de quando em vez, ser financiada pelos mesmos bancos (travestidos de fundações caridosas) responsáveis pelo legado da precarização.


9

O golpe, enquanto inflexão econômica e social no Brasil, cumpre algumas funções: 1) econômica, diante da crise nos regimes de acumulação e a passagem para sua forma fictícia, a saída é a intensificação das explorações sistemática como forma de continuar extraindo e acumulando mais-valor; 2) legislativa, de reformular o Estado como anteparo entreguista e colonial para a estância confortável dos capitais internacionais na nova ordem de acumulação de valor, não mais por produção, mas por espoliação; 3) geopolítica, agravando o processo de recolonização da América Latina, o golpe leva à falência ou à privatização dos setores produtivos nacionais, cumprindo seu papel de posicionar no globo os países falidos e aqueles que ainda serão os remanescentes do setor produtivo, enquanto China e Rússia (potências bélicas), mantêm as atividades industriais, o Brasil, junto a todo o Sul Global, protagonizarão a falência do setor produtivo; 4) moral, ao solver as estruturas nacionais pela via de uma política reacionária, sexista, racista e violenta, o golpe veste o Estado como frágil e passivo, condiciona a população ao lugar da vergonha e da culpa, produzindo uma nova condição de mal estar na sociedade.

Imagem por Rafael Lage/Divulgação – Carta Capital
[12] Aprovada e em andamento, a PEC 55, que prevê 20 anos de recessão dos investimentos em saúde e educação.

[13] Ideia formulada por David Harvey na obra O Novo Imperialismo. Ed. Loyola, 2004


Bem-vindo ao deserto do real. Estamos navegando no veleiro destroçado de Kafka

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Bem-vindo ao deserto do real. Estamos navegando no veleiro destroçado de Kafka. O capitalismo como conhecemos, em estado terminal, já apresenta suas convulsões e abre as portas de um novo tempo do mundo. Se há uma única vantagem nessa conjuntura é que ela coloca às claras o Real, duro e cru. Isso nos localiza mais próximos do colapso total da nossa modernidade tardia. Um naufrágio certamente nos oferece aberturas e novas linhas de fuga, mas que não vêm acompanhados de qualquer garantia de melhora. Se vivermos este fim da história ele não será um final feliz. Afinal, nada não é tão ruim que não possa piorar e, no caso do capitalismo, essa parece ser a formulação mais verdadeira.

 

Imagem por Rafael Lage/Divulgação – Carta Capital

Thiago Canettieri

Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles.
thiago.canettieri@gmail.com

Bernardo Neves

Mestrando em arquitetura e urbanismo no NPGAU-UFMG, com enfoque em movimentos sociais e planejamento urbano insurgente, pesquisador do Indisciplinar-UFMG.
bnp.arquiteto@gmail.com

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Governo que congela investimentos em educação por 20 anos pode propor uma reforma que exija o dobro de investimentos no Ensino Médio?

Somado à exclusão de disciplinas, a Medida Provisória 746/16, que propõe a reforma do ensino médio, abre caminho para a mudança no Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e o financiamento da educação. Enquanto a primeira questão, a proposta de flexibilização do curriculum[1], está sendo minimamente discutida na sociedade, as perguntas sobre o financiamento da educação seguem como um ponto oculto na medida. Para tratar dele, é preciso questionar como a MP propõe o aumento gradativo da carga horária, de 800 para 1400 horas, mesmo tendo sido escrita pelo mesmo grupo que propôs a PEC 241/55, que congela os investimentos em educação por 20 anos.

É fácil perceber o crescimento nos gastos que a mudança de carga horária traria, afinal, somado ao investimento demandado por manutenção e operação (um corpo docente maior, a preparação de mais refeições e as demandas de funcionamento da escola), seria necessário um enorme gasto com infraestrutura, já que o número de escolas estaduais de ensino médio dobraria, pois a maioria delas funciona com um número amplo de alunos nos três turnos. Os repasses de verba da união para os estados são geridos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), atualmente presidido por Silvio Pinheiro, o advogado afiliado de ACM Neto, que ficou famoso em 2015 por liberar o alvará para a construção do edifício de Geddel Vieira Lima em Salvador. Ele será o responsável por gerir os 67 milhões de reais destinados ao fundo em 2017.

Apesar de o orçamento previsto para o ano indicar um repasse de recursos maior para a implementação do programa, a MP afirma que “Os recursos financeiros correspondentes ao apoio financeiro de que trata o parágrafo único do art. 5º correrão à conta de dotação consignada nos orçamentos do FNDE e do Ministério da Educação, observados os limites de movimentação, de empenho e de pagamento da programação orçamentária e financeira anual”. Ou seja: a nova escola terá que se ajustar ao congelamento de investimentos estipulado pela PEC 241/55. Mesmo a Política de Fomento estipulada pela MP expira em um prazo de quatro anos, como fica claro no artigo 12:

“A Política de Fomento de que trata o caput prevê o repasse de recursos do Ministério da Educação para os Estados e para o Distrito Federal pelo prazo máximo de quatro anos por escola, contado da data do início de sua implementação”.

Isso significa que os gastos constantes que o aumento da carga horária trarão não serão mais supridos após quatro anos, período em que a medida deve ter sido estendida para todo o país.

Um governo que se recusa ao diálogo e tem a seu lado veículos da imprensa coniventes com suas ações não precisa explicar como medidas tão contraditórias podem estar sendo tomadas ao mesmo tempo.

Na página do Novo Ensino Médio, destinada a responder perguntas frequentes, não há nenhuma menção ao financiamento da proposta. Especialistas em políticas públicas para a educação acreditam, contudo, que a MP marca uma mudança na distribuição do Fundeb e o início de um processo de privatização da escola pública.

Em entrevista para a Carta Capital, Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que a MP sugere uma concentração de recursos no ensino médio em detrimento do ensino fundamental. Isso significa que a união deve repassar mais verbas para o estado porque reduzirá os repasses dos municípios, responsáveis por um número muito maior de alunos. Se isso acontecer, veremos o fim do projeto de universalização de creches, previsto pela Lei 13005/2014. Mas, mesmo assim, é improvável que os gastos do Fundep dêem conta do impactante aumento no orçamento que a reforma do ensino médio exigiria.

Por isso, diversos pesquisadores chamam atenção para a possibilidade de formação de parcerias público-privadas entre escolas e empresas. O artigo 15 da MP afirma:

“Para efeito de cumprimento de exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer, mediante regulamentação própria, conhecimentos, saberes, habilidades e competências, mediante diferentes formas de comprovação, como:

I – demonstração prática;
II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
III – atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino;
IV – cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; e
VI – educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.”

É fácil perceber como as condições estipuladas pela MP abrem caminho para que instituições privadas de educação passem a vender para os estados formações técnicas ou mesmo cursos livres e que podem ser realizados à distância. Além disso, empresas poderão contratar os estudantes sob o argumento de realizarem a formação técnica. Para fortalecer essa possibilidade, o governo retirou dos professores responsáveis pela formação técnica a obrigatoriedade de formação acadêmica especializada, autorizando a contratação por “notório saber”.

O sucateamento das escolas públicas expandirá ainda mais a distância entre a escola pública e a privada, determinando de forma ainda mais injusta o destino de nossos jovens.

Isso confirma como a MP se aproxima da agenda neoliberal em voga no Brasil. O sucateamento das escolas públicas, com a baixa oferta de disciplinas e a pequena importância dada ao corpo docente, expandirá ainda mais a distância entre a escola pública e a privada, determinando de forma ainda mais injusta o destino de nossos jovens. A alternativa para a população pobre será frequentar escolas abandonadas combinadas a modelos educativos planejados e geridos por empresas sem nenhum interesse na área e incapazes de acompanhar um debate pedagógico sério. Para os estudantes, será oferecido um modelo educacional que se volta para o mercado de trabalho, pensando em adequá-lo às demandas do mesmo e, de forma alguma, propor possibilidades de emancipação.

Fernanda Dusse

Professora do CEFET-MG, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFMG, com enfoque em literaturas contemporâneas e a relação entre estética, ética e política.
fernandadusse@gmail.com

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A MP do Ensino Médio traz uma falsa promessa de liberdade para os alunos ao admitir escolas que ofereçam poucos conteúdos e complementem a formação com PPPs.

Imagem de capa por
Fábio Rodrigues Pozebom – Agencia Brasil

No último dia 16/02, o presidente não eleito sancionou a Medida Provisória 746/16, que trata da reforma do ensino médio, projeto de sua autoria. Apesar de o tema estar sendo debatido, a falta de informação sobre as leis que regem o cotidiano escolar leva a considerações equivocadas que seguem sendo veiculadas pela imprensa tradicional e impedem as reflexões necessárias sobre a falta de legitimidade da medida. Para que um debate sério seja conduzido, é preciso que estejamos cientes do Projeto de Lei elaborado por uma Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio, presidida pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que se reunia desde 2012. Pensando nisso, publicaremos aqui uma série de três textos[1] que debatem a questão, focando, respectivamente, na análise das propostas apresentadas na MP, nos problemas de financeirização e na crítica ao instrumento legal empregado.

Afinal, para debater as mudanças da Medida Provisória, precisamos, primeiramente, entender como está estruturado o curriculum do ensino médio atual, a partir da Lei de Diretrizes e Bases para a educação (LDB). A Lei, de 1996, opta por trabalhar com bases curriculares abrangentes, apostando na autonomia das escolas como fundamental para uma educação democrática. Isso significa que a LDB não determina quais disciplinas deverão ser ofertadas pela escola e trata apenas de alguns conteúdos obrigatórios. Assim, ela afirma que “os conteúdos oferecidos pela escola devem abranger, obrigatoriamente, os estudos de língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil” (Art.26 LDB).

Ao distinguir conteúdo e disciplina, a LDB pressupõe que não é necessário que a escola tenha uma matéria chamada matemática, por exemplo, mas que a linguagem matemática seja ensinada na grade escolar. A esse texto bastante abrangente, foram somadas duas leis: Lei 11.161, de 2005, que determinou a obrigatoriedade de ensino de uma língua estrangeira na escola, sendo o espanhol de oferta obrigatória e matrícula facultativa pelo aluno, e a Lei 11.684, de 2008, que versa sobre a obrigatoriedade de matrícula de todos os alunos em sociologia e filosofia.

Mas sabemos que mesmo com um curriculum tão flexível, as escolas seguem um padrão bastante parecido, ofertando um modelo quase exclusivo de educação organizado por cerca de 13 matérias obrigatórias para todos os alunos. A razão para isso é histórica e justificada pelo hábito: seguimos um modelo escolar antigo, pelo qual diversas gerações têm sido formadas, ignorando pesquisas mais recentes na área de pedagogia. Temos leis determinando a obrigatoriedade de espanhol, filosofia e sociologia na escola justamente porque esses conteúdos não estão tradicionalmente inseridos no curriculum e por isso não costumavam ser ofertados. O debate sobre a reforma no ensino médio – encerrado pela decisão arbitrária de uma medida provisória – acompanhava o desejo de tornar a escola mais dinâmica, democrática e justa e pensar em um modelo selecionado por pesquisadores da área e não mantido por razões tradicionais.

Porém, à proposta de lei que estava sendo debatida por educadores, organizou-se uma medida provisória feita por pessoas não afeitas ao tema da educação e que parecem se importar pouco com a qualidade das escolas. Com isso, a reforma do ensino médio, elaborada por um presidente golpista e um ministro da educação que se diz administrador, define que 60% do curriculum será ocupado por conteúdos obrigatórios (português, matemática, inglês, artes, educação física, sociologia e filosofia) e 40% ficará a critério dos alunos, sem sabermos bem quais opções serão dadas a ele.

O texto da MP é excessivamente sucinto, mas indica que os estudantes deverão escolher entre um de cinco percursos: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. A lei não determina, contudo, quantas dessas áreas deverão ser oferecidas pela escola e provavelmente o sucateamento acontecerá pela legitimidade de uma escola oferecer apenas uma ou duas delas – um exemplo: o percurso de linguagens está totalmente coberto pelas obrigatórias, já que ele é composto de língua portuguesa, inglês, artes e educação física. Nesse caso, a escola poderia não oferecer mais nenhuma disciplina? E que tipo de liberdade é garantida ao estudante se a escola onde ele está matriculado só garante uma opção de formação?

Falsa ideia de liberdade:
as escolas poderão oferecer uma única formação, impossibilitando que o estudante defina sua trajetória
.

Além disso, pela MP, ao mesmo tempo em que cai o número de disciplinas obrigatórias, aumenta-se a carga horária, que passará, gradativamente, de 800 para 1400 horas. Não parece contraditório isso ser feito pelo mesmo governo que congela os investimentos em educação pelos próximos 20 anos com a PEC 241/55?

A ênfase do governo nos benefícios de se oferecer a educação técnica junto ao ensino médio (o que seria, a princípio, apenas um de cinco percursos possíveis para os estudantes) aponta para a noção de que o ensino médio deve funcionar como um preparatório para o mercado de trabalho, substituindo o caráter crítico da educação por uma formação tecnicista que objetiva a integração do jovem na sociedade. Na justificativa que o governo enviou para o Congresso, diversos pontos chamam atenção para o diálogo da escola com o setor produtivo. Na desprezível entrevista de Temer para o Roda Viva (que, sabemos, tinha a única intenção de promover suas medidas), ele disse sobre a MP: “Estamos voltando a um passado extremamente útil”, referindo-se à divisão entre o ensino clássico e o científico, modelo de quando era estudante.

Não há dúvidas de que tal reforma vem como uma resposta aos anos de investimento na educação pública federal e na transformação das universidades do Brasil.

Temer vê como um ponto positivo de sua reforma a separação entre dois grupos de estudantes no Brasil: os que terão acesso a uma educação privada de qualidade e os que ficarão à mercê de escolas sucateadas, organizadas a partir de parcerias com empresas com o objetivo de formar uma massa proletária já inserida no mercado. Não há dúvidas de que tal reforma vem como uma resposta aos anos de investimento na educação pública federal e na transformação das universidades do Brasil. Dando aos estudantes do ensino médio apenas a opção de se formar para o trabalho e excluindo-os assim da universidade, o governo assegura a tranquilidade da elite brasileira, que tanto se desesperava com as mínimas possibilidades de mobilidade social que víamos acontecer no país.

Fernanda Dusse

Professora do CEFET-MG, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFMG, com enfoque em literaturas contemporâneas e a relação entre estética, ética e política.
fernandadusse@gmail.com

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